Fui reativa quando o diretor me solicitou escrever um artigo para a edição do jornal impresso que faria a tradicional homenagem às mulheres no 8 de março, “qualquer coisa sobre mulheres”. Não tive paciência para ver naquele pedido um gesto de camaradagem ou reconhecimento. Respondi, com raiva, que sobre mulheres não se aprende lendo e sim no convívio com elas, desde que haja disponibilidade e sensibilidade para uma escuta entre pares.
Me sentira acuada por ser convocada a responder num único artigo, que circularia num único dia, aos não saberes dos homens sobre as mulheres. Na ocasião, eu matava um leão por dia em busca de equidade e de respeito num contexto cada vez mais tosco ao se tratar das relações de gênero.
Não recordo como acabou o impasse. Acredito ter relativizado e esquecido… até ontem! Uma sensação desconfortável e muito similar se repetiu enquanto assistia ao filme “A substância (2024)”, escrito e dirigido pela cineasta francesa Coralie Fargeat.
Apontado como “perversamente inteligente”, “sutil como uma marreta”, “sensacional body horror”, “genial”, “nauseante” entre uma infinidade de avaliações, o filme é tudo isso e muito mais. Perturbador, ele choca e tem, desde o início, um ritmo que não te deixa respirar. É um soco no estômago que também precisa ser forte para não abandonar a sessão antes do final.
O filme narra a história da famosa e já madura atriz Elisabeth Sparkle ( Demi Moore), e a quem restou conduzir um programa de aeróbica numa emissora de televisão. Ela recebe a notícia devastadora de sua demissão por não ser mais jovem e atraente aos padrões da emissora e para aquele tipo de trabalho. Em meio ao desespero, sofre um acidente e é quando um laboratório lhe oferta uma substância que promete o rejuvenescimento numa versão aprimorada dela mesma.
O filme tem o sci-fi e o drama como gênero base. A produção é tecnicamente muito bem explorada – ângulos, cores, imagens paradoxais, sons, metáforas e o uso do grotesco, e se desenrola entre uma crítica satírica e o horror ao abordar o drama sobre o etarismo, a sexualização da mulher e os padrões de beleza exigidos na sociedade, no caso, pela própria indústria cinematográfica.
Não vou aqui dar spoiler ou alongar a reflexão sobre o filme. Quem ousar, que o assista. Tomo dele o fato de prender e mexer com as emoções porque, entre outros fatores, ao caricaturar o machismo, remete àquilo que tem se escancarado nos últimos tempos: um ciclo tóxico de desumanização e de autossabotagem.
As mulheres têm pago um preço maior neste processo, com afetações na sua relação com o próprio corpo e em sua saúde mental. Seja pelo fato de estarem sucumbindo às promessas dos tratamentos de rejuvenescimento ao ponto de se deixarem deformar ou por acreditarem na impossibilidade de uma vida autêntica à medida que envelhecem. Se veem alijadas tanto do mercado de trabalho reconfigurado velozmente pelo avanço das tecnologias, quanto do “mercado da carne” onde os “homens preferem as novinhas”.
Não são todas as mulheres que conseguem passar pelo envelhecimento de modo saudável diante de tantas cobranças e expectativas. Pululam clínicas de estética, das sérias às duvidosas; cirurgiões plásticos se empenham em técnicas e procedimentos caríssimos como se o corpo fosse passível de intervenções contínuas (não me refiro aqui àquelas cirurgias reparadoras tão necessárias); a farmacologia expande a oferta de produtos da linha anti aging que prometem a juventude e autoriza o uso indiscriminado de medicamentos para emagrecer, todos fomentando a subjetividade do não reconhecimento do corpo real. Contexto este alimentado pela circulação do discurso midiático sobre o corpo perfeito e a juventude eterna, potencializado pelas redes sociais e pelos efeitos dos aparatos tecnológicos a manipular imagens com o uso de filtros, selfies, a produzir corpos midiáticos autorizados a existir.
A questão é complexa e multifatorial. O abismo entre o corpo real e o corpo midiático faz aumentar o número de pessoas (de todos os gêneros) com corpos e identidades alteradas. O fato é que o envelhecimento coloca em cena a questão do idadismo ou etarismo, que sempre vem acompanhado do preconceito e da discriminação. Envelhecer significa enfrentar não apenas a impaciência e aceitação do sujeito com o próprio processo, mas também a daqueles que o cercam, principalmente, se estes forem jovens.
É recorrente a afirmar que depois dos 50/60 anos o reconhecimento da pessoa enquanto sujeito socialmente identitário, desaparece. A invisibilidade que a velhice representa numa sociedade na qual a juventude é ideal de beleza, de consumo e em que a importância da produção é superada pelo valor da marca, já se tornou uma preocupação de ordem mundial.
O relatório da ONU sobre o idadismo ou etarismo, divulgado em março de 2021, já indicava que uma em cada duas pessoas no mundo têm atitudes discriminatórias contra os idosos, afetando sua saúde física e mental e reduzindo a sua qualidade de vida. E, não raro, isto acontece na própria família.
Estamos todos imersos na distopia do mundo atual. Há estudos a indicar que as sutilezas e as singularidades dos sujeitos em geral se esvaem num contexto que desconhece o tempo enquanto qualidade, e no qual as experiências de temporalidade não são reconhecidas se não forem codificadas pelas demandas velozes do processo de modernização centrado nas tecnologias. Tais reconfigurações afetam os valores sociais, os modos de ver e fazer, instaurando uma política de sofrimento que dá maior evidência a quadros depressivos. Assim, depressão, frustração, abandono, medo, solidão, descrença são apontadas como parte do ciclo do envelhecimento, cujo tempo é outro, menos veloz, mais reflexivo, não menos intenso, apesar de limitações outras. E a isso se soma o fator da exclusão e da desigualdade social, que demanda atenção e políticas públicas voltadas a prevenir e sanar suas consequências.
Não precisa ser assim, ainda que se vivencie tempos de tanta obscuridade e violência. Nem todos se sujeitam aos ditames do mundo externo, o que implica ter uma subjetividade forte e bem construída. Há gente velha e irreverente, disposta, bem humorada a encarar os perrengues que a vida apresenta. Isto não quer dizer que é fácil ou que se está a viver numa bolha. Não raro a gente segue matando um leão por dia, mas eles já são menos assustadores. E se a vida não foi em vão, sabemos que, na velhice, tudo se torna muito relativo e libertador, tal como no trecho do poema de Jenny Joseph, abaixo.
“Quando eu ficar velha, vou me vestir de púrpura.
Com um chapéu vermelho que não combina e não me deixa bem.
Quero gastar minha aposentadoria em conhaque, luvas de seda, sandálias de cetim, e depois dizer que não sobrou dinheiro para a manteiga.
Quero sentar-me no chão quando estiver cansada, pegar amostras grátis nas lojas, apertar os botões de alarme, raspar minha bengala nos gradis das ruas.
Para compensar a sobriedade de minha juventude, vou sair de chinelos na chuva, e colherei flores nos jardins alheios. E vou cuspir no chão. Vou usar blusas horríveis, vou poder engordar (…)”
Jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa. Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs, duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras, dois gatos…