A pluralidade e a contradição vicejam como marcas da humanidade e, muitas vezes, podem grassar uníssonas em um produto artístico. Olhe a fota da capa de “A casa, a estrada e o tempo”, estreia do músico e compositor santa-mariense Alex Palma, que também é guitarrista em bandas de rock. A foto de Leo Dias deixa claro: Alex assume um aparente contrassenso e aparta um legado que o amarra ao nativismo. Alguns desavisados, ao vislumbrar essa imagem, podem pensar que se trata de um disco de música pop, como de fato ele pode ser visto. Assim, o trabalho consagra 12 faixas — 11 parcerias — escritas com Érlon Péricles, Tuny Brum, Gujo Teixeira, Rainieri Spohr, Diogo Matos, Paulo Righ, Piero Ereno, Pintoo, Pena Flores e Pedro Flores. E para corporificar essas canções, Palma convocou um ótimo time de cantores — Tuny Brum, Nenito Sarturi, Flávio Hansen, Cristiano Quevedo, Rainieri Spohr, Renato Mirailh, Hélio Augusto, Marcelo Oliveira e Márcio Correia (que também gravou diversos instrumentos e assina a produção da obra). A grande parte dos personagens envolvidos na gravação está arraigada a música nativista do RS, o que não impede esse conjunto de canções de ir romper nossas fronteiras. Já disponível nas plataformas de streaming, “A casa, a estrada e o tempo” será lançado em CD, em data a ser definida, ainda no primeiro semestre de 2024.
Gravado entre junho de 2022 e maio de 2023, o que ouvimos na obra abarca seis temas inéditos e seis canções que perpassam o percurso do compositor por vários eventos tradicionais do Sul do País, festivais como Tertúlia Musical Nativista (Santa Maria), Carijo da Canção Gaúcha (Palmeira das Missões), Canto Campeiro (Viamão), Acampamento da Canção (Campo Bom) e Gruta Em Canto (Nova Esperança do Sul).
Em suas letras e parcerias, Alex Palma, 45 anos, traz à reflexão do mate — um tema recorrente, marca do homem do Sul — e um dos pontos de partida para expor os inegáveis amargos da existência. Com isso, remonta a memorabilia espiritual e física, espólios ancestrais herdados e utilizados como amuletos da memória afetiva do compositor. Assim, Alex almeja a paz do convívio entre os seus, utilizando o fazer musical como antídoto contra as amarguras vigentes, assim como também celebra conquistas e amores.
O álbum abre com “Milonga pro céu” (primeiro single lançado ainda em setembro), na voz de Hélio Augusto. A música dá o tom do trabalho, oferecendo uma letra que traz o espírito rural como inspiração, mas que avança musicalmente além de alguma moldura específica. A faixa título, também lançada em single, cantada por Márcio Correia, segue numa trilha semelhante, induzida por campos melódicos que relembram o melhor da MPB. Em “O fogo das horas calmas” Rainieri Spohr evoca a reflexão de uma fogueira como símbolo de sobrevivência. Destaque para a gaita botoneira de Márcio Correia. A voz grave de Flávio Hansen molda “Do outro lado do mate”, quando o protagonista mateia com seus fantasmas interiores. “Escudo de seda”, apresenta Renato Miraihl divagando sobre o espólio material de um pala como santo protetor frente às adversidades. “Um mate com a minha avó”, cantada por Cristiano Quevedo, com piano de Diogo Matos, relembra que o prazer de matear com “a mãe velha” sacia não apenas a sede do chimarrão, mas também liquida parcialmente a nostalgia do passado, assim como remonta no tempo presente.
“Violão”, por Marcelo Oliveira, homenageia o instrumento homônimo, responsável por preencher o vazio do coração com o som de suas cordas. Explorando o âmago do ideário regional, em “Na carona da milonga” Tuny Brum exalta as virtudes milongueiras, assim como “Mas bah”, na voz de Hélio Augusto, brinca com o sotaque gaúcho e, além dos bordões linguísticos, evoca a capacidade do homem do Sul em preservar o seu legado. Márcio Correia fala em “Vazio” do silêncio que soa como um trovão, assim como “O espelho da milonga”, na interpretação de Cristiano Quevedo, evoca os reflexos alquebrados da memória que mimetizam a realidade. A curva do tempo é distendida em “Pelos olhos do meu neto“, quando o amor do avô pelo seu neto o revitaliza. A música foi composta para a voz de César Lindemeyer, que faleceu pouco antes de interpretá-la na 6ª edição do festival Gruta Em Canto de Nova Esperança do Sul. Coube a Nenito Sarturi representá-la no evento e no disco.
Ao sabor da maturidade, o primeiro trabalho de Alex Palma reúne uma parte significativa das composições que escreveu junto aos amigos do nativismo. Apenas “Escudo de Seda” tem letra/música dele, forjando uma seleta de canções, que mesmo separadas pelo espaço dos anos — em parcerias distintas —, encontra em “A casa, a estrada e o tempo” um sentido de álbum. À contramão das contradições, o músico apazigua qualquer possível diferença e tira o melhor de cada parceria. O sentimento de amálgama está representado nas próprias escolhas de Palma e materializa-se na direção musical certeira de Márcio Correia. Soma-se a isso tudo a união de talentos que o disco congrega, o que forja a liga necessária para amarrar as músicas com o senso estético que uma boa obra musical necessita.