UM SONETO
um soneto me atropela na calçada,
e eu reconheço, pois já compus sonetos.
elegante, a pose metrificada
de seus dois quartetos e dois tercetos.
sem me pedir desculpa segue adiante,
levando em frente a sua alegoria.
a imagem toda fica em minha mente
a contestar que isto seja poesia.
então já não consigo dar um passo.
e ele já não vai mais imponente,
pois feio agora é o seu compasso.
quero gritar-lhe que eu fui descuidado
e desculpar-me pelo incidente
que lhe deixou assim de pé quebrado.
DA PEDRA
Ponho-me a olhar a pedra
e a pedra a me olhar põe
na pedra o meu olhar de pedra
a molhar.
É verde e antigo meu olhar
na pedra: é limo.
A pupila a pedra a pedra pupila a perda.
E me olha dura.
E tanto bate em minha
alma
tanto bate:
até que fura
VERTIGEM
Quando me falta o chão
e eu paro,
meus pés
estão nem aí,
eles vão
Esta é a ponte:
o poema
então não recuo
em face do enjoo
minha cabeça
entende e
estende o voo
A PROVA
Estamos sendo postos
à prova?
Já fomos exortados
no passado a
não nos dispersarmos,
pois só assim seríamos
uma Nação livre.
Já nos fortalecemos
dizendo-nos com emoção
que não devíamos largar
a mão de ninguém, para
enfrentar o obscurantismo.
E justo agora, quando
as nuvens de uma tempestade
invisível apontam no horizonte,
somos exortados a nos isolar,
a não pegar a mão de ninguém.
A lição suprema é de que
devemos fazer o bem
sem olhar a quem.
Ser humano é estar junto
mesmo que haja quilômetros
de separação e paredes, muros,
protocolos ou convenções.
Esta é nossa essência
e nossa fortaleza.
Solidão é pensar em si mesmo
e cuidar apenas de si.
Não há solidão quando
todos cuidam de todos
– prova de humanidade.
O amor cresce apesar
das ausências e das distâncias.
E quando a tempestade passar,
vamos compreender melhor
a dimensão de sua beleza.
DOS ILUMINADOS
Quem tem uma estrela
não receia os trechos
mais obscuros da estrada.
Quem tem uma estrela
não teme o terror
da noite mais tenebrosa.
Quem tem uma estrela
conhece a missão de iluminar
não apenas o seu
mas também o
caminho dos outros.
E o que é uma estrela?
Quem tem sabe.
A CURA
Como ser louco
e ter a lucidez de
não abandonar a loucura?
Isso não é sobre ter
razão ou sobre perder o juízo.
Isso é sobre amar,
amar e ser amado.
Isso é sobre ser louco,
E só assim descobrir a cura.
Quando te encontrei, Amor,
a luz se fez como magia.
De tal modo que não há
mais distinção possível
entre realidade e fantasia.
Isso não é sobre ilusão
ou sobre a razão perdida.
Isso é sobre sonhar
fazendo disso um projeto de vida.
MORRER DE AMOR
Quem não viveu um grande amor
Não vai saber o que é viver.
Porque viver é grande mesmo
Quando se vive pra morrer de amor.
Quem nunca morreu de amor
Vai morrer de qualquer jeito.
Pois quem tem um grande amor sabe
que qualquer jeito não é jeito de viver.
Pra morrer de amor
É preciso saber viver.
É grande a sabedoria
De morrer pra viver de amor.
De amor não se morre um dia,
Pois viver sem amor não é vida.
Morrer de amor é vida sempre
Que assim a morte certa se adia.
NO LABIRINTO
Sem me notar
sem Minotauro
no labirinto
que se forma
na arquitetura dos
teus lábios,
é o que sinto:
perdido,
abandonado – eu minto.
No escuro de ti,
no fundo
deste labirinto,
contigo só posso mesmo
estar junto.
Sair de ti
só mesmo fugindo,
fingindo asas de cera
em busca do sol.
ATRIZ
O palco – pedaço anônimo,
no curto espaço
entre face e alma,
nele se mostra,
sob um pseudônimo,
atriz imóvel
que perverte a calma.
Não abre a boca
mas se ouve o grito.
Não move o corpo
mas se pressente o gesto.
Não é sinal de um
coração aflito,
mas é da dor
o mais sereno resto.
A cicatriz é
só indumentária
da verdadeira atriz lá dentro.
Se por um triz
o corte é linha imaginária,
na alma o corte
é sempre documento.
Se a atriz
atrai o olhar embevecido,
a cicatriz o trai
por não ter sido.
O rasgo do sorriso
não repele
o talho permanente
sob a pele.
NA BEIRA DO CAMINHO, SEM MAIAKOVSKI
Eu sou o mais velho de todos
e o mais alto.
É a primeira noite,
e eu me aproximo
com todo o cuidado.
Entro no jardim
e planto uma flor.
Eles não dizem nada.
Na segunda noite,
meu irmão, um pouco mais novo
e mais baixo também,
sem tentar se esconder
entra no jardim,
cuidando para não
pisar nas flores,
e afaga o cão.
Mas eles continuam
a não dizer nada.
Até que um dia,
nosso irmão mais novo,
uma criança ainda,
entra sozinho na casa deles,
acende a luz e,
conhecendo a indiferença deles,
empresta-lhes a voz.
Mas tudo o que têm a dizer é:
“o que você está fazendo aqui?”
E, diante das verdades
que ouvem daquela boca infantil
e também porque
não querem ouvir ou entender,
limitam-se a dizer: “é mentira!”
(Depois de Eduardo Alves da Costa)
PEDRAS
Não podeis comigo, pedras.
Eu escrevo poemas escavando
a parede. E quanto mais e
mais escrevo/mais escavo
e mais e mais e mais eu cavo
a funda arqueologia/minha poesia
fuga para o fundo e para dentro.
Quanto mais escrevo, pedras,
lavro, permanente, uma rubrica,
domo, pedras, a tenacidade que
se afirma no que vos institui,
pedras, dura conjugação de
ego e argamassa: pedras.
Não podeis comigo, pedras.
Aprendi vossa lição mais rija.
Pedras, não podeis comigo.
Que tão bem sou pedra.
SINTAXE VITAL
Se tive predicados, verbais ou nominais,
se fui objeto indireto, simples adjunto,
agente da passiva, quejandos ou que tais,
não preciso que me lembrem.
Quando eu repousar defunto,
do meu pretérito mais que perfeito
quero apenas que resgatem
que eu fui um bom sujeito.
Orlando Fonseca, nascido em Santa Maria‚ em 7-10-55. Professor Titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura – PUCRS, 1997 e Mestre em Literatura Brasileira – UFSM, 1991. Exerceu os cargos de Secretário de Município da Cultura (2001-2004) na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM (2010-2013). Cronista em mais de um veículo de Santa Maria, desde 1977, atualmente do Jornal Diário de Santa Maria e do Portal Claudemir Pereira. Tem vários prêmios literários, destaque para o Prêmio Adolfo Aizen, categoria aventura, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia, em 2002; também finalista no Prêmio Açorianos, da Prefeitura de Porto Alegre, pelo mesmo livro, em 2002. Autor de várias obras em gêneros diversos, destaque para Poço de Luz, novela, IEL, 1989; O fenômeno da produção poética, ensaio, Editora da UFSM, em 2001; Da noite para o dia e Na marca do pênalti, novelas juvenis, WS Editor, 2001 e 2011, e o Musical Imembuy, com músicas de Otávio Segala. Atualmente exerce o cargo de Presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais.
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