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SARAMAGO PARA SEMPRE | por Cátia Simon

 

“Não encontrou nada na córnea,

nada na esclerótica,

 nada na íris,

nada na retina,(…)

nada no nervo ótico,

nada em parte alguma. (…)

Não lhe encontro qualquer lesão,

os seus olhos estão perfeitos.”

Ensaio sobre a cegueira

 

Em meio às comemorações do centenário do escritor português, José Saramago, ocorre-me imediatamente a lembrança do impacto que senti com a leitura de O ensaio sobe a cegueira, publicado em 1995, às vésperas de receber o Nobel de Literatura, em 1999. Não era o primeiro livro dele que lia, mas foi de tal modo perturbador que já o coloquei lado a lado com A Metamorfose (1915), de Kafka e A paixão segundo GH (1964), de Clarice Lispector. Outra lembrança inesquecível do escritor é o seu depoimento no documentário – Janela da Alma (2001) de João Jardim e Walter Carvalho.

A ideia do escritor a partir do referido romance é desvelar “o que é isto de ser-se um ser humano a partir de uma situação.” Tal afirmação foi veiculada em entrevista à Revista Bravo, em 1999. E por esse fio também podemos discorrer sobre as obras citadas de Kafka e Clarice Lispector. Em A metamorfose, Gregor Samsa desperta de sonhos intranqüilos sob uma nova forma, a de um inseto monstruoso. Dessa realidade ficcional deriva o drama de todos que estão ligados direta e indiretamente ao personagem principal. Em  A paixão segundo GH, a narrativa inicia com seis travessões e a tentativa de entender o que viveu pela personagem-narradora, GH. Será no quarto da empregada despedida há seis meses que a escultora descortinará um mundo até então invisibilizado. Lá irá comer a massa da barata, transcendendo o próprio ato.

José Saramago propõe a inexplicável cegueira contagiosa frente à impossibilidade de enxergar a miséria de “ser-se um ser humano”. Uma realidade ficcional perfeitamente verossímil e dolorosa. Tal condição me leva a estabelecer um paralelo da ficção com a realidade provocada ao ver um número significativo de pessoas em frente a quartéis pedindo intervenção militar em nome da liberdade e da democracia. Causa estranheza pela contradição inerente ao propósito.

O caos se instala à medida que as personagens vão perdendo a humanidade e a cegueira torna-se dominante. Em Janela da Alma Saramago nos fala sobre a precariedade do nosso olhar. O escritor relata sua experiência com o lustre do teatro D. Maria, em Portugal. Fala do encantamento que este lhe despertava e que foi quebrado quando, dando-lhe a volta, descobriu poeira e teias de aranha. “Na vida há que se dar a volta para ver”, diz ele. É assim que atendendo a premissa do centenário escritor, ao darmos a volta em tais assentamentos “pacíficos”, “espontâneos” e “democráticos” encontramos distribuição de lanchinhos, ônibus e carros da melhor qualidade, cadeirinhas de praia, senhorinhas e seus senhores estimulados a aguardarem 72 horas e mais 72 horas e mais 72 horas. Agem como se o fato consumado de uma eleição democrática pudesse ser revertido por um Deus ex machina de inspiração golpista. Torço para que essa cegueira não faça o percurso do romance. A boa literatura propicia alargamento na visão de mundo. É assim que enxergamos não só o que exibem, mas também o que mal – disfarçadamente escondem, e por isso “há que se dar a volta para ver”. Para sempre, viva Saramago!

 

Cátia Castilho Simon

Doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS

e escritora.

 

 

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