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CONTO: A DIABA DESPEDAÇADA – Marcus Veras

Um conto de Marcus Veras para Pedro Só

Juvenal é homem sério e não está aí para as safadezas da vida. Funcionário da justiça, garante a subsistência com salário digno para quem, como ele, não tem mulher nem filhos.

Sirlene é empregada doméstica e adora o samba. Na verdade, adora o carnaval desde que era pequena em Valença, rincão familiar. E como a patroa sempre viaja durante o tríduo momesco, ela se acaba na rua, nos blocos.

Juvenal não sabe, mas padece com a falta de sexo e atribui o desconforto a uma vaga disfunção erétil que só se manifesta em sonhos. Aos 52 anos, pouco sabe das mulheres e se refugia na confissão para purgar os pecados em pensamentos (muitos), palavras (poucas) e obras (nenhuma).

Sirlene tornou-se a musa da juventude em Valença aos 16 anos, quando desfilava rumo à escola sacudindo os longos cabelos encaracolados, luzindo a pele muito morena ao sol dadivoso, balançando as carnes duras da juventude.

Juvenal detesta o calor, o suor, a praia, o carnaval, o carioca mais descarioca do bairro do Catete, nobre refúgio de presidentes no passado, hoje invadido por uma massa que se contenta em eleger sempre os mesmos trastes.

Sirlene tinha seu próprio rádio e dançava na sala, no banheiro e na cozinha, muitas vezes no alpendre de sua pequena casa no interior, para gaudio, delírio e reprovação da vizinhança no bairro valenciano.

Juvenal prefere esquecer, mas suas experiências com mulheres foram sempre frustrantes, terminando antes de começar ou jamais se completando, extremos de uma situação que ele preferia evitar. Mas o corpo tem suas urgências…

Sirlene vacilou e acabou grávida de um vendedor que passou por Valença, emprenhou-a e seguiu viagem para os lados da Bahia. Avexada, a família mandou-a para o Rio, à casa de parentes, onde sofreu um aborto natural e de onde nunca mais voltou.

Juvenal foi bicho bravo na infância mas amansado em colégio de padre para não ser meter muito a besta. Uns cascudos, alguns puxões de orelha, até mesmo um tapa na cara dependendo da falta. Os pais, livres do trambolho, adoraram e o mantiveram interno até os 18 anos.

Sirlene tratou de estudar à noite para completar o básico e compensar com isso os padrinhos que lhe acolheram no Rio. Mas logo percebeu que sem dinheiro nunca se libertaria da tirania da tia, aquela senhora insanamente neurótica que se satisfazia humilhando a sobrinha e afilhada.

Juvenal fez curso de contabilidade mas não se achava capaz de encarar uma faculdade. O concurso para a justiça estadual resolveu seu problema. Estava arranjado para o resto da mediocridade.

Sirlene, com os rudimentos de cozinha que trouxera de Valença, empregou-se na casa de dona Vicentina, viúva remediada a quem oferece além dos serviços culinários um ombro amigo para momentos de depressão. Que não são poucos.

Juvenal atravessou a vida sem furar um sinal vermelho, respeitador de todas as regras existentes e as que porventura se inventarão. Terreno sólido, sem acidentes de percurso, apenas aqueles malditos sonhos onde encontrava-se nu em meio a densa mata.

Sirlene recebeu com alegria a notícia de que dona Vicentina passaria o carnaval com o filho e a nora na serra, e disposta a se divertir um pouco, pede permissão para ficar durante os dias de folia no pequeno apartamento do Catete. A patroa, bondosa, permite, mas pede que não se esqueça de regar as plantas.

Juvenal suporta, estoico, o verão que arde sobre a cidade, refugiando-se sempre que possível no ar condicionado. Para que a conta não fique salgada em demasia, alterna com um ventilador o refrigério noturno. A proximidade do carnaval o leva a estocar refrigerantes, salsichas e mostarda para maratonas diante da TV.

Sirlene, animada com a chegada da folia, trata de se preparar com uma fugida rápida ao centro da cidade, onde, depois de alguma hesitação, encontra a fantasia com que vai atravessar os dias da carne. Leva todos os apetrechos em sacolas de plástico, mas há um, comprido e cheio de pontas, que não cabe no embrulho.

Juvenal repete mecanicamente todas as noites o ritual da reza antes de dormir. Não presta muita atenção às palavras, o que o envolve e consola é o ritmo a que ela induz até o fatídico livrai-nos do mal, amém. Mas nada disso adianta diante do fervor quase obsceno de seus sonhos.

Sirlene, trancada em seu calorento quarto de empregada, não espera que dona Vicentina viaje com o filho para experimentar parte da fantasia. Admira no espelho o rabo proeminente e se sente feliz – este ano não vai ser igual aquele que passou…

Juvenal, espremido dentro do vagão do metrô, amaldiçoa os perfumes baratos, os desodorantes vencidos, o bafo acebolado de alguém que não consegue identificar. É sexta-feira, o carnaval só começa amanhã, mas a cidade já está uma Babilônia só.

Sirlene dorme e sonha que está de volta à Valença, desfilando garbosa à frente da Euterpe Valenciana, botas, chapéu militar e bastão nas mãos muito finas de unha pintadas de azul escuro. Acorda suada e com um desejo de sexo que a faz lembrar do escorregadio vendedor que virou sua vida de cabeça para baixo.

Juvenal acorda tarde em pleno sábado de folia, decide ir à padaria, e ao entrar no elevador depara-se com Sirlene, toda montada em sua fantasia de diaba, e por mais que queira não consegue desviar os olhos. Ela sorri, ele acha que sorriu, e quando chegam ao térreo Juvenal fica paralisado, segurando a porta do elevador, enquanto Sirlene desfila, sem pejo, sua rainha diaba, rumo ao primeiro bloco dos muitos em que soltará a franga.

Sirlene volta para casa no final daquele sábado em pandarecos. Pulou até cansar em dois ou três blocos no Catete e na Glória e está com as pernas doídas. Alguns homens tentaram abordá-la com propostas diversas mas ela não se interessou. Coincidência: ao entrar no saguão do prédio, encontrou-se novamente com o vizinho que abrira a porta do elevador pela manhã.

Juvenal arregala os olhos ao ver a rainha diaba entrar pelo saguão adentro, encharcada em suor, o cabelo desfeito, a tiara com chifres em uma mão, o tridente na outra, o rabo pontudo preso à cintura. Instintivamente a acompanha até o elevador para saber em qual andar descerá. Festa boa?, pergunta. Maravilhosa, diz ela. Que bom. Como você se chama? Juvenal, e você? Sirlene. Tchau, tchau. É o quinto andar.

Sirlene aproveita a ausência da patroa e toma uma chuveirada no banheiro social. Lava-se com esmero, tomando cuidado para que a purpurina não se espalhe em demasia pelo box. Sente o corpo relaxar sob a ducha morna, vai dormir com os anjos esta noite. No sétimo andar, Juvenal percebe que não vai pregar o olho. A visão paradisíaca de Sirlene mescla-se às diabruras que imagina fazer com ela.

É segunda-feira de Carnaval, Juvenal arrisca-se a sair da toca de tardinha, e pela terceira vez dá de cara com Sirlene, voltando da folia em uma fantasia que já apresenta alguns rombos pelo uso constante. Tirando forças sabe lá de onde, ele a convida para comer um pão de queijo em casa. Ela dá uma sonora gargalhada e pergunta se tem cerveja. Serve suco de uva?

Saltam no sétimo andar, Juvenal abre a porta de seu tugúrio, Sirlene com seu passo rebolante. Ele vai ao micro-ondas preparar o pão de queijo, ela pede para ir o banheiro. Enquanto a massa esquenta, ele ouve o barulho do chuveiro. Fecha os olhos e se sente queimando no fogo do inferno nos braços da satânica senhorita. Uma tímida ereção começa a manifestar nas partes pudendas.

Silrlene se esbalda sob o chuveiro elétrico de Juvenal, achando graça naquele homem tão metódico cujo banheiro mais parece um farmácia, tudo arrumadinho nas prateleiras. Decide então fazer uma surpresa para devolver a deferência com que está sendo tratada.

Juvenal coloca os pães de queijo no prato e quase derruba tudo ao apanhar o suco de uva – a tremedeira é grande, mas o desejo é maior. Caminha até a pequena sala, coloca a bandeja em cima da pequena mesa e está pronto para o pecaminoso embate.

Sirlene grita do banheiro pedindo que ele feche os olhos, o que ele atende. Alguns segundos depois ela fala, voluptuosa, pode abrir, meu bem. Juvenal abre os olhos e se depara com Sirlene inteiramente nua.

Onde está a diaba, a capeta, a tentação? Os chifres, o rabo, o tridente, a purpurina? Onde está o pecado, Sirlene? O que fazem neste corpo as cicatrizes, as gorduras, as marcas do tempo? Diante do silêncio de Juvenal, ela entende que daquele mato não sairá coelho. Recua até o banheiro, veste o maiô purpurinado que já cai aos pedaços e se despede com um tímido tchau.

São dez horas da noite e Juvenal está diante da TV. Ao lado, um prato de borrachudos pães de queijo, meio copo de suco de uva e um silêncio que ele vai espantar aumentando o volume até o limite do insuportável. No quinto andar, Sirlene já dorme o sono das diabas despedaçadas.

Marcus Veras de Faria é jornalista, roteirista e escritor. Ganhou o prêmio Guimarães Rosa de Literaturaem 1986 com o volume  de contos “A CidadeArde” (Editora Mileto). Publicou três romances: “Só Para Homens”(EditoraCoringa, 2013), “Qualquer Maneira de Amar”(Editora Ponteio, 2014) e “Ös ÚltimosDias em Preto e Branco”(Editora Ponteio, 2018). O conto “A Diaba Despedaçada” fazparte do volume “O Perpétuo Devenir”, ainda inédito.
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