Estive em DELFT na Holanda, cidade onde nasceu e viveu Johannes Vermeer, na Idade de Ouro holandesa. E por quê! Porque tenho uma predileção desmedida por esse pintor. Algo inexplicável, até por aí. Atmosfera das pinturas, luz e sombra, temática, técnica… enfim, e mais questões subjetivas me atraem para dentro de suas pinturas.
Quando apareceu a produção cinematográfica sobre sua viva, mesmo que ficcionada, fui sedenta assistir e me suspreendi. A qualidade do filme inebria e tem a capacidade de nos transportar aos espaços de vida de Vermeer.
Um filme para se ver e rever e rever. O assisti de novo faz bem pouco tempo.
Enquadrado no chamado costume pictures o filme “Moça com brinco de pérola” surpreende. Uma exuberante fotografia assinada por Eduardo Serra faz com que esqueçamos de um enredo lugar comum, onde a fórmula “amores impossíveis” domina a narrativa cinematográfica. Os tons pastéis, reproduzindo a atmosfera pictórica de Johannes Vermeer (1632-1675) desviam nossa atenção da história permitindo apreciar o movimento fílmico como verdadeira obra de arte.
Tracy Chevalier, autora do romance de mesmo nome, ficcionaliza a vida misteriosa da “Esfinge de Delft” criando uma trama previsível. Tomando como ponto de partida a obra prima do artista, chamada inclusive de “a Mona Lisa holandesa”, a escritora inventa a gênese do quadro, através de um possível amor platônico vivido pelo pintor com uma serviçal nomeada Griet cuja permanência no ambiente familiar rompe seu equilíbrio.
Mas as imagens do filme cumprem seu papel. Reconstituem Delft e tiram da sombra a obra de um pintor conhecido e apreciado mais por especialistas que pelo homem comum. E isto já é muita coisa.
Casado aos vinte anos com a rica Catarina Bolness, Vermeer exerce a sua vocação de pintor, como era prache na época, trabalhando sob encomenda. Entretanto quase sempre foge das solicitações, fixando na tela cenas do cotidiano através da luz, sombra e cor de maneira ímpar.
Para contrabalançar o orçamento doméstico, Vermeer desempenha a profissão de perito em arte, comercializando obras de outros artistas. Os registros acusam como sendo esta a principal fonte de renda do pintor.
Pela diversidade de trabalho o artista conseguia finalizar somente uns dois quadros por ano. A escassa produção totaliza mais ou menos trinta e seis obras, todas elas conformadas através de um esquema compositivo característico: uma perspectiva perfeita de um canto de sala, uma janela à esquerda, uma mesa, cadeira ou instrumento musical num meio plano, personagens posicionados neste meio plano e uma parede de fundo.
Amarelos, azuis, brilhos e sutis gradações nas luzes refletidas, uma área escura em contraponto com outra bem clara, é a síntese do universo pictórico deste holandês. A realidade cromática do dia-a-dia é retratada através de cenas montadas em seu próprio atelier, onde os detalhes são fundamentais. Instantâneos sem ação, tomados ao acaso, motivaram André Malraux a afirmar: pela primeira vez na história da arte o tema da pintura tornou-se um objeto de visão.
Vermeer pintou mulheres de rostos estáticos, esconderijos de paixões e emoções. Mesmo ricamente vestidos e ornados de jóias, seus personagens omitiam a revelação da intimidade, entretanto insinuavam estados de ansiedade, dúvida e melancolia, através de situações de segredo e desejos irrealizados.
Pontos e salpiques fazem parte de suas pinceladas, aparentemente planas e detalhadas, antecipando o pontilhismo dos impressionistas. Tal técnica proporcionava maior reflexão à luz incidente nas pinturas, tor-nando-as mais vibrantes e tridimensionais.
Seus planos de fundo eram ricos e usados inclusive para citar a obra de outros artistas como em “O concerto” e “Senhora Sentada ao Virginal” cujo fundo refere a obra de Dirck van Baburen “A alcoviteira” de 1622, e em “A lição de música interrompida e “Senhora de Pé ao Virginal” cujo fundo cita o quadro de Cesar van Everdingen.
“Moça com brinco de pérola” hoje é quadro, é livro, é filme. O quadro, com fundo escuro a la Da Vinci usa do azul todo seu explendor, em contraste com o amarelo, para concentrar nossa atenção no olhar da modelo.
No filme, a serviçal, ao ver o quadro pronto, diz ao pintor: você olhou dentro de mim ! No quadro, o olhar parece querer capturar nossa atenção para, tal qual o pintor, olharmos o dentro da obra. Se assim for possível, captaremos através dele a síntese de toda a arte de Vermeer. Uma arte reveladora dos aprisionamentos humanos, das janelas desejadas e não transpostas, dos desejos irrrealizados, dos chamamentos incompreendidos, dos sentimentos frustrados, dos amores mal resolvidos.
Se assim não for possível pelo menos que captemos a obra como um magnífico espetáculo de pintura. E isso já pode ser muito.
LIANA TIMM | Artista multimídia, arquiteta, poeta e designer. Vive em Porto Alegre com atelier em permanente ebulição. Sua produção mescla manualidade e tecnologia, conceito e materialidade, história e contemporaneidade. Transita pelas artes visuais, pela literatura, pelas artes cênicas e pela música. Professora da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da universidade federal do rio grande do Sul (1976/96). Especialista em Arquitetura habitacional e Mestre em Educação pela UFRGS. Realizou 76 exposições individuais, sendo as mais importantes: Pinacoteca do Estado de São Paulo/SP/Brasil, Memorial da América Latina /SP/SP/Brasil, Centro Cultural Correios e Telégrafos/Rio de Janeiro/RJ/ Brasil, Museu Brasileiro da Escultura/São Paulo/SP/Brasil, Fundação Cultural do Distrito Federal/Brasília/DF, Museu da Gravura cidade de Curitiba/PR/Brasil, Museu de Arte do Rio Grande do Sul/Porto Alegre/RS/Brasil. 35 shows musicais na cidade de Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul/Brasil, em Montevideo/Uruguai, em Miami/EUA e em Toulx Sainte Croix/França. Publicou 64 livros, destes 18 são individuais de poesia sendo que o último reúne sua produção poética de 35 anos. Recebeu 17 prêmios nas diversas áreas de atuação. Desenvolve suas produções culturais e projetos editorias através da TERRITÓRIO DAS ARTES.