Uma crônica de Roger Baigorra Machado.
Não sei se isso acontece com você, mas rola comigo de vez em quando. Talvez, por conta da minha idade, sei lá. É que conforme eu vou envelhecendo, de quando em quando, uma certa melancolia surge e senta do meu lado. Às vezes, acontece no caminho de volta do trabalho, noutras vezes, bem no meio da noite. Ela chega e coloca a mão no meu ombro, sempre cheia de si, e joga nas minhas costas uma sensação de finitude. Isso mesmo, fico com a impressão de que tudo está terminando.
Eu não sei explicar direito, é como se fosse uma angústia, tipo a sensação de que o tempo está terminando. Na verdade, o que quero dizer, não é que o tempo termine, ele não acaba. A sensação de que falo é mais sobre quando a gente está terminando, quando a vida se acaba num determinado momento sobre o tempo.
Daí, no meio da madrugada, eu penso que quando eu morrer e o tempo continuar sua marcha, eu não vou mais ver meus filhos. Não saberei o que eles estarão fazendo, se estarão felizes ou tristes. Nem vou acordar todos os dias e não vou olhar no rosto da minha esposa e nem vou ouvir a sua risada. Tão pouco vou saber o que acontecerão com todas as pessoas e coisas com as quais me importo hoje. Lembra que eu falei que a melancolia tinha se sentado do meu lado? E para completar o clima melancólico, nesta semana que passou, morreram o Bebeto Alves e a Gal Costa, foram duas pancadas. A impressão que fica é que um pedaço da vida da gente também vai morrendo junto. É só o tempo cobrando o seu preço.
E agora, ali estava eu, com uma cestinha pendurada no braço, procurando pelo leite mais barato na prateleira de um supermercado em Uruguaiana. Meus filhos, que são como dois guachos, precisam de leite diariamente, e assim eu revistava as prateleiras, com olhos de águia, em busca do leite mais barato. Em tempos em que o litro do leite é quase um ato pecaminoso, uma pesquisada nunca é demais. Só que dessa vez eu precisava ser rápido.
E nesse dia, no alto falante do supermercado, depois de um anúncio qualquer, eis que a guitarra do Dado Villa Lobos começou à tocar, eram notas claras. No som da primeira nota eu já sabia. Era ela.
E eu senti a melancolia chegando de novo, sentando do meu lado e pondo a mão no meu ombro. A voz do Renato começa, como se estivesse desabafando: “Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas temos muito tempo. Temos todo o tempo do mundo”. Perdi a conta das vezes em que ouvi “Tempo Perdido”.
O segundo álbum da Legião Urbana é uma preciosidade, um dos grandes discos da música brasileira. Ele foi lançado em 1886, eu tinha apenas cinco anos. Fui ouvir o disco com atenção mesmo lá pelos meus 14 anos, eu ficava horas no meu quarto, ventilador rangendo, lendo o encarte, as letras, a ficha técnica, dedilhando o violão. E “Tempo Perdido”, sem dúvidas, ao lado de “Índios” e “Quase sem querer” ocupa um lugar cativo nas minhas memórias musicais.
Joguei dois litros de leite na cestinha, sobre eles acomodei um saco com pães e fui para a fila. E no alto falante do supermercado a canção seguia: “Sempre em frente, não temos tempo a perder”. A senhora na minha frente reclamou com a menina do caixa, era um produto que estava anunciado com um preço e no terminal do caixa tinha outro. Luz vermelha. Olhei no relógio, ainda dava tempo de pegar as crianças sem nenhum atraso. Tempo Perdido rolando no supermercado, parada no fila e me perdendo em pensamentos.
Lembrei de um livro que li, chamado “A Ordem do Tempo”, do Carlo Rovelli. O Rovelli é um físico italiano que diz que o tempo não existe, ao menos, não do jeito que imaginamos. Ele diz que aquilo que chamamos de tempo é uma invenção nossa, coisa dos humanos. O físico italiano diz que o tempo para os humanos é como se fosse um fluxo ininterrupto, uma linha indo do passado para o futuro, feito uma seta, sempre na mesma direção. No entanto, no universo, o tempo se desloca para todos os lados.
O Rovelli acredita que no cosmos o tempo funciona de uma forma diferente, antes de uma linha, está mais para uma rede cheia de camadas, costuras que se passam feito linhas temporais distintas e sempre influenciadas pelo lugar e pelas forças gravitacionais. Em linhas gerais, Rovelli propõe que o tempo é sempre diferente conforme o ponto onde estamos no universo. Em alguns lugares do cosmos, por exemplo, o tempo da nossa vida, uma existência de uns 70 ou 80 anos, não passaria de um dia na existência de outros seres.
Rovelli defende também que o tempo é mais rápido quanto maior for nossa distância da terra, quanto mais distantes, mais rápido ele fica. O italiano exemplifica dando um fato científico, dizendo que se dois relógios de precisão, idênticos e ajustados com o mesmo horário, forem colocados em posições diferentes, um no solo do planeta e outro na atmosfera, os ponteiros de ambos relógios girarão em velocidades diferentes. Os ponteiros do relógio que está longe do solo girarão mais rápido.
Isto foi reafirmado quando nos anos 90 os primeiros satélites com GPS foram enviados para nossa órbita. Físicos disseram para os engenheiros do exército americano que no espaço o tempo passa mais rápido e que por isso os satélites experimentariam o tempo de maneira distinta. Eles não entenderam, enviaram os satélites mesmo assim. Rapidamente, eles perceberam que os relógios dos satélites se adiantavam em relação aos relógios que marcavam o tempo na terra, a gravidade menor fazia com que os ponteiros girassem mais rápido.
Foi preciso que os engenheiros desenvolvessem um mecanismo de correção dos relógios, devido ao delay gravitacional, e enviassem novos satélites, agora, adaptados aos diferentes tempos que existem. Logo, não existe um tempo absoluto, como intuía Newton, nem presente, nem passado, nem futuro, tudo depende de onde você está.
Da mesma forma, Rovelli nos lembra do paradoxo dos gêmeos, ele diz que se dois irmãos gêmeos forem colocados para viver em locais diferentes, um no nível do mar e outro no alto de uma montanha, anos depois, quando se reencontrarem, o irmão que ficou no nível do mar estará mais velho. Isso ocorrerá, pois o irmão que estava no lugar mais alto experimentou o tempo de maneira mais rápida, ou seja, seu corpo sofreu menos exposição ao tempo.
Seria algo como você passar andando por um campo em Chernobyl, se você passar caminhando lentamente, você vai ser exposto a grandes volumes de radiação, muito mais do que se passasse correndo.
Seria algo parecido com o que aconteceu com os irmãos Scott e Mark Kelly, dois astronautas americanos que passaram por algo parecido com o paradoxo dos gêmeos. Enquanto Scott ficou 342 dias no espaço, seu irmão Mark permaneceu na Terra. Durante esse período, Scott ficou na Estação Espacial Internacional, deslocando-se a 27 mil km/h. Quando retornou, seus dados foram tomados e comparados com os dados vitais de antes de partir, assim como, com os dados do irmão gêmeo que estava na terra. Os cientistas concluíram que Scott havia ficado 8,6 milisegundos mais jovem do que o seu irmão Mark. De certa forma, ele viajou no tempo.
O livro de Rovelli é bem legal, vale muito a leitura. Na verdade, primeiro leia “Uma breve história do tempo” e “O Universo numa casca de nós” do Hawking. Depois vá para o Rovelli, acho que isso me facilitou a leitura, visto que alguns conceitos são melhor explicados pelo físico inglês. E nisso, eu coloco os dois litros de leite sobre o balcão do caixa, já havia chegado a minha vez. Quando estou saindo do supermercado, ouço a sirene da escola. Apresso o passo. Vou caminhando e pensando ainda no Rovelli, no Renato Russo e nessa coisa toda do tempo: Que coisa misteriosa é o tempo!
E eu já estava esquecendo, tem uma parte do livro “A Ordem do Tempo” que eu acho bem interessante, um momento em que o italiano fala algo do tipo, “no final, possivelmente, o mistério do tempo diz mais sobre o que somos do que sobre o cosmos”. O Renato Russo já sabia disso lá nos anos 80, tanto que ele escreveu algo parecido. Na letra de Tempo Perdido ele diz que “temos nosso próprio tempo”. O tempo não é do universo, o tempo é coisa humana. Se o tempo é nosso, ele deve dizer mais sobre a gente do que sobre os lugares do universo onde nunca estivemos ou estaremos, por isso tempo é tudo o que somos.
E se o tempo é relativo em todo o universo, o tempo também deve de ser relativo dentro da gente. Dobro a esquina e vejo que a porta da escola já está aberta. Aperto de novo o passo, meus filhos não gostam se eu demoro muito tempo para pegá-los, adoram ser os primeiros à sair da sala de aula.
E eu sigo andando e pensando naquela frase antiga do Einstein, sabe?
Se você estiver junto da pessoa amada, uma hora parecerá um minuto. Agora, se você estiver com a bunda sobre um braseiro quente, um minuto parecerá uma hora. A vida, acredito eu, segue essa mesma lógica.
O detalhe que indica se tudo está indo rápido ou lento demais está na forma como vivemos cada momento do tempo. Um mês fazendo e experimentando coisas novas, viajando por lugares distantes, conhecendo pessoas ou vivendo culturas diferentes, parecerão anos. Enquanto que um mês na vida de alguém que vive perdido em rotinas, fazendo coisas quase que mecanicamente, trinta dias passarão tão rápido que parecerão ter sido um. E quando isso começa a acontecer, esta pessoa acordará no meio da noite pensando que o tempo está passando rápido demais.
Nisso, a melancolia já se levantou, contrariada, e foi embora da música da Legião Urbana. Tempo Perdido deixou de ser uma música pesada, virou amiga próxima novamente. Chego na porta da escola com a certeza de que “temos todo o tempo do mundo” . Entro pela porta sabendo que o tempo é relativo no universo e dentro de cada ser humano. Caminho sabendo que a vida é o significado que atribuímos à ele, o tempo.
Mal entrei no corredor e a Alice veio correndo, sorrindo como sempre, saltou e me deu um abraço. Subimos as escadas e chegamos na sala de aula do Gabo. Dali, de mãos dadas, partimos os três, tínhamos pouco tempo de sol. Nos apressamos para chegar até uma pracinha, ficamos lá, correndo e rindo por uns quarenta minutos. Naquela tarde os minutos não pareceram segundos, tampouco pareceram horas, pareceram apenas o que são. Quarenta minutos de vida, sem celular, sem trabalho, sem política, sem nada, senão, ela, a vida.
Acabei o dia leve, terminei sentado, vendo o pôr do sol com minha filha e meu filho, assistindo-os correndo pela grama. Fiquei ali, observando o tempo, o meu tempo, o nosso tempo, o tempo deles. E como no poema “Cogito” do Torquato Neto, apenas fiquei vivendo “tranquilamente todas as horas do fim”.