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arte: Virna Teixeira

ABSTINÊNCIA | por Virna Teixeira

A portinhola estava aberta, o preso se aproximou. Tinha um forte sotaque irlandês e estava agitado, xingando. Na moldura do pequeno retângulo na porta a imagem do seu cabelo vermelho fogo, as pupilas visivelmente dilatadas dentro da íris azul, o olhar raivoso e intenso.

Pedi ao policial para abrir a cela. Saiu um homem magro e sardento, vestido com o uniforme de moletom cinza dos presidiários. Trazia um rosário branco de plástico pendurado no pescoço, e usava um par de tênis Nike imundos. Pedi que me acompanhasse para a revisão, junto com uma conselheira africana calada e experiente, o xale colorido recobrindo seus ombros e as argolas douradas combinando com o colar.

Ele estava hiperalerta, cumprimentava uns poucos presos soltos no corredor enquanto passávamos, parecia conhecido na área. Aquele era o horário dos vulneráveis, os ‘V.P’. Eles não podiam se misturar com os outros pelo risco de agressão, mas ele parecia sossegado neste aspecto e não oferecia risco.

Neste breve intervalo, na rotina das minhas manhãs do presídio, eu caminhava pelo pavilhão observando o movimento, as faces diversas daqueles homens, os policiais de ambos os gêneros compenetrados em manter tudo sob controle. As chaves da cadeia guardadas numa pochete de couro, presas por uma corrente, junto com outros instrumentos presos em seus cintos. Bastão, algemas, apito, um rádio. Alguns mais tranquilos e cordiais, outros exalando um ar de autoridade.

Eu queria parar e filmar mentalmente aquelas imagens, um zoom em câmera lenta, para que não esquecesse de nenhum detalhe. Mas havia muito trabalho pela frente, e nunca me restava tempo para escrever sobre aquele universo que me fascinava desde o meu primeiro dia de trabalho ali. Impressões visuais de médica estrangeira numa prisão inglesa masculina de média segurança em Londres.

Entramos na sala dos policiais, com móveis velhos e escassos de escritório, rolos de papéis higiênicos num saco de plástico sobre a mesa, lâminas descartáveis de barbear, sachês de xampu. Ele se acomodou numa cadeira giratória, e se remexia, irritado. Disse que estava dormindo muito mal. Comecei a entrevista, nos apresentamos. Fiz as perguntas de praxe da revisão de álcool e drogas.

O preso era um cliente regular da área, adicto sem teto, pai de três crianças com mulheres diferentes com quem não tinha contato. Fora prescrito na recepção uma desintoxicação curta com baixa dose de tranquilizantes que não estava funcionando. Não havia dúvidas de que estava em abstinência, e ele assumiu que estava abusando de diazepam no mercado negro. A dúvida é sempre acreditar nessas informações, pois muitos exageram para ganhar doses maiores, para revender suas medicações a peso de ouro na cadeia. Ele também usava crack e heroína, mas sua urina tinha sido negativa para opioides na entrada, assim ele não ganhou sua prescrição de metadona desta vez.

Ele falava rápido e eu às vezes não entendia o que ele dizia, também o estado de seus dentes era meio deplorável, mas essencialmente reclamava e se vitimizava, o que o mantinha eternamente naquela vida. Era um coitado, não tinha culpa de nada. Tinha problemas de saúde mental, queria seu antidepressivo que não tinha sido prescrito, seu antipsicótico para parar as vozes que sempre lhe atormentavam. ‘Tenho transtorno de personalidade’, disse.

Expliquei que entendia que ele não estava bem, teríamos que ajustar o tranquilizante por mais alguns dias, estabilizá-lo primeiro. Ele suava um pouco, mas se acalmou com a minha confirmação de que eu iria reintroduzir seus remédios. Voltou para a sala e eu fui conversar com a enfermeira ‘mas doutora, esse homem é um bandido, ele estava fazendo confusão por causa da metadona’. Expliquei meu julgamento clínico, ia aumentar o diazepam, ele precisava de fato. Ela hesitou um pouco mas aceitou.

De lá seguimos para avaliar um jovem cliente com problemas de álcool em outro pavilhão, que estava na vigilância de suicídio. No corredor cruzamos com o capelão moreno e bonachão de batina, com seus óculos pequenos e arredondados de acrílico. Ele segurou a porta pesada de metal para passarmos.

O dia todo trancando e destrancando portas, correndo atrás de policiais para abrir celas, ajustando doses de metadona e detox de álcool e tranquilizantes. Perambulando com minhas botas de combate por pavilhões de corredores estreitos e escadas de metal, um labirinto de almas penadas trancadas em seus infernos internos, a visão do padre benzendo o purgatório.

arte: Virna Teixeira

 

Virna Teixeira nasceu em Fortaleza e vive em Londres desde 2014. É poeta, tradutora,  escritora e dirige um projeto editoral independente, Carnaval Press. Teve vários livros de poesia e tradução publicados, com destaque para Visita (2000) e Distância (2005) pela 7 Letras; a antologia de poesia escocesa Ovelha Negra (2007) e My Doll and I (2021) pela Lumme Editor. Recentemente publicou seu primeiro livro de contos, A Pupila (2022) pela Kotter Editorial. Virna é médica e trabalha na área de psiquiatria e dependência química numa prisão em Londres.
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