“Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol
parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no
céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição.
Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam
infelizes para sempre. E foram.”
(Caio Fernando Abreu. Aqueles dois)
Teimo em descobrir as errâncias (não confundir com erros) dos sujeitos que entrelaçam vidas, ideais e histórias. Há quinze anos, moço recém chegado de uma cidadezinha interiorana, colocaram-me um agasalho de dúvida, um chapéu de incerteza e afiançaram em mim uma incógnita. Meu escritor favorito (sim, eu tenho, nunca neguei e nunca negarei a existência do meu escritor favorito), Caio Fernando Abreu, cuja vida e obra me fascinam, entrecruzara sua entidade (sim, eu o entrono) com a entidade (também o entrono) de um santa-mariense na década de 1970. Tempos depois, tomei coragem e fui conversar com esse santa-mariense. Desagasalhei o mistério. Reproduzo a seguir, um pouco da história, exultante pelo segredo desnudado e pela confiança a mim cedida por esse homem santa-mariense.
Porto Alegre, 1974 ou 1975, show de Caetano e de Gal no Gigantinho. Eis que aparece uma figura andrógina, enleada na desterritorialização dos corpos. Uma amiga em comum do Caio F. e do homem santa-mariense os apresenta na fila do evento.
_Sérgio, este é o Caio! Caio, este é o Sérgio, lá de Santa Maria.
_Vou te dar um abraço.-disse Caio.
O santa-mariense, apesar de ler as crônicas de Caio, no jornal Zero Hora, e de vê-lo passar pela Rua da Praia algumas vezes, não havia, ainda, despido sua alma. Depois de muito conversarem sobre literatura, música, filosofia, astrologia, existencialismo, banalidades cotidianas, tinham a impressão de serem conhecidos há muito tempo. Foi o esperar de fila mais satisfatório da vida de Sérgio até então. Sob efeito do ácido (imagem geracional da libertação do corpo e da mente a partir dos anos 1960), “aqueles dois” foram até um apartamento e coincidiram sob “o amor que não ousa dizer seu nome”.
Existia, em Porto Alegre, um bar chamado Alaska, na zona boêmia da cidade conhecida como “esquina maldita”, que reunia a cena artística da cidade, a militância de esquerda e que aceitava, sobremaneira, “as pessoas em sua loucura”. Nesse bar, a amiga, aquela que os apresentou, perguntou ao santa-mariense como foi estar com o Caio. Talvez o uso do ácido tenha-o privado de “conhecer” o Caio ou quem sabe a alteração dos sentidos o tenha feito comungar tão bem junto do Caio que as lembranças se perderam nesse tempo-espaço tão demarcado.
O santa-mariense respondeu à Malu:
_Adorou a minha loucura e eu a dele. Caio é cósmico.
Os dois encontram-se ainda algumas vezes. Em uma delas, na Feira do Livro de Santa Maria, alguns anos depois do primeiro encontro. Caio Fernando Abreu já era um ovacionado escritor e atraia muita atenção dos jovens, porque os traduzia e os dizia nas letras e nas páginas de seus livros. Terminada a sessão de autógrafos, diferentemente dos demais escritores, Caio F. juntou-se aos jovens na rua onde hoje é o Viaduto Evandro Behr. Caio, segundo a nossa personagem principal, ouvia mais do que falava e quando falava era como se “brincasse sério”. Quem sabe, alguns ouvidos não percebiam as ironias por detrás de seu discurso “brincalhão”. Caio não tinha uma aura de escritor. Pertencia àquele tipo de gente que se sabe gente porque estava inserido dentro de uma humanidade típica de sua geração.
O encontro já não era o mesmo. Nosso santa-mariense estava tão “fissurado na vida e na obra de Caio” que perdeu a coragem de contatos maiores com ele. Caio já pululava em sua mente como um célebre escritor e houve um distanciamento, justamente, pelo santa-mariense se imbuir da imagem de fã que não tem suficiente intimidade com o autor vivo ou com o vivo autor. Assim, Sérgio, por timidez, não trocou mais do que algumas palavras com Caio.
Entretanto, isso não impediu de que se encontrassem mais uma vez em Porto Alegre, quando Caio escreveu e atuou em uma peça infanto-juvenil. Sérgio, com mais coragem, após a peça, teve momentos fantásticos ao lado de Caio. A última vez em que tiveram uma comunicação mais integral foi, no Rio de Janeiro, na Praia de Ipanema, mais especificamente no Posto 8. Sérgio era hippie e em função da sua atuação política, precisou largar sua profissão de professor, em Santa Maria, e de “mochilão” partiu rumo ao RJ. Lá, o santa-mariense viu um Caio F. diferente do Caio F. de e em Porto Alegre. O Caio F. no sul do Brasil, parecia agrupar-se, enturmar-se com mais facilidade. Caio era como os demais jovens de sua época: todos conquistavam amizades espontaneamente, entre uma conversa e outra sobre “a tia Bethânia” e “a tia Gal”.
No Rio, Caio parecia recursar-se ao toque; isolava-se. Não era um “doce bárbaro” como em Porto Alegre. Sérgio ficou sabendo que Caio havia levado uma surra por conta das suas opiniões contrárias à ditadura militar e que se sentia um estrangeiro no Brasil. Logo, Caio foi para a Europa, vivendo de trabalhos braçais e imergindo imensamente na cena da contracultura.
As histórias extraoficiais sempre me seduziram de um modo enfeitiçador. Ouvir a perspectiva do outro é para mim como a essência de minha própria vida. Espero que a palavra o adoeça, caro leitor, uma vez que o homem santa-mariense continuará não sendo nomeado e, portanto, o mesmo enigma que me enamorou aos 21 anos, está sendo colocado diante de você. Descubra-o.
*Livremente inspirado em fatos reais. Sérgio e Malu são nomes fictícios.
FELIPE FREITAG é licenciado em Letras Português e respectivas literaturas (licenciatura) pela Universidade Federal de Santa Maria e mestre em Estudos Linguísticos pela mesma instituição. Em 2007, aos 19 anos, recebeu menção honrosa pelo poema Bolachas de ardem, no Prêmio Lila Ripoll de Poesia, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, gerando publicação de seu poema em coletânea com os demais autores premiados. Em 2009, aos 21 anos, foi um dos onze vencedores do Prêmio Valdeck Almeida de Jesus de contos LGBTs, com o conto O templo das mãos, o qual foi publicado em coletânea na Bienal do livro de São Paulo no mesmo ano. Tem contos, crônicas e poemas publicados, em revistas, em jornais e em sites e blogs especializados em autoria literária. Dedica-se à arte literária como percepção obsessiva do cotidiano, em seus desmembramentos das expressões humanas. O caos do contraste é a essência de seus textos, nos quais passado e presente emulam-se para a conquista de um movimento de grito em busca e apropriação de certa paz interior. Seu ofício é, antes de tudo, um desvendar das banalidades da vida, um recortar de imagens do humano.