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Ludwig Larré. Foto: arquivo do autor.

SEVERIANO por Ludwig Larré

Um conto de Ludwig Larré

 

Os últimos raios de sol que aqueciam o corpo febril do velho Severiano foram pulando a cerca do horizonte. O brilho frio da estrela boieira se erguia de sinuelo ao minuano que soprava do poente, penetrando como pontas de lança os rasgões do poncho surrado do mulato. O velho vinha arqueado no lombo do tordilho, tossindo sem parar, volta e meia escarrando sangue. Perdera a esperança de encontrar algum rancho, algum fogón onde se abrigar naquela noite. Légua e meia adiante, um capão de mato podia ser trincheira para o vento e prover lenha para um fogo. Se chegasse até lá! O corpo, que já quase não obedecia o comando da vontade, foi-se ladeando nos bastos até se bolear no chão. Não encontrou forças nas pernas nem fôlego no pulmão para levantar. Encomendou-se à Virgem Maria, certo de que não amanheceria vivo sob a geada. O tordilho arrastava as rédeas junto ao dono. Severiano batia queixo e se contorcia em calafrios. O cachorro Jaguaçu se enrodilhou junto a seu peito, emprestando algum calor e conforto ao velho. Sem parar de tremer de frio, Severiano foi fechando os olhos, mergulhando em lampejos de sonho e delírios de febre.

* * *

Severiano nascera liberto.

O pai, um franco-argentino, capataz de estância em Canguçu, comprara e alforriara a mãe escrava. O moço Severiano, crescera na estância, trabalhando em toda a lida. Não tinha completado dezessete anos quando, inflamado pelos ideais abolicionistas, engajou-se ao 1º Corpo de Lanceiros Negros, sob o comando do Major Joaquim Teixeira Nunes. Demonstrou valor e coragem já em refregas e escaramuças menores, mas o batismo de fogo veio em setembro de 1836, na Batalha do Seival. Quando a coisa se pôs osca para a Brigada Liberal do coronel Antônio de Souza Netto, o pelotão de Severiano irrompeu o entrevero, quebrando as linhas inimigas de forma decisiva para virar o rumo da batalha e definir o triunfo das forças farroupilhas. Naquele mesmo dia 11, no Campo do Menezes, Severiano era um dos lanceiros que acercavam o comandante, quando Netto bradou “Camaradas! Gritemos pela primeira vez: viva a República Rio-grandense! Viva a independência! Viva o exército republicano rio-grandense!”.

Em 39, já homem da confiança dos oficiais e liderança entre a tropa, esteve na vanguarda das forças de Teixeira Nunes na ofensiva por terra que culminou na tomada de Laguna. Severiano foi personagem, herói e testemunha da campanha que resultou na Proclamação da República Juliana. De lá retornou por Lages e Vacaria, escoltando Luigi Rossetti, Anita e Giuseppe Garibaldi. Na longa marcha da retirada, tornou-se muito próximo do revolucionário da Sardenha, a ponto do estrangeiro pretender levá-lo consigo. Severiano agradeceu o convite, mas reafirmou o compromisso com Teixeira Nunes, prometendo juntar-se a Garibaldi no futuro. Seduzia-lhe a ideia de experimentar o balanço de um navio sob si em lugar do lombo de um cavalo.

Em 44, foi um dos sobreviventes do Massacre de Porongos. Quando os soldados de Chico Pedro Moringue caíram sobre os lanceiros desarmados, Severiano e um pequeno grupo de companheiros conseguiram apear a bolaços alguns dos atacantes e desarmá-los. Num ato de absoluta bravura, tentaram oferecer resistência e cobrir a retirada de Teixeira Nunes. Com o comandante mortalmente ferido, Severiano, também golpeado, mas ainda combatendo com ferocidade, precisou ser arrastado pelos companheiros para deixar o campo de batalha através de uma brecha que abriram na ofensiva inimiga.

Com a Paz do Ponche Verde, o soldado Severiano e outros dos poucos remanescentes do 1º Corpo de Lanceiros Negros, foram incorporados à Cavalaria Ligeira do Exército Imperial no Rio Grande. Sob o comando de Manuel Luís Osório, lutou ainda a Guerra do Prata, contra Uribe e Rosas, em 51 e 52. Ferido na Batalha de Monte Caseros, quando esteve na vanguarda das forças brasileiras com o 2º Regimento de Cavalaria, foi promovido a sargento. Após a guerra, seguiu com Osório para Jaguarão e depois São Borja, onde deu baixa do exército. O ferimento em Monte Caseros abatera a saúde de Severiano. A carga de um lanceiro inimigo lhe fraturara três costelas e comprometera seriamente um pulmão. Recuperou-se do ferimento, mas o pulmão nunca mais foi o mesmo.

Sargento Severiano, crioulo de Canguçu, acabou por casar, ter filhos e se radicar por São Borja. Montou um comércio, em sociedade com um português, e se ocupava das carreteadas de compra e venda de mercadorias, quando não arrumava uma tropeada, para não perder o velho costume de soldado de cavalaria.

* * *

Foi entre sonhos, delírios e lembranças dos tempos de guerra que o velho Severiano acordou aquecido e coberto, num catre de couro cru forrado com pelegos. Imaginara que ‘acordaria morto’ e coberto de geada, tendo apenas o tordilho e o cachorro Jaguaçu por testemunhas de suas últimas horas de vida, na volta de uma tropeada, por aquele corredor perdido entre as coxilhas missioneiras. Um fogão de barro aquecia a maloca de leiva e taquara em que se encontrava. Junto do fogo, uma bugra tomava mate com um bugrinho agarrado em cada perna. Por uma fresta na parede do rancho, viu o tordilho pastando a poucos metros. Do lado de fora da porta, Jaguaçu ergueu as orelhas, latiu e balançou a cola, quando o dono quis se erguer do catre. Tentou balbuciar alguma coisa, mas a voz mal lhe saía. Foi o suficiente, no entanto, para que a bugra ouvisse e, sem dizer uma palavra, saísse apressada porta afora com os bugrinhos de atrás.

Sem demora, o bugre pai entrou na maloca. Um índio por volta dos quarenta anos, cara lisa, melena comprida, negra e sedosa atada numa vincha de pano branco. Trazia na mão uma guampa de leite quente, adoçado com mel silvestre e temperado com guaco e malva, para dar de beber ao Sargento. Severiano ergueu o tronco com dificuldade para sorver o líquido, a cabeça apoiada pela mão do índio. Olharam-se no fundo dos olhos um do outro. Nenhuma palavra foi dita, mas a troca de olhar durou tempo suficiente para o velho entender que estava ali há dias. Quatro dias e quatro noites haviam passado desde que o bugre encontrara o Sargento duro de frio e quase morto, coberto pela geada de uma manhã de inverno, à beira de um corredor esquecido pelos fundos de campos missioneiros. Nenhuma palavra foi dita, mas os olhos de Severiano e do bugre se reconheceram. O velho bebeu todo o conteúdo da guampa e voltou a adormecer sob os olhos vigilantes daquele que o acolhera.

* * *

Fazia coisa de mais de trinta anos. Foi logo que o Sargento Severiano se estabelecera por São Borja. Tinha levado uma tropa de gado a Lages e retornava com dois companheiros, cruzando aqueles campos das Missões. Fizeram pousada em uma venda na encruzilhada em que se separariam. Os companheiros desceriam no rumo sul pela velha estrada do Forte de São Martinho da Serra, com destino a São Gabriel. Severiano seguiria a oeste no rumo de São Borja. Os dois tropeiros seguiram viagem logo cedo da manhã. Severiano tinha negócios a tratar com o bolicheiro, a quem traria encomendas do próprio comércio e mercadorias da Argentina na próxima carreteada.

Era um dia quente de dezembro. O Sargento mastigava um naco de salame, empurrado para baixo com uns goles de canha, proseando com o bolicheiro e a clientela no balcão da venda. Nisso, um tipo gordo, grande e sujo, barba e melena engruvinhadas, fedendo igual badalhoca, apeia de um azulego magro e judiado e entra no bolicho, de pés descalço e cascudos, batendo a poeira de um chiripá imundo igual à cara do dono. Fez-se silêncio no ambiente. Já vinha à meia guampa o mala cabeza. Pediu uma garrafa de canha, resmungou alguma coisa que ninguém entendeu direito e lançou um olhar debochado para os presentes. Severiano mostrou-lhe a argola do mango. O paisano baixou os olhos e o tom de voz. A prosa voltou a lacear entre os fregueses da venda, até que o forasteiro, na maior sem cerimônia, indagou se havia rancho de china por aqueles pagos.

A turma coçou os ferros pela falta de respeito com a mulher do bolicheiro, que ajudava o marido atrás do balcão. Antes que alguém respondesse, o estranho levou a mão em direção a uma guriazinha, de não mais que dez anos, que entrara correndo comércio adentro. A criança foi mais ágil e se safou da investida. Sargento Severiano já tinha a adaga desembainhada, mas o vendeiro também era destorcido. Sacou da pistola, apontou para a cara do maula e sentenciou:

– Se tem, é pr’aquele lado de lá, que é pra onde tu vai. E é agora!

O catinguento resmungou alguma coisa, levantou-se mostrando as mãos longe dos ferros, jogou um patacão para dentro balcão, disse “o troco é seu” e saiu mais ligeiro do que se podia esperar daquele monte de banha rançosa. Montou o azulego, xingou e amaldiçoou todo mundo, quase atorou o pobre animal com um relhaço, e saiu num galope. O bolicheiro chegou a fazer mira pela janela, mas o Sargento segurou-lhe o braço. Estava enfarado de ver morte, depois de tantos anos de guerras.

Severiano tratou dos negócios com o vendeiro, despediu-se, guardou na mala de garupa o fiambre que lhe haviam regalado para a viagem, montou e deu de rédeas no zaino para o rumo do poente. A mesma direção que tinha tomado o gordo maula. No caminho, ia matutando sobre os modos do cujo e os causos que ouvia nos últimos anos por aquelas bandas.

Volta e meia alguém contava de crianças sumidas, às vezes encontradas mortas e muito machucadas. Havia gente que acusava os bugres. Severiano sabia que aquilo não era coisa de bugre.

Pelo menos não dos que habitavam a região. A maioria já descendia dos primeiros índios catequizados pelos jesuítas ali pelos Sete Povos. Os que ainda viviam como selvagens já eram poucos e, mesmo pagãos, eram criaturas de alma boa e pura. Os bugres só matavam para se defender ou quando invadiam seus domínios. Isso era o mesmo que guerra, e a guerra tinha sido o ofício do Sargento. Os bugres xucros daquelas bandas, às vezes, até roubavam mulheres de invasores, mas jamais maltratavam crianças. Isso era coisa de gente muito ruim. E o mala cabeza catinguento bem podia ser a fera responsável pelos ataques.

Não tinha cavalgado três léguas, quando o sol do meio-dia começou a forçar uma parada para o fiambre. O zaino já vinha assoleado. Meia légua ao norte, conhecia um lajeado costeado por um bom mato para o descanso. Saiu da trilha pela qual cortara caminho e seguiu na direção da aguada.

Ainda faltava um bom pedaço até o capão de mato, quando ouviu gritos de criança. Beliscou o garrão no vazio zaino e, já quase apeando, escutou um tipo de rosnado que lembrava os resmungos do maula fedorento. Apeou a uns cinquenta passos do mato, e nisso um indiozito de uns seis, sete anos saiu rengueando barranco acima, com os trapos de um camisolão branco esfarrapado em tiras sujas de sangue. Atrás vinha o catinguento, que o Sargento chegou a pensar ser o próprio demônio, errando pegada no garrão do indiozito.

Deu tempo de desatar as três-marias, reborquear duas vezes e soltar a manicla. Quando o gordo – que até então não tinha percebido a presença de Severiano – escutou o assobio do couro cortando o ar e fez menção de se virar, um bolaço estourou ‘bem aqui assim lá nele’. O desgraçado caiu já desacordado, com o canto do olho desmanchado em sangue, carne e osso e um lado inteiro de cara e cabeça inchando como bexiga soprada. Severiano procurou o indiozito para acudir e ver a gravidade dos ferimentos, mas o coitadinho tinha sumido. O rastro de pingos de sangue desaparecia poucos metros mato adentro.

Enquanto isso, o maula começava a se mexer e tinha uns ataques de tremura. O mulato pensou em passar a gravata colorada naquela imundícia ali mesmo, mas estava enfarado de mortes. Tinha matado muita gente, mas sempre em combate. Já tinha até passado a degola, como golpe de misericórdia, em inimigo agonizante. Era até uma forma de respeito com um inimigo valente. Mas aquele mala cabeza não era homem para merecer a gravata colorada. Sabe-se lá quantas crianças já tinham sofrido e morrido nas mãos desse imundo sem-serventia.

O Sargento cortou quatro estacas no mato, fincou-as firmes ao chão, e amarrou o catinguento deitado de costas, com pernas e braços esticados e abertos. De volta à estrada, avisaria alguém para que trouxessem o comissário da vila mais próxima. Que a autoridade se encarregasse do pestilento, caso o sujo sobrevivesse.

Feito o serviço, foi até o lajeado para se lavar e dar de beber ao zaino. Só então avistou o azulego do imundícia, um quarto de légua abaixo, atado num galho de sarandi. Montou o zaino, desceu até lá, e voltou cabresteando o azulego. Agora podia desatar o coisa ruim das estacas e levá-lo ao comissário amarrado no lombo do pobre bicho.

Quando vinha voltando para onde deixara o prisioneiro, escutou um urro. Beliscou as esporas no zaino e encontrou o indiozito em pé junto ao catinguento. Segurava na mãozinha trêmula uma faca mui antiga, mas de bom aço, com cabo de chifre de cervo adornado com uma trança colorida de feitio guarani. Tinha capado o pestilento, que se esvaia em sangue por onde não restara nada.

Não satisfeito, o indiozito ajoelhou junto ao estaqueado e meteu-lhe a faca, numa estocada de baixo para cima, da boca do estômago até o coração, como quem mata porco. Só então virou-se para Severiano, encarando no fundo do olho do mulato, como quem agradece e pede silêncio. O Sargento estendeu-lhe as rédeas do azulego. O indiozito montou e trocaram mais um longo olhar. Seguiram cada qual seu rumo. Nenhuma palavra foi dita.

Severiano nunca contou a ninguém o que se passara naquela curva de mato à beira do lajeado. No mês seguinte, carreteando as encomendas do bolicheiro da encruzilhada, ficou sabendo que tinham encontrado a carniça do mala cabeza. O povo comentava que teria sido serviço de pai, irmão ou marido de alguma mulher com quem ele tivesse mexido. Nunca mais se soube de causos de criança morta ou desaparecida por aqueles pagos.

*  *  *

A febre do velho mulato baixara, mas não cedia. A bugra lhe dava comida na boca. O bugre lhe tratava com chás e emplastros de ervas, leite com mel, malva e guaco. Os olhos de ambos se encontravam como velhos conhecidos quando Severiano notou o cabo da faca na cintura do índio. Era a mesma faca mui antiga, mas de bom aço, com cabo de chifre de cervo adornado com uma trança colorida de feitio guarani. Quando, uma semana antes, recolhera o Sargento caído no amanhecer gelado das coxilhas missioneiras, o bugre reconhecera no tordilho o estribo de prata com o brasão da cavalaria em relevo. Era o mesmo estribo dos aperos do zaino que Severiano montava trinta e tantos anos antes.

A tosse do velho foi ficando mais intensa. O bugre correu para junto do catre e ergueu cuidadosamente o tronco do Sargento. O mulato escarrou mais uma plasta de sangue. Os olhares de ambos se encontraram demoradamente mais uma vez. O lanceiro Severiano pensou ouvir ao longe o toque de um clarim e foi fechando os olhos para nunca mais abrir. Morreu nos braços do indiozito missioneiro. Nenhuma palavra foi dita.

 

Ludwig Larré  – Santa-mariense auto-exilado em Porto Alegre é jornalista formado pela UFSM, tendo atuado, desde o final da década de oitenta em telejornalismo, produção de conteúdo e assessoria de imprensa no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. É servidor público estatutário da Câmara de Vereadores de Santa Maria, atualmente cedido à Secretaria de Estado da Cultura e lotado na assessoria de comunicação da Casa de Cultura Mario Quintana, na capital. Coleciona outras premiações em concursos literários como o próprio Felippe D’Oliveira, o Concurso de Crônicas da UFSM e o Concurso de Contos Cidade de Santo Ângelo.
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