Marcelo Canellas
Se Santa Maria fosse um corpo, seus cabelos seriam o dossel da mata que escorre pelos morros em volta. Seus braços e pernas se esparramariam, preguiçosos, pela imensa planície ao sopé da Serra Geral abraçando os distritos, afagando os arroios, acariciando as coxilhas. Suas veias correriam nas ruas empoeiradas ou empedradas de basalto das periferias e nos trilhos metálicos da ferrovia. Seu coração estaria no centro velho. Mas quando penso no rosto, na cara sulcada da minha cidade, só consigo pensar na Gare da Estação. É lá que me reconheço.
É lá que se fundem os ciclos temporais que engendraram uma urbe habitada de histórias, de sentimentos, de rituais, de maneiras de agir de homens e mulheres que, durante o longo processo de formação e povoamento, fundaram uma identidade comum. Por isso a Gare é um local sagrado, elemento simbólico de expressão humana, ressumado de afeto, representação da comunidade.
Como todos sabem, os vândalos e os cupins foram apenas os operadores da depredação da Gare. Esse nosso belo rosto de cidade foi desfigurado pela omissão dos governantes e pelo abandono que nós mesmos, como sociedade, permitimos que ocorresse. Eis que agora a prefeitura propõe recompô-lo. A chamada pública 01/2020, aberta a partir da próxima segunda-feira, dia 15 de junho, oferece a cessão de uso onerosa do terreno do prédio da Estação Ferroviária de Santa Maria para exploração da iniciativa privada. Quando ouvi do próprio secretário de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Inovação, Ewerton Falk, que o governo do prefeito Jorge Pozzobom estava preparando um edital que contemplaria a restauração fiquei exultante. O secretário, diante de professores e da reitora da UFN, Irani Rupolo, de agentes culturais, de empresários, de representantes do Sebrae, da Cacism, da Associação da Vila Belga e do Coletivo Memória Ativa, prometeu um edital exemplar. Ficamos todos esperançosos.
Esta semana, ao ler detalhadamente o edital, me dei conta de como uma grande ideia pode ser seriamente comprometida por uma redação vaga, dúbia, ambígua e essencialmente mal escrita porque se mostra refratária a duas das principais virtudes de qualquer inciativa governamental que mexa com o interesse público: a clareza e a transparência. Se levarem adiante esse edital do jeito que está, o prefeito Jorge Pozzobom e o secretário Ewerton Falk estarão apenas lavando as mãos e transferindo para o imponderável o que será feito na Gare. Não há compromissos amarrados, detalhados, com explicitação técnica de critérios definidos e delimitados, sobre como a preservação da memória ferroviária estará garantida. Também não há nenhum dispositivo que garanta a prioridade de uso cultural, vocação daquele espaço, e nem mecanismos de garantias financeiras de que os interessados executarão, de fato, o projeto.
A parceria público privada é uma saída criativa para viabilizar o projeto em tempos de restrição orçamentária, mas é inacreditável que o edital não preveja nenhum tipo de benefício àqueles que, durante anos, enquanto os gestores públicos deixavam a Estação a mercê dos saqueadores, foram os guardiões da Gare ocupando-a de forma generosa para protegê-la: o coletivo de artistas que fez fervilhar aquele espaço de exposições, recitais, esquetes, saraus e centenas de manifestações artísticas e culturais sem nenhum tipo de ajuda oficial.
Aliás, como foi possível formular um edital desta importância sem uma única audiência pública? E por que o Conselho Municipal de Políticas Culturais, onde a pluralidade da sociedade civil está representada, não foi sequer consultado? Rogo ao prefeito e ao secretário que revejam essa metodologia. Ainda dá tempo de ouvir a sociedade – na impossibilidade de uma audiência pública devido à pandemia, que seja numa consulta pública virtual – e reformular o edital acrescentando transparência, clareza e critérios mais bem delimitados para que o rosto de nossa cidade seja reconhecido por quem a ama.
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