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Quantos nós mantém a estrutura do racismo em pé? – Milton Lavor

É preciso coragem para falar sobre racismo, e mais coragem ainda para ouvir e refletir sobre. Pois ele está imbuído em nós todos e costuma ser doloroso demais analisar-se. É necessário entender tudo o que herdamos para poder atuar em soluções.

Milton Lavor

Sou considerado branco, mesmo sabendo que “branco mesmo” eu não sou. É apenas uma forma de designar uma etnia, pois em algum momento da história acharam necessário categorizar as pessoas de acordo com a tonalidade da pele. A lógica da exploração em ação; precisam separar as pessoas e definir o sangue a ser sacrificado; os povos originários e depois os povos pretos.
Ao passado não cabe o debate, mas análise. Mas não é esse o tema aqui. O motivo deste, é que sou uma pessoa, sou casado com uma mulher preta, sou pai de uma criança que é considerada “parda” e me debato constantemente com inquietações sobre o mundo e as pessoas; e me angustia a falta de respeito à condição humana.
As ideias são diversas, mas algumas questões já deveriam estar resolvidas; a lógica do amor, onde a tolerância seria um pressuposto de harmonia, simplesmente não ocorre —e seria o mínimo…
A pecha de racista é abjeta, tanto, que dificulta a análise. Isso ser quase que uma unanimidade é um grande passo civilizatório para nós, mas vale apenas para o racismo escancarado; ainda existem muitos entes racistas que permeiam diversos segmentos da sociedade e ainda há muito o que combater.
Sendo algo tão desprezível e tão íntimo, toda tentativa de análise geram diversas reações. Há muita dor e muito ódio envolvido. São feridas abertas que não há tempo de cicatrizar, pois somos todos parte de tudo… Sofre a sociedade, pois machucamos a paz.
Temos cotas de responsabilidade, pois somos atores no palco de destruição da humanidade desejável de se alcançar. Tem sido difícil, pois está em nós. Ainda estamos presos às estruturas do passado. Uma delas é a língua. Herdamos palavras e significados; lógicas e sentidos; medos e preconceitos; tudo o que há, eivado de tudo que foi e é o que somos.
E parte daí a sensibilidade do tema…
Outro dia estava debatendo sobre o uso de termos para designar etnias em obras literárias, e o assunto rendeu mais do que deveria, e é exatamente por isso me vieram diversas reflexões sobre a questão: qual é o motivo de após tanto tempo usando a língua portuguesa, os termos não estarem definidos? Será que o povo preto chegou agora por aqui?
Sim. Eu uso o termo “preto” para designar etnias em vez de negro que é mais usual. Mudei, pois vi um vídeo de um senhor —africano acredito— falando sobre a questão e achei mais lógico e mais correto o uso da palavra preto mesmo. Se nos formulários e sensos há “branco” como etnia, então seu equivalente lógico seria preto, pois negro não é exatamente uma cor. Usa-se negro, mas o equivalente mais lógico na mesma linha seria “níveo” para designar o “branco”. Aqui a questão é puramente lógica.
Além do mais, negro é um termo muito genérico dentro da língua portuguesa, o que pode gerar diversos problemas na construção textual ou até mesmo na expressão falada, já que é uma palavra com muitos significados e pode ser interpretada, e usada, de muitas formas.
Preto é cor e não há hierarquia entre as cores; todas têm sua função de designação e as interpretações são mais precisas dentro de uma mesma equivalência lógica.
Foi falado também sobre o uso do termo negro na mesma “escala” do termo caucasiano, o que a meu ver, também não seria adequado. Caucasiano refere-se à região do Cáucaso, então o correto, seguindo a mesma lógica, seria o uso do termo africano. Como ocorre com “asiático”, “americano” e etc.
Acredito que as palavras e frases merecem cuidado, pois a expressão é uma forma de moldar o mundo e a percepção, então a lógica seria manter a coerência com as terminologias, usando termos equivalentes.
Se for usar cor para etnias: amarelo, branco, preto, vermelho e etc. Pelo que sei estão bem estabelecidas pelo mundo e podem ser traduzidas e entendidas por qualquer um.
Se for usar termos referentes a uma determinada região geográfica: africano, asiático, caucasiano e etc. Da mesma forma que as cores.
A conversa chegou até na genética, mas o argumento veio de alguém que obviamente não entende que a genética nos divide como espécie dentro do reino animal e não em raças. Mas fica a pergunta: por quê ir tão longe? Por quê será que há tanta luta para se distanciar do preto?
Aí a questão chega no ponto mais controverso… O “calor” do debate não foi sobre o uso de preto ou negro, mas do termo “pardo” para designar uma etnia que não seria “nem preto, nem branco”, de acordo com uma das pessoas do grupo. Aí me veio a motivação para escrever este: Por quê há tanta discussão nos matizes de cor quando este não é o branco?
Eu desconheço alguém que seja branco como a cor branca, níveo como a neve; mas todos os matizes mais próximos do branco são descritos e aceitos como brancos, e não se vê reclamações sobre a questão.
Da mesma forma ocorre com caucasiano. Ninguém reclama dizendo que não é do Cáucaso. Mas quando os tons cruzam a “fronteira” para o “não-branco”, aí vemos um levante sobre tonalidades. Já vi várias pessoas debatendo sobre os motivos pelos quais elas não seriam pretas, ou negras, ou africanas… Nessas horas, há um esforço em se distanciar do preto e o motivo deveria ser alvo de reflexão.
Não tenho como definir nada. Este texto é só uma visão, fruto de minha própria perspectiva e é muito pouco, mas acredito que é possível pensarmos nas questões de maneira a dirimir conflitos. Debater, conversar, ouvir e pensar o que for. Uma questão inspirando outras; uma vela virando fogueira, e a luz iluminando os olhos e incendiando consciências.
A língua é uma construção e muda de acordo com a lógica interna do seu povo, não podemos manter “lógicas” do passado por medo da mudança. É preciso coragem para falar sobre racismo, e mais coragem ainda para ouvir e refletir sobre. Pois ele está imbuído em nós todos e costuma ser doloroso demais analisar-se. É necessário entender tudo o que herdamos para poder atuar em soluções.
O racismo estrutural é parte da nossa cultura, e só poderemos quebrar essa base, se estudarmos todos os tijolos que o compõem. Não é uma mudança fácil, mas uma revolução necessária.

 

Milton Lavor
Funcionário público; escritor, pintor e poeta como resultado do que transborda. Busco imprimir em minha obra o caráter único de minha percepção, mas também é parte da construção deixar espaço para a percepção do espectador. Tudo o que produzo tem a intenção de dizer mais do que o que está posto, pois, tanto os sentidos quanto o sentido modificam os significados; assim, consigo obter leituras sobre visões particulares através de outros olhos, de uma forma que eu mesmo não conseguiria realizar, e nesse processo, melhoro quem sou; e alimento o ciclo para continuar em frente.
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