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Marcha das vadias de Santa Maria/RS. 2012. Foto: arquivo pessoal do autor.

Uma carta nunca enviada, por Felipe Freitag

Pelo mês do orgulho LGBTQIAPN+

Em memória de Nei D’Ogum, de Ricardo De Agué e de Verônica Oliveira.

 

Santa Maria, Rio Grande do Sul, alguns dias de março de 2009 em doses homeopáticas.

 

“Mas eu vejo suas cores reais

Brilhando por dentro

Eu vejo suas cores reais

E é por isso que eu te amo

Então não tenha medo de deixá-las aparecerem

Suas cores reais

Cores reais são lindas

Como um arco-íris.”

(Na voz de Cindy Lauper)

 

Oi, pai. Oi, mãe. Escrevo esta carta marejando…olhos inchados…garganta apertada…dias tentando…

Sabem, as cores são lindas quando podemos vivê-las. Meu mundo tem sido cinzento faz muito tempo. Vocês veem isso, porque vivo em uma luta constante de melancolia e angústia de não poder viver o meu colorido. Descobri, há muito, provavelmente já aos 13 anos, que eu pertencia a essas cores destoantes e entendam que isso nunca foi fácil de admitir. Pressões, né. Então, tive que abafar esse colorido o quanto pude, vivendo uma adolescência reclusa, medrosa, temerosa. Eu exclui a minha vida, de certa forma.

Compreendam, por favor, que desde agosto do ano passado, eu precisei tomar uma decisão, a de aceitar ou não a MINHA VIDA, A MINHA COR. Já me passou, muitas vezes, principalmente por causa da igreja, do “pecado”, da cidadezinha pequena…Não é fácil lidar com todo esse furacão na mente quando se é adolescente e quando se viveu uma infância repleta de: “mariquinha, marquinha, mariquinha…” Eu nem sabia o que era essa palavra, mas eu sofria. Os risos, as surras. Aquela vez que tiraram a minha calça e a minha cueca em plena aula de Educação Artística e nada foi feito e eu nunca contei isso a vocês. Me matar.

Mas eu escolhi VIVER. Vejo que meu colorido é lindo, não fere ninguém, não machuca em nada, ou melhor não deveria. Amar é divino e Deus, esse Deus que tanto me culpou, ama essas cores todas em mim. Hoje, estou certo disso. Pode parecer difícil para vocês aceitarem esse “pavão misterioso, pássaro formoso”, mas eu sempre fui isso, basta vocês colocarem a cachola para funcionar e lembrar do Felipe criança. E vocês adoravam tanto o jeitinho de ser desse Felipe criança.

Meus amados pais, peço que me ajudem com o amor de vocês. É de amor, é sobre amor que escrevo. Também tem a ver com informação e compreensão. Isso será crucial para que eu viva bem e volte a ter aquela felicidade genuína que me foi sendo roubada aos poucos. Lembrem, lembrem daquele menininho de dentes da frente separados, sempre agitado e criativo e feliz e encantado pela vida. Aquele menininho da mãe e do pai que conseguia fazer os outros rirem como se fosse um comediante em seus manejos espalhafatosos das mãos e do corpo. Era minha paz balançando forte.

Queria; estou tentando ser o mais lírico possível ao tratar disso com vocês. Acho que vocês merecem que seja dessa forma. Também, porque vocês andam poluídos por estereótipos e por ideias errôneas que a sociedade apregoou em vocês. Amo vocês. Espero que continuem me amando depois de lerem essa carta. Aceitar a minha diferença que nem é tão diferença, porque somos muitos com essas muitas cores. Lembrem do rebento que vocês cuidaram e que podem ainda cuidar, já que a sociedade continuará me ferindo. Nada muda e tudo muda. O Felipe Freitag é o mesmo, apenas não ama do modo como provavelmente vocês projetaram para mim.

FELICIDADE é a cura. Amar sem culpa. Agir sem culpa. A culpa sempre foi o meu pior pesadelo. A culpa de não corresponder com o que esperavam de mim, entretanto, mãezinha, como não visualizar quem sou eu de verdade quando você nunca tolhia o garotinho que imitava a Elke Maravilha…

Ano passado eu me apaixonei. E, então, tudo mudou. Não se importem com o que virá depois. Os conflitos, as discriminações…Ah, as piadinhas eu já estou acostumado desde pequenininho. Enfim, eu sei que a guerra apenas começou. Sei também que lutar tendo vocês ao meu lado será bem menos dolorido. Nem que seja para apenas arrancar as flechas lançadas ao meu corpo tal qual em São Sebastião. Vocês me ensinaram as coisas da vida e a principal delas foi LUTAR. Lutem junto de mim.

Rotulações serão inevitáveis, mas eu não me importo mais. E não se importar diz muito sobre o Fê que estou resgatando. O Pido, o Pido de vocês, esse meu apelido para poucos, continua aqui. No entanto, se tudo isso desapontá-los, peço perdão. Sem vocês a guerra será pior. É de sobrevivência, é de felicidade que falo. NÃO É UMA ESCOLHA. Nasci assim. Não desistirei de ser feliz do meu jeito caso vocês desistam de mim. Tenho ganhado forças por ter pessoas ao meu lado me mostrando que isso não é errado. Tenho conhecido pessoas fantásticas. Tem um cara com o qual me identifico muito. Quando vejo alguma fala dele, eu sinto ESPERANÇA. O nome dele é Nei D’Ogum. Espero que vocês o conheçam um dia.

Sim, mais do que uma carta, as linhas que escrevo são um desabafo, pois não consigo mais viver guardando isso. Ah, espero que vocês também conheçam o Alisson. Faz quase um ano que ele tem me auxiliado muito. Nunca contei, mas nos encontramos, em um café, em Frederico, e foi uma tarde muito especial para mim. Senti borboletas no estômago (não sei se esse termo é de conhecimento de vocês).

Me consome, negativamente, todo os dias, ter de ser uma espécie de mentira para vocês. Ter que usar uma máscara para deixá-los bem ou protegidos. Minha identidade e subjetividade reais. Minha personalidade clama pela realidade. Vocês lembram dos dois meses em que fiquei sem ir para a escola, na 7ª série, mas acho que nunca souberam o porquê. Eu estava saindo do casulo e não tinha ninguém para me ajudar. Apanhar, chegar roxo, em casa, e sempre inventar uma desculpa. NUNCA contava que era agredido em meio a uma enxovalhada de vozes de garotos: “viadinho, viadinho, viadinho, puto, puto, puto.”

Já disse, ruim com vocês, muito pior sem vocês. Pode ser que me reprovem e isso me fará infeliz, pois vocês são uma parte importante dessa luta que começa agora. E aí, talvez a única solução seja partir desse mundo. Enquanto escrevo, choro pensando que vocês podem ficar decepcionados comigo. Não, vocês não vão me fazer crer que eu estou errado em ser feliz. Basta de uma vida de socos…

Não quero ser cruel com as palavras, por isso sempre nessa tentativa de suavizar ao máximo as coisas para vocês. Mas não vejo maneira de fazer senão sendo direto, usando um rótulo que me designa: Pai! Mãe! EU SOU GAY. É isso ou tudo isso ou só isso, pois pode ser algo leve e suave.

Com carinho do filho que os ama tanto…

Felipe Freitag

 

 

 

FELIPE FREITAG é graduado em Letras Português e respectivas literaturas (licenciatura) pela UFSM e é mestre em Estudos Linguísticos pela mesma instituição. Professor a mais de dez anos, dedica-se, também, à escrita literária.

 

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