O tempo parece acelerar as horas a cada dia, tornando o hoje, cada vez mais rápido. As semanas, os meses e anos, me parecem voarem com incontrolável velocidade, quando de tempo e tempo, tudo que há vai mudando, se transformando e alterando as vivências, o ambiente e tudo que nos rodeia neste palco da existência.
Vai-se os dias, nascem as lembranças, algumas se perder da memória, outra eternizam, e há algumas que negamos existirem.
De mim, como percebo os dias, que pouco a pouco, vão levando um tanto de mim, pelos ventos que se vão nos horizontes de cada segundo. Deixando para mim, lembranças feridas de saudade.
O tempo e os dias, não param, apenas seguem adiante. Não há como voltar ao passado.
Guardo com carinho, o antigo retrato, já bem amarelado pelo tempo da memória. Imagens daquela pureza nos tempos da infância, onde o amor era intenso e puro, e tão único e verdadeiro.
Podia amar no inocente abraço, nas primeiras cartinhas apaixonadas, bastava desenhar um pequeno coração para se dizer “eu te amo”. E um primeiro olhar, entre cirandas e cantigas, para se considerar “namorados”… Enquanto os adultos e mais velhos, gargalhavam com divertidas risadas. Eles eram a nossa primeira plateia no palco da vida, assistindo as nossas primeiras descobertas.
Entre as memórias da infância, posso dizer que há muita saudade, como tantas correntes que arrastam em silêncio, até os dias de agora.
Da infância, um dos melhores momentos, era andar de cavalo nas costas de papai, ou deitar no colo da mamãe. E também, os passeios no sítio dos meus avós, quando sempre reuniam a todos os primos e primas.
Naquele tempo tudo era uma magia viver, e vivenciávamos tudo com um sentimento incondicional de pureza e inocência. Ainda, não sabíamos que na vida e no mundo, há o bem e o mal. Que por mais que você ganhe na vida, você também precisa a aprender a se frustrar.
Penso que a maior maldade que há, seria dizer a uma criança, que sonhos são apenas sonhos, que não existe um mundo mágico, e que o amor é apenas uma historinha recheada de mentiras que as pessoas contam.
Quisera eu, que o tempo pudesse ter parado para sempre, aos primeiros passos da infância, quando ainda trazia sobre minha cabeça, uma auréola dourada que reluzia intensa a uma luz de pureza tão bela e única. No entanto, algum dia, ao abrir dos olhos pela manhã, enxergamos a maldade do mundo e o mal que há em nós.
Foi aos 05 anos, quando descobri a existência do que é mal, vendo germinar a dor diante de meus olhos, despindo-me a inocência e roubando de meu peito, a infância querida.
Naqueles anos da infância, a mamãe e papai tinham pouco tempo de casados, e se esforçavam para conquistar melhores condições econômicas e melhor qualidade de vida. Pensando sempre, no futuro para os filhos.
Talvez, ainda crianças envoltas de um universo imaginário de amor e fantasias, não compreendemos aos nossos pais e mães. Sem entendermos as ausências deles, ainda que venha durar um cadinho do tempo no dia de cada dia, sentimos a carência da presença do colo materno e do abraço apertado de nosso pai.
Ainda que as tardes da infância, sejam rodeadas por outras crianças e amigos, abrindo a portais e caminhos que nos levavam até aventuras e inúmeras descobertas. Sempre há no coração de menino, o desejo vestindo a nós, amando a mais que tudo, ao aconchego daquele colo pelas manhãs e o abraço apertado no final das tardes poentes.
Mas quando na falta de colo, seria terrível se não existisse aos primos e primas, tudo certamente seria um grande tédio. Mas, fato é que, aos primeiros passos e desafios, a presença de mamãe e papai, era um conforto, segurança diante das infinitudes de um mundo novo que nascia ao leste de nossa infância e passinhos ainda tão pequenos.
Hoje, compreendendo-me por poesia, creio que nasci poeta, e já desde o ventre, com uma forte sensibilidade. Talvez, por isso, as memórias e lembranças sejam tão fortes dentro de mim, tal como, a minha emoção e sentimentos. Quando estou alegre, estou muito alegre; quando triste… muito triste. Sempre estive no limite dos extremos.
Embora, eu relute e negue muitos sentimentos e culturas da infância até outras fases da vida, posso afirmar sobre a minha infância:
Trago de lá, ainda um pouco de doçura, um brilho de eterno menino que resiste alumiar no íntimo de meus olhos… E também, entre as mais saudosas lembranças de mim – pequenina criança; trago alguns pesadelos e horas sombrias, quando o medo conheceu ao trauma, e brisa suave veio a deixar de acariciar a face. As plumas tão branquinhas, desmancharam nos ventos que levavam menino criança pelos vales e sombras, testemunhando a uma dor insuportável, que penetrava cortante na minha carne.
Foi quando, eu perdi pela primeira vez a minha inocência e a pureza da vida.
Naquela época, por conta do trabalho e responsabilidades de meu pai e mãe, havia uma mulher que residia em minha casa, como se diz hoje, uma cuidadora. Ela na ausência materna e paterna, era quem cuidada de mim.
Houve muitas mulheres que cuidaram de mim na infância. Nunca gostei de chama-las de empregadas. Algumas delas, foram como um segundo colo, a mão de afago, carinho e amor, como uma segunda mãe.
Nós crianças, somos apegados de amor, e amamos espontaneamente, nos apegando as pessoas, com sinceridade e pureza.
Aquela tarde, como recordo, seria apenas uma tarde comum. Papai e mamãe, no trabalho. Eu, rodeados de brinquedos, fazendo do tapete da sala, um mar de mundos imaginários.
Um pouco de luz atravessa as vidraças da janela, coberta por cortinas que me pareciam maiores que alterosas montanhas. De repente, pareceu que o mundo e que tudo, todos e todas, fizeram silêncio… tão profundo e assombroso para mim.
Ela aproxima vagarosamente. Sua manta de carinho e o colo dela, aonde amava repousar. Subitamente, desapareceu nos ventos da vida.
O seu corpo assim como a sua maldade e loucura, tornaram-se enormes diante de mim, e ela… Ela se despe por inteiro sob o tapete na sala, e ferindo o menino de meus olhinhos.
A sua voz se transforma, mudando a melodia e as cantigas. As cirandas e as histórias, antes contadas por ela em harmonia tão doce. São no instante de terror, como um barco fantasma navegando por mares tão turvos. Assim o algodão esqueceu o sabor de seu doce.
Hoje, já adulto, aprendi a reconhecer o que ela expressava em suas falas naquela tarde: falsidade, manipulação e outros adjetivos de maldade e covardia.
As mãos antes macias e afetuosas, invadiam o meu corpo e me tocavam cortando em retalhos a fragilidade de meus braços e pernas. Lá estava ela, e a cada ataque, maior era o medo em mim. Retirou com crueldade as minhas roupas, vestindo-me de vergonha e de morte. Envolvendo à mim, de uma nudez tão fria, e cada segundo que passava, era ainda mais fria e sem vida, aquela tarde.
Sem compreender o que acontecia, me sentia invadido e chorava silenciosamente em minha alma. Talvez naquele momento, eu tenha perdido uma pureza de vida, a qual, eu jamais tenha recuperado de novo.
A nudez, pode ser cruel e doída em muitos momentos,
e naquele, as suas mãos avançavam sobre mim, e ela, abria as pernas buscando em aprisionar. Tomava minhas mãos entre as suas, e fazia com que seguindo os seus movimentos, eu penetrasse um lápis de cor em sua genitália. O arco íris, nunca mais me seria colorido como já foi um dia. Eu sentia nojo, muito nojo.
De alguma forma, Deus possa ter enviado anjos, lutando por minha criança. Ela não conseguiu ir adiante nas tentativas de consumar o prazer de sua carne
Não consigo recordar como e quando, mas alguma lembrança entre as névoas, parece-me me ver correr assustado, como se nunca quisesse parar de correr. Até que alcancei o cantinho mais solitário de meu quarto, me encolhendo no chão.
Não lembro como ela parou as cenas de terror. Não me recordo de seu rosto e nem de seu nome.
Apenas tenho a capacidade de remontar na mente cada ação descrita. E lembro que após esta sombra, eu contava para os mais adultos, tias, tios, e meu pai e minha mãe, que ela havia ficado pelada diante de mim. Por alguns meses, apesar de terem a mandado embora de minha casa. Os encontros familiares, em algum momento, este fato voltava as rodas de conversas dos adultos, que levando o acontecimento para algo cômico, perguntavam-me o que teria acontecido, entre gargalhadas, fazendo-me remontar, reviver e contar a história.
Naquele tempo, este fato foi talvez apenas um fato. Talvez como medida de proteção, aconteceu um bloqueio na minha emoção e memória. Ao longo dos anos seguintes e da minha vida, não lembro de falar sobre aquela tarde, e nunca a relatei como um trauma ou ressentimento.
Agora, quando eu deixo de ver apenas, e aprendo a olhar… Consigo identificar as sequelas que me feriram em silêncio por tantos anos.
Fui ao final da infância e na adolescência, um garoto tímido, com dificuldades de ligar com as emoções, e arrastando muitas correntes pelo tempo e ao longo da vida.
O tempo não volta para que eu peça para a pureza não ir embora, mas sinto saudade do que era puro. O tempo não volta e nem para; um dia acordamos, e descobrimos as verdades, descobrimos que já somos adultos. É o ciclo da vida. Ou aprendemos a lidar com os sentimentos e com este ciclo ou não vivemos.
Por algumas e muitas vezes na vida, eu desejei morrer, e quis encerrar minha atuação no teatro da existência. Mas graças a uma força maior, talvez a mesma que de certa forma me protegeu de algo pior naquela tarde sombria, também esteja cuidando de mim ao longo da minha vida, pois confesso, já quis me matar, mas eu nunca tive coragem.
Cada manhã, é uma oportunidade de amar a vida, de aprender a viver… Pois o tempo, não volta, não para… Ele segue sempre em frente, e nos dias de hoje, ainda mais veloz…
Acalma-me o íntimo, a gratidão a Deus, como compreendo. Por cada dia que nasce diante de mim, e em mim. E por, ainda que tenha feridas ou cicatrizes, um brilho de menino, resiste no profundo de meus olhos.
Dezembro do ano de 2018. / Vitória, Espírito Santo.
Luciano Guimarães de Freitas
Produtor Executivo – Circuito Cultural Noroeste. Presidente – Cineclube Eco Social Águia Branca. Militante Movimento Nacional de Cineclubes desde 2004. Produtor Cultural. www.cineclubando.blogspot.com, www.deliriosecotidiano.blogspot.com