Tudo parecia rotina, café e suor. Tudo era simples, previsível e confortante.
Estava ali, sentada, na mesma poltrona, fazendo tudo aquilo que os anos lhe ensinaram. Sentia uma certeza inquietante, algo embrulhado na garganta, um cenário em preto e branco, tava confusa, tava cansada, queria viver além daquelas janelas. Ligou o rádio de pilha que há tempos estava apagado em sua cabeceira, borrifou o perfume, delicadamente em seus cabelos, longos, cacheados, cheios de vontade. As pernas estavam tremulas, era a sua primeira vez. As horas enfim congelavam os desejos, ela sorria, pela metade, em pensamento, mas era um sorriso. O cuco pulou, já deu meia noite, e a esperada visita chegou a porta. Tinha os cabelos grisalhos, maltratados, encerados de poeira das horas. Em suas mãos pálidas, ainda estavam as cicatrizes, marcas de pobreza e sofrimento, dores de uma infância de pés descalços e poucos amigos. Abraçou ela como se a enrolasse em um manto de saudade e aconchego, dançaram como se houvesse música e dormiram, jogados, ao fim dos espaços que restavam em cada expectativa. Eram dois, eram pares de sonhos, ficaram paralisados imaginando o próximo ato, ficaram imersos aos prazeres a flor da pele. Mas eles não cabiam naquele tapete empoeirado e jogado ao centro, eles tinham muito o que dizer, estavam cheios de amarguras e vazios. A pele branca , suada lhe deixava ainda mais linda. Uma brecha pequena na porta, permitia a invasão daquele feixe de luz, que reluzia, iluminava ainda mais aquela face tão simétrica, tão dela. Anestesiado, ele não conseguia dizer uma só palavra, os dentes como amantes se tocavam, e abraçados seguravam seu grito, sua loucura. Ela agora era apenas um retrato na parede, e ele, velho, cansado, sonhava todos os dias com aquele momento, aqueles segundos de vida que representaram seus mais doidos pensamentos. Quem poderia saber o destino daquelas pernas roliças, marcadas pelos passos rápidos, pela ansiedade das horas. Dizem que seu vestido amarelo ainda está no varal aguardando a próxima chuva. Dizem que a noite ela chora sozinha. Mas ele, ele nunca mais conseguiu respirar aliviado, para aquele homem, solitário e excêntrico, o amor tinha nome e ele não conseguia escrevê-lo em seus desabafos. Na sua memória aquele desejo era concretizado, ela tinha formas, cores e odores. Mas como toda a imaginação, ela sucumbia a realidade e o deixava ainda mais paralisado diante da vida.
Jornalista, mãe, diretora de empresa, devoradora de filmes argentinos, amadora na arte de viver, apaixonada por ideias, pessoas e coisas.
Diretora de comunicação da Tríplice Assessoria
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