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Suzana e os anciôes, obra de Artemísia Gentileschi, a pintora que foi estuprada em 1611 e se vingou por meio da arte.

Pelo fim do silêncio que banaliza o estupro. Por Rosana Zucolo

 Anos atrás fiz uma promessa a mim mesma: não mais trabalhar com a temática da violência sexual e do seu enfrentamento, com a qual me deparei, profissionalmente, inúmeras vezes.  Não são temas fáceis de lidar ou mesmo abordar, a ponto de se colocar em xeque a própria capacidade de ver os fatos com a maior isenção possível, como defende o campo jornalístico. 

A força de acontecimentos dessa natureza desenquadra nossos esquemas narrativos habituais. Mobiliza, impacta, indigna e, não raro, fragiliza. Tais experiências são deslocadoras e deixam marcas tantos nas vítimas quanto em nós, jornalistas que realizamos as investigações e reportagens. E sempre, inevitavelmente, nos faz desejar nunca mais ter que repetir tais pautas e testemunhar tais acontecimentos. No entanto, elas retornam. Seja porque os fatores que desencadeiam tais acontecimentos se repetem e a urgência nos empurra de volta a elas, seja porque houve a perda de certa inocência em relação à natureza humana.

Foi por isto que, por muito, muito tempo, o colorido poético do Porto da Barra, em Salvador, na Bahia, e que tanto encanta pela sua beleza estética digna de cartão postal, acabou substituído por um cinza chumbo. Nunca mais a leveza daquelas ondas de piscina natural onde nadar era o maior prazer; não mais o riso e o burburinho alegre dos banhistas e dos vendedores; não mais o sabor leve da água de coco na banca após o banho de mar; não mais a paz que a paisagem transmitia, não mais…não mais.

Por meses o trabalho investigativo nos fez observar, ainda que horrorizados, o movimento de turistas homens a prostituírem crianças de idade não superior a 13 anos com a conivência dos comerciantes locais e parte das pousadas que àqueles hospedavam.  E constatar ser um fluxo intenso e contínuo em toda a região da Barra; que essas mesmas crianças frequentavam e conheciam os motéis onde era possível entrar sem fiscalização e, pasmem, haviam desenvolvido uma rara capacidade adulta e fria de negociar preços e programas, ainda que muitas carregassem bonecas ou chupetas. 

 Em outra ponta da cidade, meninas quase esquálidas, em grupos de não mais de três, passavam grande parte da noite a subir e a descer a ladeira da Praça Castro Alves (enunciada por Caetano na música “um frevo novo” como a praça do povo) a vender seus corpos por R$ 5,00 para comprar e fumar pedras de crack. Os “clientes” eram homens adultos, muitos deles em carros de luxo.

Aquela investigação nos levou à idílica baía de Camamu, onde o sexo oral com crianças custava R$ 0,50 ou era trocado por rapaduras. Ao chegar ali, o aviso dos homens locais era o de que se quisesse programa, as meninas eram contatadas nas portas das escolas. 

Nossa experiência na área demonstrou também que as escolas, principalmente as públicas, acabam tendo que lidar com situações para as quais não possuem competência. Não raro a sala de aula é frequentada por crianças que são abusadas no ambiente doméstico e isto só se torna evidência quando já é tarde demais para a vítima. É comum encontrar professores, diretores, assistentes se sentindo impotentes diante de tais fatos e tendo que acionar uma rede de proteção que não funciona como deveria, apesar do ECA.

Também nos fez ver que parte das escolinhas de futebol nas divisões de base guardavam a sete chaves os abusos sexuais sofridos pelos meninos que as integravam. Muitos eram do interior e outros de classes abastadas de Salvador que preferiram ocultar os fatos e proteger, ao seu modo, os seus filhos de possíveis escândalos e exposição. 

Tais fragmentos de memórias são parte de um  trabalho com a ANDI, Agência de Notícias dos Direitos da Infância, e o concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo. Duas outras experiências com esta temática se somaram ainda dentro dos projetos da ANDI. Uma delas ainda em Salvador, a outra aqui em Santa Maria, onde a hipocrisia mascara a exploração de crianças e adolescente por conhecidos “cidadãos de bem” como ocorre na maioria das cidades.

Não foram menos dolorosas ou impactantes. E elas aconteceram, talvez, porque o olhar fica treinado a identificar esta faceta do social  e passa a ser uma constante com o tempo, ainda que o excesso de realidade nos exija ações de resiliência para suportar o objeto observado. 

A perversidade não tem fim, mas o trabalho acaba e é quando você só quer pensar em escrever sobre flores, como diz meu colega jornalista e irmão, Ricardo Mendes. Ninguém suporta tanta realidade.

Mas se pode perguntar o porquê deste prólogo de tempos já idos? 

É porque não existe acontecimento isolado do contexto em que ele surge. Estamos no Brasil onde a fragilidade da infância desprotegida se estende na horizontalidade da sociedade, atingindo diferentes lugares e condições sociais.

Acontece em todos os tempos, mas sempre remete a um adulto, geralmente masculino, que abusa, viola, violenta outro ser.  E porque a violência sexual tem diferentes faces: é dizer do assédio, do abuso, da pedofilia, da exploração e do estupro ou violação sexual e de um silenciamento tácito que só é rompido episodicamente.

Tais ações criminosas são recorrentes apesar dos avanços legais que aconteceram nas últimas décadas na defesa dos mais vulneráveis. E nestes estão incluídas as mulheres que atingem a estatística de 80% dos 822 mil casos de estupro ocorridos no Brasil no ano que passou, segundo estimativa do IPEA. Destes, apenas 8,5% dos casos chegam à polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.

Uma pesquisa realizada também pelo IPEA demonstrou que a probabilidade de uma vítima de estupro ser do sexo feminino aumenta de 88,5% na infância para 97,5% na idade adulta; sendo que as taxas de estupro contra menores de 13 anos ocupam um total de 50,7%, caindo para 19,4% na adolescência e crescendo novamente para 29,9% na fase adulta (Cerqueira & Coelho, 2014, p.8).

 O país enfrenta uma enorme dificuldade tanto em relação aos registros, quanto ao sistema de atendimento às vítimas relacionado à segurança e saúde. Isto indo das desigualdades regionais em relação à oferta de estrutura de delegacias e policiais preparados, passando pelos serviços médicos e psicológicos à capacitação descontínua e insuficiente desses profissionais. Há de se considerar também as barreiras morais e religiosas que sempre acabam influenciando todo o processo.

Não gosto da expressão cultura do estupro para justificar a perversidade e a violência que levam à prática de tal ato. No entanto, é fato a tendência social de banalizar tais acontecimentos e a legitimação dos argumentos que o justificam. E eles vão da miserabilidade promíscua em que grande parte da população é obrigada a viver, ao ato de atribuir a culpabilidade pela ação violenta às mulheres a partir de juízos de valor. 

Dias atrás recebi o texto do Nando Gross sobre a cobertura da imprensa gaúcha do caso do estupro em Berna por quatro jogadores brasileiros no ano de 1987,  Alexi, o Cuca, Eduardo, Henrique e Fernando, todos do Grêmio. Gross recontextualiza o episódio do estupro pelos jogadores de uma menina suíça de 13 anos que fora pedir a eles uma camiseta do time, e pelos quais três deles foram condenados naquele país por atentado ao pudor e coação. A revisitação desse acontecimento choca, mesmo porque reúne a posição dos comentaristas gaúchos,  entre eles Paulo Santana, Lauro Quadros, ambos da ZH, e Wianey Carlet do Correio do Povo, assumem a defesa dos jogadores com argumentos jocosos e machistas em relação à menina vítima de tal violência.

O assunto voltou a ser pauta na imprensa nacional quando o Corinthians contratou Cuca como técnico, o que foi alvo de inúmeras críticas nas redes sociais de onde emergiu o protesto contra o jogador com o “Fora Cuca ” e “Respeita as minas”. Dia 27 de abril, a direção do Corinthians,sob pressão, dispensou o técnico.

No mesmo dia, o assunto foi tema do programa Sala de Debates, na CDN, e transmitido ao vivo pelo canal no youtube.  E o debate tomou rumos constrangedores. Seja porque o direito ao esquecimento é algo que precisa ser revisto – as vítimas nunca esquecem o que sofreram-, seja porque banalizar ou cientificizar argumentos em torno do estupro como fez o médico Eduardo Rolim é algo inaceitável.

O modo como a questão foi colocada remete a pensar que da vítima de estupro espera-se que resista heroicamente às investidas do agressor e fique com as marcas da violência sofrida como onus da prova de sua tentativa de resistência. Ou ainda, que desgraçadamente morra ao tentar proteger a honra e cumpra o papel de vítima perfeita (e virtuosa) esperado pela sociedade.

É  injustificável tornar o ato de sedução um ato de violência física contra o outro. Ainda que celebridades, como foi mencionado no debate, tendam a arrebatar os e as simples mortais, processo esse alimentado pela exposição na mídia, a complexidade que envolve as relações entre homens e mulheres adultas passa pelo consentimento mútuo no qual a palavra final é a garantia da civilidade. Se um diz que não quer,  cessa ali o jogo.  Ou deveria.

O estupro é um ato de violência e tortura praticado contra qualquer pessoa, seja qual for o seu gênero. Não há atenuantes para quem o pratica. É crime. Minimizá-lo só evidencia que os tradicionais lugares cristalizados na sociedade precisam de novas matrizes sob pena de sucumbirmos à barbárie. Novas formas de ver, de sentir, de conviver. Mais respeito, leveza e suavidade, por favor.

É chover no molhado dizer que se trata da representação masculina sobre o feminino e de uma visão distorcida das relações entre os gêneros. Poder, dominação, submissão, permissividade e agressividade ainda integram, com raríssimas exceções, o universo do masculino. No caso, o direito sobre o outro e o seu corpo.  E aí estão as expressões e chavões perversos que todas as mulheres já ouviram em alguma circunstância. Mas não cabe aqui discutir os longos tentáculos do patriarcado a – outro conceito ressuscitado pela realidade premente – a impregnar o imaginário da sociedade.

Resta sim, discutir de modo mais aberto e equânime, as razões de tal violência e o como combatê-la – do assédio praticado por homens “intocáveis”,  e da violação sexual como parte da violência doméstica ao seu uso como arma de guerra.

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