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A Adaga Espanhola por Ronaldo Lippold

Conto inédito de Ronaldo Lippold 

Eu já estava na idade adulta, beirando a velhice. Nos encontrávamos na beira do rio Camaquã, numa área de terra do Pedroso, forte fazendeiro de Caçapava do Sul. Um fundo de campo, onde o rio fazia uma enseada, com uma boa praia de areias claras e águas límpidas. Um pesqueiro cevado há muitos anos pelo seu Nicanor, alambrador daquelas paragens, desde muitos anos.

Corria o ano de 1955. Estávamos na beira do fogo contando causos. Nicanor, Chico Louco e eu. Chico Louco era um andarilho, contrabandista de pequenos volumes e chasqueiro, como ele se definia frequentemente. Eu, Emiliano Fagundes Taborda do Nascimento, tinha uma pequena bodega de beira de estrada, entre a Linha Clara e a vila Maria.

Tinha ido a cavalo, visitar uns parentes na cidade e na volta resolvi visitar os amigos no antigo pesqueiro, um hábito de muitos anos.

Enquanto a lenha queimava no braseiro, com um espeto de guajuvira em uma linguiça de porco e outros condimentos, feitos por mim, vertendo as primeiras gotas de gordura. Uma cachaça com butiá corria entre aquelas mãos calejadas da dura vida levada pelo trio de gaúchos. O assunto era o mesmo de outras vezes, causos de terror. Estes causos variavam de personagens e situações, mas na maioria deles, a narrativa era de mistério. Apesar da pouca cultura, as infinitas conversas levaram o trio a sempre melhorar suas invenções retóricas.

Alguns minutos depois comemos a linguiça.

– Muito boa a linguiça, Fagundes, elogiou Chico Louco

– A melhor que tu já fez, sentenciou o Nicanor.

E logo depois, voltamos a nossa rodada de causos.

Eu resolvi relatar um que me ocorrera no último dia de maio passado. Havia recebido um telegrama de um primo distante e desaparecido, dizendo que estava vindo de Santa Maria e gostaria muito de prosear, pois eu era seu último parente vivo. Após cerca de quinze anos sem nos encontrarmos. Fiquei faceiro por tem recebido um telegrama. Naquele fim de mundo, raramente eu recebia alguma mensagem. A vida corria monótona, minha bodega ia de mal a pior. Fiquei lembrando do parente, tentando formar uma ideia de como estaria após tanto tempo. Lembrei dele no casamento da finada prima Vanda. Gordinho, conversador e metido a saber de tudo. Pois bem, vou ter que receber o vivente, pensei bem, meio conformado, talvez tenha mudado.

Passou uns 6 dias, eu fumando um palheiro, escorado no balcão, pensando em todo este mundão sem fronteiras e de repente, um carro passa levantando uma poeira danada, cruza a venda rapidamente e retorna cerca de dois minutos depois.

Era o primo Valdemar. Num Ford vermelho, coisa muito linda. Chegou falando alto, me deu um abraço mole e continuou falando, freneticamente, uns vinte minutos. O primo, muito alegre, me fazia perguntas simultâneas e ele mesmo fazia questão de responder. Me tonteou as ideias de uma maneira tal, que começou a me dar um nervoso.

Em pouco tempo, me contou que morou em Pelotas, Porto Alegre, Rio de Janeiro e que andou até no estrangeiro. Eu que nunca tinha saído mais longe que Caçapava, achei tudo muito rico e longe. Tudo era longe, pelo que ele contava. Minha sorte foi que ele resolveu tomar um banho.

– Mas esta estória não anda, comentou Chico Louco.

– Calma, salientei de vereda.

Na volta do banho, chegou o gordinho Valdemar todo cheiroso, de bermuda branca, uma camisa preta com um bolso bordado de vermelho e assobiando uma melodia estranha. Abriu uma mala grande, me deu um canivete vermelho, da Suíça, frisou ele. Tirou um estojo grande, todo de couro preto e com uns dizeres estranhos e colocou em cima do balcão. Após, voltou ao carro e trouxe um pernil de ovelha.

– Comprei na vinda, depois de São Sepé, parei para tomar um café numa venda e estavam carneando uma ovelha e um porco. Insisti tanto, dizendo que queria fazer uma surpresa para um primo, que me venderam esse pedaço. Chega a estar com a carne ainda quente.

Quando ele terminou de falar a palavra carne, meu gato angorá, que andava vendo carne somente na forma de ratos, chegou se arreganhando todo. Minha casa é bem humilde. Tenho a parte da venda, um quarto modesto, uma cozinha que é a maior peça e um banheiro ao lado de fora. Ficamos nessa parte maior, onde tenho uma grelha antiga bastante usada. O primo, pelo visto não gostava muito de gatos. Me falou que eles transmitiam doenças respiratórias e que eram ladrões e perigosos. Logo depois soltou uns espirros muito estranhos. O gato era preto, com os olhos amarelos riscados de vermelho. Um gato que havia aparecido no inverno passado e devia ter uns dois anos. Eu, como morava sozinho, me apiedei do felino e dei casa. O primo continuou falando sem parar e depois de abrir um vinho argentino de uma variedade que nunca vi, continuou com sua cantilena.

De repente, um vento norte, levantou um pó danado e trouxe um cheiro forte nas narinas finas do primo.

– Mas que horror este cheiro, parente.

– É da minha pocilga. Crio uns porquinhos para fazer umas linguiças. De vez em quando fede.

– Bah, parente, a coisa pelo jeito anda difícil por aqui. A venda, sem quase nada nas prateleiras, como dá para perceber. A casa precisando duma pintura e ainda este fedor. Parece que a vida não anda fácil para estas bandas, parente.

Aquilo foi difícil de ouvir. Me doeu por dentro. O cara, aparece de repente, contando vantagens e depois começa a te enjeitar!

Para esfriar a cabeça, resolvi dar comida pros porcos. Uma lavagem fedorenta. Mas era o que eu tinha para dar para aqueles três porquinhos. Um estava bem gordinho, pronto pra me abastecer de banha e linguiça por um bom período.

Na volta, pela janela vi o gato levar um chute do primo e cair estatelado perto de um banco. Pobre gato, deu um miado e sumiu. Aquilo me incomodou mais ainda. O que este cara está pensando da vida!

Me aborreci, mas o gabola do parente continuou falando de suas facas, que tirava do estojo com bastante perícia e exibicionismo. Eu tomando minha caninha com limão, ouvindo toda aquela ladainha.

– Esta é uma Victor Inox, faca de origem Suíça, boa de lâmina e bem afiada. Tem também a Wüsthof, uma clássica faca alemã com cabo de madeira. De repente, já retirou outra do estojo.

-Esta é uma Global, produzida no Japão. De aço inox e não precisa ser afiada todo tempo. Especial para cortar legumes.

– Tem também esta Solingen Bonsmann com cabo de alpaca. O que tu ganha em um ano não compra uma, parente. Uma de minhas preferidas e de uma marca bastante conhecida no Rio Grande. Uma vez, lá na fronteira, um argentino melenudo me chamou de mentiroso e eu chamei ele na Solingen. O cara se botou feito gringo em baile. Não me conhecia e se deu mal. Eu dei dois passos para trás e ataquei com rapidez. Só vi o desconhecido soltar um golfejo de sangue.

Eu com essa, tomei um gole seco de cana com limão. Imaginei aquele gordinho dando os passos de dança vangloriados por ele e quase me afoguei. Creio que notou, pois me olhou meio de lado.

E o cara continuou, enquanto a ovelha começou a derreter sua graxa e emanar aquele cheiro delicioso pelo ambiente. O gato com o cheiro, depois de sumir uns minutos devido ao pontapé que levou, voltou a se achegar.

– Vamos ver se está boa, parente. Estou louco de fome e quero comer e depois seguir na estrada para pousar em algum lugar. Já vi que aqui não tem um pouso.

-Pois é, parente! Pode dormir na minha cama. Eu me viro. Tenho um pelego e para mim, basta.

– Não. Capaz! Acho um hotel pelo caminho. Mas, foi muito bom te ver. Meu último parente vivo. Vou cortar este naco de baixo que está mais assado.

Daquele assado cortado pela lâmina afiada do aço inglês, caiu uma gota de sangue no braseiro atiçando a fome do gato que se enfiou mansamente entre as pernas do gabola.

– Esta é uma Adaga Espanhola com símbolos de Toledo, bastante antiga. Minha preferida e não está a venda. Uma adaga boa de peso e muito usada pelos espanhóis em escaramuças no Sec. XVII. Uma cutucada com ela abre um buraco num vivente.

Nisso, ele foi se virar rapidamente, para fingir uma estocada mortal, e pisou com força na pata do gato. O felino deu uma patada certeira na perna do bailarino e esse, devido a dor e o susto, torceu o pé, largou a faca e devido ao peso caiu meio de borco. A adaga espanhola, picou duas vezes e silenciosamente cravou todo seu comprimento na barriga da visita. Ele se contorceu e de imediato saiu um jorro de sangue de sua boca. Ainda teve tempo de falar.

– Isto foi um haraquiri gaudério!

Eu não sabia do que se tratava essa última fala.

– Mas que coisa mais escabrosa, Fagundes! Comentou Chico Louco de olho ensimesmado.

– E o que fez com o corpo, homem.

– Desossei com uma das facas dele. Os ossos e as vísceras dei pros porcos. A parte mais gorda coloquei nesta linguiça que provamos a pouco.

Mal terminei de falar e meus companheiros, desconfiados, levantaram, descobriram uma desculpa qualquer e picaram a mula, como se diz.

Eu ainda gritei, na saída:

– Não querem saber o que fiz com o Ford?

 

Ronaldo Lippold

Ronaldo Lippold é natural de Santa Maria/RS. Formado em Administração (UFSM). Publicou os livros “A culpa é do Padre” e “A culpa é do Padre II, em busca da cerveja perfeita”(ambos pela Rio das Letras). Criou a primeira cervejaria artesanal de Santa Maria/RS, a Old Lipp, em 2013. Em conjunto com a Turma do Café, escreveu o livro de contos “Descontos” (Rio das Letras) e “Baixada Melancólica” (Monstro dos Mares).

 

 


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SINA EM PAUTA: TURMA DO CAFÉ LANÇA LIVRO INSPIRADO EM BELCHIOR (05/10 – SEG -19H)

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