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Vintage china tea cups on a dusty pink background

QUAL É O MELHOR MOMENTO PARA SE USAR UMA PORCELANA? por ROGER BAIGORRA MACHADO.

Ela dizia que àqueles eram os melhores talheres que eu jamais veria na vida. “São da Europa!”, vangloriava-se que eram da marca francesa Christofle, feitos com a mais pura prata retirada aqui da América. Foi um presente de casamento dado por um primo que morava em Buenos Aires e que havia visitado Paris. Sempre brilhantes, os talheres eram metodicamente limpos, duas vezes por ano: a água fervendo, o sal, a submersão. Depois, secavam sobre a toalha da mesa da cozinha para só depois receberem o polimento. Por fim, ficavam numa caixa de madeira antiga, com fechadura e chave, intocados bem no fundo do armário da sala, como que num sarcófago.

O conjunto de chá era qualquer coisa de incrível. Feito de porcelana portuguesa, adornado com linhas que lembravam ouro. Ela afirmava que eram de ouro, afinal, todo o conjunto foi comprado em Coimbra em 1965, haviam sido fabricados em 1896. As xícaras ficavam na cristaleira da sala de jantar, expostas lado a lado, enfileiradas, pareciam relíquias antigas, mártires de um tempo de riqueza esquecida. Receberam chá uma única vez, num inverno em 1979. Deve ter sido um momento muito especial para Ela ter usado aqueles seus pequenos tesouros.

As toalhas de banho eram lavadas anualmente e manualmente, nunca foram usadas, sempre que Ela falava nelas, afirmava que eram importadas da França, um presente dado por um professor da universidade, colega de seu finado marido, enquanto este fazia o mestrado na Sorbonne. As toalhas tinham bordados Richelieu em forma de flores e eram brancas como a mais branca neve. Ela tinha medo que alguém deixasse manchas nos tecidos, assim, as toalhas tinham suas vidas perpetuamente mortas dentro do guarda-roupas. Jamais se comportaram como aquilo que eram: toalhas.

E tinha um vestido longo que Ela amava e ocupava lugar especial no guarda-roupas, no entanto, Ela me disse que o usou uma única vez, foi numa festa de aniversário da sua melhor amiga no Clube Comercial, na época, o “melhor clube de Uruguaiana”. Contava que foi a “roupa mais deslumbrante que já vestiu”. Foram tantos os elogios que recebeu, que ficava rosada só de lembrar dos galanteios. Naquele dia, entre um gole e outro de espumante, conheceu seu futuro marido e único e grande amor. Dizia que só usaria aquele vestido novamente em um “momento realmente especial”.

Durante toda a sua vida Ela foi assim, cuidadosa. Era assim com os filhos, com os netos, com os talheres, com as porcelanas, com as toalhas, com o vestido, com outras roupas, com a vida. “Um momento especial” era o que ela sempre esperava acontecer para usar o que tinha de melhor. E os talheres foram ficando, as toalhas, o vestido, as porcelanas, todos ficaram aguardando pelo momento especial que um dia chegaria.

E num dia que não teve nada de especial, que não amanheceu nem frio e nem ficou quente durante a tarde, onde os pássaros cantavam as mesmas coisas, os galhos da árvore na janela do quarto restavam iguais aos do dia anterior. Nesse dia comum, ao fim da tarde, Ela estava assistindo a novela na TV, reprisada pela terceira vez, e eis que a dor apareceu e tomou conta do peito, não houve tempo para despedidas, nem uma última olhada na cristaleira, não deu tempo para nada, e assim Ela morreu.

Ela sempre acreditou que o dia da sua morte seria um momento especial. E embora ela não saiba, ele foi, pois foi o último.

Ela é que não percebeu a importância daquele dia, assim como, não viu todos os outros dias especiais que vieram antes. Ao menos, morta, não soube que os talheres foram vendidos junto com o conjunto de chá por pouco mais da metade do valor que possuíam. Vendidos, pois nenhum dos filhos tinha lugar em casa para guardá-los, tampouco, vontade.

Morta, também não soube que as toalhas acabaram manchadas por catchup, terminaram seus dias sendo utilizadas na piscina por pessoas que ela nem conhecia. Findaram como o que eram: toalhas. Por morta, não soube também que o vestido deslumbrante que a vestiu numa noite inesquecível, serviu no fim apenas como sua mortalha. Ao menos, usou o vestido num dia especial.

Ela morreu e não aproveitou um mínimo sequer daquilo que guardou por tanto tempo, as coisas que acreditava ser o que ela tinha de melhor.

Guardou nas porcelanas o chá que nunca tomou com as netas numa tarde de inverno. Guardou no vestido os novos elogios que não recebeu na formatura do filho. Guardou nos talheres a satisfação que não serviu ninguém naquele Natal inesquecível de 1998. Às vezes nós perdemos coisas e sentimentos, curiosamente, não por descuido,mas por guardá-los demais.

Guardamos tanto, na expectativa do momento especial, e de tanto idealizar este momento, acaba que nos tornamos incapazes de reconhecer quando ele acontece na realidade dos nossos poucos dias.  E deixamos de falar. Deixamos de usar. Deixamos de estar. Idealizamos a festa perfeita. O churrasco perfeito. A visita perfeita. A ligação de telefone perfeita. E de tanto idealizar e guardar, perdemos o momento.

Nesses tempos tão difíceis, de justiça tardia, dias de pandemia, de distanciamentos, de falta de empatia e supressão do diálogo, onde a vida termina tão de repente e onde ficamos sabendo disso pelas redes sociais, devemos guardar menos e usar mais. Nos últimos dias vi amigos perdendo irmãos, amigos perdendo pais, pais perdendo filhos, cada vida, única e tão especial. Precisamos estar mais, falar mais, dizer aquilo que se sentimos e sentirmos as coisas que se dizemos.

Hoje é 27 de janeiro, 09 anos da tragédia da Kiss e ainda parece que foi semana passada, toda a tristeza que se fez e que não se desfará por nenhum decreto ou trâmite em julgado. Cada vida que se desfez era como se fosse uma linda e única porcelana que caiu da cristaleira. E a saudade que fica é só o que nos que resta. E para muitos pais e amigos, a saudade se tornou um verso de Chico Buarque, “saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”. Dobrar as roupas, cheirá-las na esperança de sentir de novo, um pouco que seja, do cheiro do amor.

Hoje, depois que a matéria sobre a Kiss passou no Jornal do Almoço, sem perceber, peguei-me pensando na vida, nos que se foram, nos que ficaram e naquilo que nós estamos fazendo aqui. É que a saudade não é sentimento que sentimos em relação a coisas ruins, saudade é coisa que sentimos em relação aos momentos bons, pessoas e coisas boas. Saudade a gente sente daquilo que viveu.

Sabe qual o melhor momento para usar suas porcelanas? Agora.

Use muito. Cada garfo e cada amigo. Cada vestido e cada filho. Use tudo o que há de melhor ao seu redor, use suas melhores roupas, beba suas melhores bebidas, esteja com as pessoas que você ama. Não espere pelo momento perfeito.

 

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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