São rosas. Estão eles ali sob a vitrine de vidro do balcão do botequim, reluzentes no tom da cor rosa, ao lado daqueles petiscos, tira-gostos incomiveis pelos normais. Sardinhas fritas, torresmos, goelas empanadas. Tudo é desafio à estética da fome.
Olho um homem ao meu lado, nordestino pelo tipo, operário pelo vestir essa manha fria de julho na rua Vinte de Abril, que fica no “centro das nossas desatenções”, como escreveu o bamba Antônio Torres, um livro. O cabra toma de um só gole um cálice cheio do traçado Rabo de Galo. Aguardente , a cachaça que energiza o sangue da pobreza. O brasileiro é um alcoólatra crônico.
Volto a admirar a vitrine e na falta da coragem o desejo pelo petisco é carne tremula. Não devo ter os anticorpos necessários para digerir esta parada toda. Falta me o respiro da massa de concreto, a rigidez dos vergalhões que sustentam as paredes aparentes do edifício. Falta um carrinho-de-mão no meu DNA. Sou um filhinho- da- mamãe que vacila na porta deste Pé-Sujo, que é assim que chamam este pequeno bar de tranca- ruas. Despacho o medo pedindo um Underberg. Bebo devagar, esta formula secreta de ervas, em homenagem aos bebuns, os muçuns manos, amizades que fiz neste bairro onde trabalhei 30 anos. Lembro do Bob Estrela , negrão que foi do Bando da Lua e, segundo disse, cantou pros branquelos americanos com a Carmem Miranda. Bob, sem dentes, me contava historias dos teatros de revista que eram a paisagem de um Rio de Janeiro submerso de suas vedetes e astros . Foi Bob, morador desta rua, que me ensinou tanta coisa por apenas um copo do tal Underberg, que sempre paguei sem nenhum pecado. Sem culpas, eu ouvia ele cantar e requebrar. Um esquecido artista da dimensão popular assim renascia Miranda mente em Carmem e osso.
Vim aqui visitar Salvatore Papa, o velho italiano dono da loja de ferragens e outros inutensilios. Ele me vendia fiado e prometia me apresentar à Máfia. Dizia isso com a verdade siciliana dos que sabem mentir pros amigos. Fico sabendo que ele morreu no hospital. Seu filho, no caixa da loja, me conta que ele mandou comprar caixas de bombons e deu de presente pras enfermeiras. Que Corleone faria isso? Digo às lagrimas.
Todos se foram. Bob Estrela, o Italiano e sua ilusória máfia, o dono da farmácia, seu Artur, o restaurante A Lisboeta. Fazer o quê? Penso diante do balcão mirando a vitrine do botequim que mais sabe de mim. Então finalmente como o Ovo Rosa cobiçado e tremo de alegria. Sigo caminhando em direção à Central do Brasil.
Anselmo Vasconcellos
50 anos de carreira profissional, premiado como ator e diretor realizou 40 filmes, programas de tv em todas as emissoras. Professor da Funarj, lecionou na Escola de teatro Martins Penna e Escola de Música Villa Lobos. Escreveu e publicou 5 livros entre eles uma pesquisa extensa sobre a comédia no transcurso do tempo. Comédia ,a arte da irreverência em parceria com Rachel Villela. Fundou a Casa Azul, centro de artes e Terapias no Rio de Janeiro.