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Imagem de Daniela Spada /Pixabay

Entre memórias e levezas por Rosana Zucolo

De repente, o riso chegou. Veio solto, inesperado, surpreendente. Ocupou todos os cantos, todas as brechas.

Por muito tempo a leveza estivera distante dos dias. Apesar das tentativas, as memórias de dor das perdas – individuais e coletivas -, geradas pelos embates e tragédias dos últimos anos  as haviam conduzido a uma espécie de tristeza instalada a apagar o riso espontâneo.

Sobreviviam de modo cinza, ainda que solidárias, não raro solitárias, a dizer que tudo passa, mas não se sabe quando. E com uma ponta de amargura ficavam a indagar se o bom humor criativo de anos atrás havia ido embora para sempre, todas as perspectivas encerradas, as pessoas suaves e leves, extintas. Ao menos no sul do país.

Num dia de saudade e na impossibilidade de se reunirem – uma estava com o pé quebrado e a outra reclusa por conta do herpes zoster -, travaram uma longa conversa ao telefone. Foi quando começaram a gargalhar. O riso veio aos borbotões ao perceberem o tempo que ficaram trocando informações e  pesquisa sobre medicamentos e vitaminas em sites, como comprá-los, a que preço e os efeitos constatados nelas próprias ou em pessoas próximas.

Foram às gargalhadas ao recordarem que anos antes a pesquisa tinha outro foco, porque uma era louca por sapatos – até virou crônica em tempos menos sombrios -, e a outra, fissurada em bolsas funcionais.

Não sabem como começaram, mas lembram que foi nos tempos de faculdade. A que colecionava sapatos ficara deslumbrada quando surgiu o All Star. Ainda não era famoso e era baratinho. Comprou um de cada cor. Cada dia da semana saía com um diferente. Usava-os até rasgar. Quando não dava mais, comprava outro igual. E ao descobrir que não estavam mais substituindo as cores no mercado, começara a poupá-los e a guardá-los. Voltou-se então, aos pares alternativos. E tomou gosto pela coisa! Sapatos, sapatilhas, botas, tamancos, sandálias altas, sandálias baixas, chinelos de salto, chinelos sem salto, rasteiras, tênis, salto fino, salto alto, plataforma, cano alto, cano curto, meia-perna…havia alguma coisa a mais e calçável? Ela tinha! Ao longo dos anos foi comprando e guardando. A família descobriu a fissura e os presentes eram…sapatos! De todos os tipos!

O problema teve início quando ela percebeu que não conseguia ficar sem comprar o novo modelo que aparecia na vitrine. Começou a faltar espaço em casa. Numa das inúmeras mudanças o filho perguntou quem ficaria com o quarto maior, ela ou os sapatos? Dia de faxina, a secretária levava quase um turno inteiro espanando os ditos cujos. Já eram 120 pares!  Ela, então, decidiu acabar com o vício, nem que fosse na marra. Passou a evitar as vitrines, a não ler revista de moda e a controlar-se para não espichar o olho aos sapatos das colegas.

Num dia de vacilo foi vista entrando de costas numa loja. Comprou o lançamento exibido na vitrine e correu para casa. Uma amiga, falante, viu e espalhou. Ela sumiu e passou mais de seis meses sem comprar um par sequer. Doou metade e dizia que estava sob controle. E sim, os sapatos eram os de sempre, mas em uma semana trocara de óculos oito vezes.

Já a outra não resistia a uma bolsa, preferencialmente, as grandes e originais. Literalmente era a guria magrela a arrastar uma bolsa quase maior do que ela. Não necessariamente precisava ser de grife, mas singular o suficiente para assegurar a sua autenticidade e nunca ser confundida. E o cabide foi acumulando bolsas em lona, brim, couro, crochê, feitas à mão, compradas em feiras, poucas adquiridas em lojas especializadas, mas capazes de ir da faculdade à estrada nos finais de semana.

Mochilas, tiracolo, baú ou transversais não importava desde que fossem suficientemente grandes para levar alguma roupa, agendas, livros, canetas, cadernos, blocos, rolos de filmes e a velha máquina fotográfica analógica numa época em que não existiam celulares ou laptops. As preferidas eram usadas até enjoar ou rasgar.  Na época, o ombro resistia fácil ao peso que se acumulava. A qualquer sinal de cansaço era só atravessar a alça no outro lado. Coisa possível quando se é jovem e olha a vida lá adiante.

As bolsas assumiram múltiplas formas quando foi o tempo do mundo do trabalho. Das pastas com bolsos para os celulares e computadores, a sacolas de todos os tipos e capazes de serem levada a tiracolo, penduradas ou com rodas para carregar o excesso de peso. Num dado momento ela percebeu que estava a usar duas ou três bolsas simultaneamente, variando o lado de uso, conforme o peso do ofício. Não importava mais o estilo, quando muito a estética. A ordem era a praticidade e a facilidade em carregar a maior quantidade de materiais de uma só vez.

Certo dia  percebeu várias colegas com o mesmo número de “carga”.  Por força das circunstâncias e do ofício, ali todas operavam no modo “cabide”, estilo que virou o modelito da firma.

Dias atrás leu, em algum lugar, que o conteúdo de uma bolsa é revelador da vida de quem a carrega. Nunca pensara em tal coisa que pareceu uma observação inútil. Afinal, por muito tempo livros, pastas, provas, notas, xerox de textos, cabos, laptops, microfones, caixas de som entre muitos apetrechos tecno-científicos constituíram a maior parte do conteúdo carregado. No entanto, a ideia ficou ali, persistente, a incomodar. Tanto que ela resolveu olhar a bolsa atualmente usada. Bem pequena, comprada com o objetivo de aliviar peso e deixar fluir a vida. Ali não deveria caber muitas coisas.  E foi quando tomou um susto. De dentro da minúscula bolsa saíram: uma carteira de documentos e dinheiro ( ainda que sem ele em tempos de pix); um copo retrátil de silicone do Inspire Pilates; duas fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim; dois pares de brincos, um em turmalina negra, outro de ametista; um prendedor de cabelo; um rabicó marrom; um vidrinho minúsculo de perfume francês presenteado anos atrás por uma amiga; um gloss labial; um esmalte cor de renda; uma lixa de unha, um removedor de cutícula, um botão de pérola, tíquetes de estacionamento,  duas receitas médicas, nota fiscal da compra de uma mala de viagem, nota da farmácia de manipulação, nota do hotel em Porto Alegre, nota do ifood,  nota do posto de gasolina, nota do Camicado, em Salvador, nota da pizzaria Bela Trento, uma bula de Artrosil, a análise do advogado sobre a revisão de proventos, cartões de visita daqueles que a gente recebe por onde passa, um lembrete de CNPJ, uma cartela de magnésia bisurada, um guardanapo de papel, três palitos envelopados e duas gomas de mascar enroladas no papel e guardadas ali para descarte em algum momento!

Sim, os indícios do modus vivendis cabem numa bolsinha…

E este texto não tem um desfecho. Ele é um rasgo na memória de um percurso. Permeia o tempo como sapatos protegem os pés, bolsas contam histórias e medicamentos nos ajudam ir mais longe. E o humor criativo? Ainda anda aos soluços, mas está ali, à espreita.

Jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa.  Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras, dois gatos…

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