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#RJ: Cultura bem didática por Hércules Xavier

“Cultura é tudo que se cultiva pensando em colher, dando uma importância que escapa da pragmática: não se planta laranja apenas para saciar uma fome, mas para transformá-la em suco, etc ou em uma festa durante sua colheita abundante.”

Quando lá pelos ‘quinhentos’ os portugueses em cá chegaram, lhes imagino o cansaço e a fome que sofreram por toda viagem. Pois para a massa d’água que compõe nossa baía de Guanabara, chamaram de rio. Como era Janeiro, ajuntou-se os termos: são Sebastião do Rio de Janeiro. O santo participou por conta da tradição católica, onde cada dia do ano é consagrado a um em particular. Se parece anedota de professor de história para conquistar seus alunos, sigo com outro exemplo lá da Austrália: um certo capitão britânico, James Cook, precisou efetuar reparo em seu barco. Desceu, distraiu-se, perguntou aos aborígenes, povo originário, o nome daquele certo animal que andava nas duas patas dando saltos, cuja resposta foi… Kan ghu ru, que no idioma deles significava “não te entendo”, “não entendo o que você fala”.
Foi Walter Benjamin, filósofo alemão, quem cunhou a feliz expressão de que todo documento (ou marco) de cultura é também um documento de barbárie. Claro! Cultura é toda e qualquer ação humana por sobre o natural da natureza, isto é: intervenção, fruto de embate ou choque, como no fenômeno da pororoca, esse encontro violento da força do rio em direção ao mar, com a resistência do mar subindo o rio. No caso é importante notar que todo e qualquer ser humano já nasce inserido em um sistema cultural, de linguagem, símbolos e sinais, ritos sociais etc, constituindo grupos e fomentando imagens de si que permitem uma identidade ou marcas de reconhecimento, dando ensejo a ideia maior de nação, esse grande guarda chuva que comporta dentro de si todo mundo que com ele se identifique, como exemplo, nação rubro-negra (buuu, vaia, o articulista torce pro Vasco!), nação católica, ou nação brasileira, onde justamente o termo melhor se aplica, ao país.
E mesmo que só houvesse um solitário humano no deserto mais remoto e ali pronunciasse qualquer palavra, isso seria um ato dentro de uma cultura (ainda que não houvesse nação, claro): a da linguagem.
Abelhas organizadas em suas colméias, a secretarem seu elemento viscoso, estão apenas seguindo uma espécie de programação genética, mas na ação humana de colher, degustar, apreciar e observar como as abelhas produzem essa secreção e a nomearem ‘mel’, associarem a ‘alimento’ e anos e anos depois chegarem a técnicas que asseguram esse mel, isso é cultura, tanto que: apicultura.
Mais ainda, os hábitos que se recombinam e compõe outros novos, dentro desse campo do comer, faz surgir a cultura alimentar/gastronômica, dando ensejo a todo um campo de discussões e técnicas próprias. Por isso faz parte também das marcas identitárias a culinária, donde é possível dizer culinária francesa, culinária italiana ou mesmo restringí-la a um estado ou região, como culinária paraense ou culinária sulista. Cultura não lida apenas com o macro, mas também com o micro, havendo um recorte sempre que necessário para melhor entendimento.
E aqui no Brasil ocorreu aquele choque, aquela mistura e barbárie, tão bem cantado por Antônio Nóbrega em sua música Chegança, cujos versos dizem que “E assustado / Dei um pulo lá da rede / Pressenti a fome, a sede / Eu pensei: “vão me acabar” / Me levantei de borduna já na mão / Ai, senti no coração / O Brasil vai começar”. Sua letra parte da perspectiva do índio nesse encontro com o invasor lusitano.
E começando o Brasil toda uma nova história se contou e se conta até os dias de hoje. Geralmente aprende-se uma dita história dos vencedores ou a perspectiva colonialista, europeia, ignorando-se assim os saberes dos primeiros habitantes, os índios, ou do outro povo que sofreu sendo escravizado, os negros africanos. Importante ressaltar que no termo ‘índio’ ou ‘africano’ (negro) tem-se muitas e muitas tribos, cada qual com sua cultura própria, suas histórias e conhecimentos próprios. E todos participaram e participam da formação do que hoje se entende por Estado Brasileiro, de nossa sociedade.
Uma influência na linguagem falada em nosso idioma português brasileiro (o certo seria falarmos brasês e sermos braseses, já explico) veio da contaminação cultural dos escravizados negros na fala dos colonos: o pronome na frente do verbo ou mesmo o uso de diminutivos como marca de aproximação e afetividade. Façam um teste, experimentem falar “dá-me água”, no tom imperativo: vão estranhar justamente por conta desse caráter de ’ordem’, já o contrário… Outra contaminação, na culinária, foi a doçaria, com uso do açúcar e seus múltiplos usos criativos, verdadeira engenhosidade cuja cozinha mais se assemelhava a um laboratório, tamanho os experimentos que as mulheres realizavam, sinhás e escravizadas.
Cultura é tudo que se cultiva pensando em colher, dando uma importância que escapa da pragmática: não se planta laranja apenas para saciar uma fome, mas para transformá-la em suco etc ou em uma festa durante sua colheita abundante. Cultura é lavra, sulco aberto nos campos para o lançamento das sementes que culminarão no sentido da pa-lavra. É também, em outra acepção originária, ‘colo’, esse lugar de igual gestação, senão de uma vida biológica, antes de uma vida simbólica.
Ah sim. Por que brasês? Pelo fato de que, percebam, quem nasce na França é francês, Japão é japonês, alemão, búlgaro etc. E quem trabalha com sapato? Sapateiro. Com ferro? Ferreiro. Carroça? Carroceiro. Assim… Brasil-brasileiro é antes uma profissão, que o gentílico a designar onde você nasceu; é antes uma identificação de seu trabalho: tchau mãe, vou ser colono no Brasil!

HÉRCULES XAVIER

Seguindo o ideal suassuniano de fotodeperfilcultura (missão, vocação e festa) desde 2007, sou um entusiasta sobre o tema. Organizo e mantenho o blog poemia.wordpress.com onde faço ‘colagens’ com tudo que gosto. Como vocação inata, o gosto por dar aula, tendo me formado em licenciatura em filosofia pela UniRio. Avancei para o mestrado em patrimônio cultural (IPHAN) e também uma pós em produção cultural, naquela paixão motivadora, onde dedico-me com total afinco. Às vezes arrisco e componho um poema ou dois, como quem ouve e fala pela necessidade do divino.

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