“Quando começaram os problemas na Iugoslávia nos anos 1990, todos os lados recorreram à história para justificar o que estavam fazendo. Os sérvios se colocavam como defensores históricos da cristandade contra os ataques dos muçulmanos e como libertadores dos eslavos do sul, como os croatas e os eslovenos. Os croatas viam um passado bem diferente. A Croácia sempre foi parte do oeste, do grande império austríaco, de civilização católica, enquanto a Sérvia veio do mundo retrógrado e supersticioso da ortodoxia. O governo da Sérvia começou a se referir aos croatas como Ustasha – nome das forças fascistas da Segunda Guerra Mundial que massacraram os judeus e os sérvios. Repetidas vezes, a televisão sérvia mostrava documentários sobre os Ustasha, com o alerta implícito de que aquilo poderia acontecer de novo. Franjo Tudjman, presidente da Croácia, assim como Milosevic, outro comunista transformado em nacionalista, respondeu com desdém. Os Ustasha certamente haviam cometidos crimes, mas não foram senão “uma expressão do desejo histórico da nação croata por um território independente”.
Margaret Macmillan
Em qualquer discussão acalorada que nos envolvemos ou nos envolveremos, é bem provável que alguém já tenha dito as seguintes sentenças: “você sempre faz desse jeito”, ou “confiava em você”, ou “você ficará me devendo”.
Essa pessoa está usando a História para obter uma vantagem no presente.
E evidente que todos nós, desde os dirigentes dos países aos meros cidadãos, agimos do mesmo modo.
Buscamos eventos, acontecimentos do passado para tentar mostrar que sempre nos comportamos de forma correta e adequada e os nossos adversários de maneira imprópria, ou que sempre estivemos certos e eles errados.
Vejam o caso das primárias na Argentina – que funcionam como uma prévia das eleições gerais no país – o deputado federal Javier Miliei (ultraliberal e antissistema) venceu em 16 das 24 províncias argentinas. O peronismo perdeu em províncias que nunca perde.
O jornal “El País” descreve Miliei como um economista ultraliberal, que se declara “anarcocapitalista”.
O argentino é contra o aborto, a favor do casamento homoafetivo, considera as mudanças climáticas “uma farsa” da esquerda, e se identifica com a extrema direita do Vox na Espanha, também segundo o jornal.
Ainda sobre Miliei, é contra a existência de muitos ministérios e vê a educação na Argentina como um processo de doutrinamento. Já lemos e ouvimos isto por aqui?
Miliei acredita que os erros políticos acumulados ao longo da História argentina chegarão ao fim. A Argentina será uma grande potência. Ou seja, ele é o “homem providencial”. Ele é o escolhido (segundo ele e seus apoiadores)!
Na democracia atual, ainda há pessoas (eleitores) que as soluções de seus problemas estão numa “canetada mágica” desses “seres humanos extraordinários e mágicos”. Na concepção do eleitor médio, tudo depende de vontade e desejo do “Messias”.
Pois bem, na forma de como apresentar a conta da História, muitas vezes, os países usam os episódios do passado para constranger e pressionar os outros.
Os chineses, por exemplo, citam repetidas vezes o Século da Humilhação, que começou com a primeira Guerra do Ópio em 1839 e terminou com a vitória dos comunistas em 1949. Os chineses listam os seus descontentamentos: derrotas para potências estrangeiras, da Inglaterra ao Japão; o incêndio do Palácio de Verão em Pequim provocado pelas tropas inglesas e francesas em 1860; áreas concedidas a estrangeiros que fizeram fortunas e viveram sob suas próprias leis; tratados desiguais que enfraqueceram a autonomia da China; e não poderíamos esquecer da famosa placa: “Proibido para cães e chineses”.
Na História do Partido Comunista Chinês, a China foi e é a eterna vítima e, por isso, não pode cometer erros. Nesta visão do PCC, a China teve um comportamento pacífico ao longo de toda a sua história, sem jamais tentar conquistar outros povos ou se apossar de outros territórios, diferente dos ocidentais e do Japão.
Os alemães também foram hábeis em como contar a História. Eles usaram a Primeira Guerra Mundial como uma espécie de arma para minar a legitimidade do Tratado de Versalhes (que tinham assinado com os Aliados). A derrota militar – e não há dúvida quanto a isso – causou um choque no governo civil alemão e nos cidadãos. No ano de 1918, o Exército tentou – inúmeras vezes – não ser responsabilizado pela derrota. De forma ardilosa e foi construída inteligentemente o “mito da punhalada pelas costas”. Como era contada este mito? A Alemanha fora derrotada não no campo de batalha, mas sim por causa das ações de traidores em seu próprio país (socialistas, pacifistas, judeus ou a mistura dos três). Este mito ganhou maior credibilidade, pois, os Aliados (em parte pelo desgaste causado pela guerra) não invadiram e ocuparam a Alemanha. Nesta ideia, a Alemanha não tinha sido derrotada e sim forçada por grupos decisórios alemães (traidores! e entreguistas) a se render.
No Brasil, em tempos de crise (em nossa História Republicana), a ameaça do comunismo foi utilizada como justificativa para golpes pelos militares brasileiros.
Por fim, caro leitor – em sua hipocrisia e cinismo – como conta a sua história para justificar seus erros e culpar os outros?
Dedico aos meus orientandos
Gideon Henrique, Guilherme Cunha Jeffe, Hemilly Dos Santos Batista, Lucas Oliveira Ferreira, Matheus Lima.
Prof. Dr. José Renato Ferraz da Silveira
Professor Associado III do Departamento de Economia e Relações Internacionais (DERI) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) . Líder do Grupo de Teoria, Arte e Política (GTAP). Editor-chefe da Revista Interação (ISSN 2357-7975). Articulista do Diário de Santa Maria . Colaborador do Blog Obvious