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OUVINDO A VOZ DA MINHA MÃE E A TUA: A VIDA ESQUECIDA DE ALCEU WAMOSY – por ROGER BAIGORRA MACHADO.

Uruguaiana, 24 de maio de 2017. Os trabalhadores receberam o encargo de remover um busto da Praça do Barão do Rio Branco. A ordem era simples: Retirar o busto do local onde ele estava, depois, trocá-lo de lugar. Toda praça que se preze tem um busto. E os bustos quase sempre são feitos em pedra, são homenagens de homens para outros homens. E, embora conhecessem o nome do homenageado cravado no busto, nenhum dos trabalhadores sabia direito quem ele era.

Essa é outra das características de vários bustos de praça: o anonimato público.

De repente, uma pá cravou no chão e as picaretas foram se rebatendo contra o concreto, ao lado dos homens, via-se a terra preta que já fazia um pequena elevação, pedaços de tijolos, restos de cimento. A dureza da base do busto estava vencendo. E então, visto que a tarefa da retirada carecia de pressa, eis que veio uma retroescavadeira e rapidamente o busto já estava posto de lado, no entanto, ainda havia algo. Foi quando uma das ferramentas de escavação bateu numa estrutura que parecia uma caixa de metal. Pela ferrugem, rapidamente os trabalhadores perceberam que se tratava de algo muito antigo. A caixa era feita toda em ferro. Seria um “enterro de dinheiro”? Esse foi o pensamento que ecoou em silêncio na troca dos olhares dos trabalhadores que ali estavam.

“Enterro de dinheiro” era coisa do passado, coisa dos missionários jesuítas em fuga ou de estancieiros abastados com medo dos castelhanos. Era coisa de outro século, inimaginável, ainda mais ali, em pleno 2017, no meio da praça central de Uruguaiana. Mas não importava se era coisa de outro século, naquela hora a lógica não dava as cartas. E os corações dos trabalhadores se aceleraram diante daquele mesmo pensamento coletivo: “Ouro!”. Que coisa maravilhosa, afinal, os causos sobre pessoas que encontraram enterros de dinheiro, moedas de ouro e prata, joias de todo tipo, enfim, eles eram verdade! Que sorte.

Uruguaiana, 14 de fevereiro de 1895. A noite clara de lua contrastava com a casa escurecida, a luz das velas e dos lampiões, ritmadas pelo vento, dançavam contra a sombra dos móveis quietos. Uruguaiana ainda não tinha luz elétrica, nem ponte e nem asfaltos. E a criança nasceu como nascem quase todas as crianças, com o ar doendo nos pulmões e o choro se propagando pelo mundo. A parteira levou o pequeno bebê até os braços da mãe, que exausta, usou das poucas forças que lhe restavam e regalou um beijo na pequena testa franzida. Era o primeiro filho de Maria Leopoldina de Freitas. Na sala da casa, o pai, José Affonso, permanecia sentado numa cadeira enquanto esperava pela notícia. E ela veio: – É um menino! Um varão para dar prosseguimento na família. Era verdade! Que sorte.

E o guri que mal havia nascido, na cabeceira da cama já tinha um nome engatilhado, pedido feito pelo poeta português Guerra Junqueiro ao pai, ele se chamaria Alceu. E de herança, o pequeno Alceu arremataria um sobrenome luso-brasileiro, Freitas, coisa da mãe. Por fim, carregaria também o sobrenome húngaro dos Wamosy, artefato paterno. Alceu de Freitas Wamosy.

Nos anos seguintes a família de Maria, José e Alceu seguiria aumentando, viria outro menino, o pequeno Aureliano. Em 1897, mal a cidade havia se recuperado de uma epidemia de peste bubônica, e uma nova epidemia, agora de meningite, abateu-se por sobre Uruguaiana. Aureliano não suportou a doença e morreu. O número de crianças mortas por meningite naquele ano nunca foi calculado, sabe-se apenas que foram muitas vidas que se perderam. Depois da morte de Aureliano, Maria e Affonso tentaram novamente e tiveram outro menino, chamado de José Affonso Wamosy Filho, nascido em 08 de julho de 1899. Depois, em 1901, nasceria ainda uma menina, a última parte da família, chamada Abysaig. E a vida dos Freitas Wamosy caminharia no tranco bucólico e lento de uma Uruguaiana do finalzinho do século XIX, embora sitiada constantemente pela tensão e violência deixadas pela Revolução Federalista de 1893. A marca dos sangues das degolas de maragatos e pica-paus ainda atingiam a memória e o chão das calçadas.

Com dez anos de idade, Alceu era franzino, parecia ter as feições da morte, tinha os traços da vida que finda de forma perene, além disso, era asmático, míope e na pele carregava a palidez dos que pouco tocam a pele na luz do sol. Mas isso pouco importava, com sua inteligência e sensibilidade acima da média, Alceu burlava os problemas físicos e de saúde com incursões demoradas na biblioteca do seu pai, lá ele viajava para países distantes, lutava em batalhas históricas e declamava sonetos de amor para donzelas apaixonadas. Seu pai, José Affonso Wamosy, era um ex-telegrafista, que se transformou em advogado e depois em jornalista. Sobretudo, era um autodidata, assumiu as duas profissões sem nunca ter tido um diploma na parede. É que naquele tempo os diplomas eram acessórios difíceis de se conseguir. E Affonso não precisava de diplomas, ele tinha coisas muito melhores: um jornal, uma infinidade de livros e uma inesgotável vontade de aprender.

E assim o pequeno Alceu foi crescendo ao lado do pai escritor e jornalista. Desenvolveu-se como criança vendo uma dança constante entre Affonso Wamosy e seus livros, especialmente, numa casa cheia de textos e opiniões sobre quase todos os assuntos importantes para a cidade. A casa dos Wamosy era um lugar onde a política era debatida da noite ao dia e onde a vida de Uruguaiana pulsava. Alceu foi aprendendo pela imitação e ainda jovem se tornou um leitor voraz. Dos livros do pai, Alceu desenvolveu um forte interesse pela poesia e pela política, especialmente, pela política dos republicanos.

O jovem começou seus estudos em casa, mas desenvolveu melhor a leitura e a escrita no Ginásio Uruguaianense, uma escola comandada pelo Professor Luiz Antônio Lopes e que ficava na rua 13 de Maio. O ensino do educandário seguia os mesmos princípios utilizados no Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Além disso, o Professor Luiz Antônio Lopes fazia com que seus alunos praticassem atividades físicas, para horror de Alceu, o que era uma novidade na época, seguindo a máxima que diz “Mens sana in corpore sano”. E a novidade de professor Lopes não tardou em ser copiada por outras escolas e educadores da cidade. Além disso, como antevendo o que aconteceria em 1923, o Professor Luiz Antônio Lopes passou também a levar seus alunos para realizar atividades militares, com treinamentos de esgrima com baionetas, prática de tiro com armas de salão, ordem unida e marchas pela cidade. Enquanto a maioria dos alunos tinha bom rendimento nas atividades militares, Alceu Wamosy tinha rendimento medíocre. Definitivamente, ele não tinha dotes militares, seus interesses eram de outra ordem e as suas armas não precisariam de pólvora.

Num sábado à noite, numa reunião da Sociedade Literária Castro Alves, fundada por alunos do Ginásio Uruguaianense, aos doze anos, o jovem Wamosy chocou seus colegas de Ginásio, ao ler um poema de sua autoria, chamado “De sol a sol”. Um poema em prosa, falando das emoções de quem observa um dia de trabalho nas cidades e nos campos, do nascer do sol até o seu crepúsculo. A força do texto e a forma como foi lido demonstrava que, além de um exímio leitor, Alceu também era um ótimo escritor e declamador. Foi um disparo certeiro. O texto era tão bom que alguns de seus colegas não acreditaram que um menino de doze anos o havia escrito. Ledo engano.

Noutra reunião, Alceu lia numa roda de colegas um poema sobre os sofrimentos de um cão abandonado, cena que ele deve ter visto em alguma rua da cidade, quando foi interrompido por um colega maior e mais forte que falou uma piada grotesca e vulgar. O jovem poeta, após encarar o colega, fechou o caderno onde o texto estava escrito e disse: “Seu sofista!”. Um silêncio na roda, começaram os burburinhos: “nossa, o Alceu chamou ele de sofista!”, “e ele não vai fazer nada?”, “ei, sofista, eu não deixava assim!”. Eis que quando o colega de Alceu estava se aprontando para a briga, um dos presentes perguntou, “Mas o que é sofista?”. Acontece que ninguém na roda de alunos sabia o que significava o termo sofista, tão pouco o ofendido e muito menos o ofensor, que prontamente respondeu: “Sofista é uma forma de ofensa entre os intelectuais! Ora!”. Pronto, estava resolvido, não haveria mais briga, pois mesmo que fosse uma ofensa, era uma ofensa entre intelectuais, logo, também era um tipo de elogio ao colega da piada grotesca.

Em Uruguaiana, o pai de Alceu, José Affonso, era dono de um jornal chamado “O povo” e, mais tarde, em 1907, foi proprietário de um outro jornal chamado “O Democrata” e que funcionava em frente à Praça Paysandu. A Praça Paysandu ficava em frente à Igreja Nossa Senhora do Carmo e a casa que abrigava o jornal “O Democrata” era exatamente ao lado da igreja. Ambos os jornais tinham uma agenda política bastante clara, que era a defesa intransigente da República e o combate ao federalismo. E aqueles anos do início do século ainda eram tempos de extremismos políticos. As chagas da revolução da degola ainda não se tinham curado. Eram tempos onde se ter opinião política era sinônimo de se ter inimigos. Com isso, a família Freitas Wamosy acabou tendo que mudar de cidade. Deixaram a costa do Uruguai e foram para as margens do Ibirapuitã. Mudaram-se para Alegrete em 1909.

Na nova cidade, em 1911, aos dezesseis anos de idade, Alceu lia e escrevia cada vez mais. Tornou-se admirador da obra de José María Vargas Vila (1860-1933), escritor colombiano que escreveu textos sobre a política latino-americana e romances e ensaios diversos. Na mesma época, recebeu de seu pai a tarefa de ser o diretor do jornal “A Cidade”, o mais novo empreendimento da família. Como o escritório de advocacia de Affonso Wamosy em Alegrete ia de vento em popa, o tempo para o jornal era cada vez mais escasso.

Para Affonso, era chegado o momento de passar para o filho a arte da tipografia, para Alceu, era o início de um caminho sem volta.

No jornal “A Cidade” ele publicou suas primeiras poesias, textos que rapidamente chamaram a atenção da comunidade intelectual alegretense. Como bom poeta, apaixonou-se por uma jovem da alta sociedade alegretense, chamava-a em seus poemas pelo nome de “Miréia”, a mulher das “curvas deliciosas” e das “mãos que ferem (…) acariciando”. Escreveu muitos poemas em homenagem à amada. Mas os dois eram como sol e lua. A jovem adorava a vida social, os bailes, Alceu preferia ficar horas em seu quarto escrevendo e lendo. Ela era católica praticante, Alceu nem era batizado. Ela era elegante e se vestia lindamente, Alceu gostava de vestir apenas camisas quadriculadas coloridas e não usava gravata. Ela se comportava como uma nobre, Alceu se dizia apenas um burguês. No final, o amor entre os dois aconteceu por pouco tempo, um tempo suficiente para deixá-lo eternizado nas páginas pintadas pelos poemas de Wamosy.

Em 1913 Alceu já trabalhava também como advogado no escritório do pai. Seu nome e seus textos eram relativamente conhecidos na Fronteira Oeste e, assim, Alceu Wamosy decidiu escrever seu primeiro livro. Deu à ele o nome de “Flâmulas”. Os vinte sonetos que compunham a obra assustaram alguns e impressionaram outros, em comum, todos tiveram a mesma reação, a fria indiferença. É que Alceu fez todo o trabalho, a impressão, a tipografia, o encadernamento e o resultado não ficou lá muito “profissional”. Ele teve seus brios feridos com a recepção que “Flâmulas” recebeu em Alegrete, acostumado aos elogios, agora se impactava nele o silêncio da indiferença. Como resposta, Alceu Wamosy escreveria sem parar. A escrita era um vício, além de produzir textos para o próprio jornal, ele contribuía também com os jornais “Gazeta de Alegrete” e com “A Nação” e “Correio de Notícias” de Uruguaiana.

No “Gazeta de Alegrete”, deixou muitas poesias e prosas. Escreveu um conto chamado “A Traição”, sobre um engenheiro que dedicou doze anos de sua vida para criar um coração artificial. Num ritual sagrado de amor à ciência, o engenheiro conseguiu criar uma máquina capaz de desvendar “o segredo divino da vida” e tornar o homem imortal. No fim, o cientista é traído por um amigo e morre, vítima do próprio coração. Por sinal, a morte e o amor foram temas perenes na obra poética de Wamosy.

Apenas um ano após o lançamento de Flâmulas, Alceu Wamosy ignorou a indiferença e “a pequenez dos nulos” e publicou um novo livro, ainda maior, agora com 43 poemas e chamado de “Terra Virgem”. Agora o seu nome e sua fama de grande poeta há muito tinham deixado Alegrete para trás e já circulavam por Porto Alegre e Rio de Janeiro.

No ano de 1914 o clima político era bastante tenso na região e os jornais de Alegrete e Uruguaiana cobriram um debate entre dois líderes da política da Fronteira, de um lado o Jornal federalista “A Nação”, que em 1922 pertenceria à João Batista Luzardo, e o jornal “A Cidade”, dos Wamosy. Os boatos eram tantos ao ponto de fazer o pai de Alceu Wamosy enviar uma carta para o Coronel Vasco Alves Pereira, queria saber sobre boatos de que o Coronel estava a insultá-lo por detrás das páginas dos jornais, prontamente, foi respondido por Vasco Alves. Enquanto todos esperavam uma guerra entre os dois, o tom altamente respeitoso do diálogo pôs fim ao clima de batalha, não haveria sangue. Assim, ambos chegaram a publicar textos nos jornais onde desmentiram os boatos e demonstraram que, embora fossem de campos políticos opostos, respeitavam-se mutuamente. Essa demonstração de respeito público de dois homens diante da política, menos de uma década adiante, faria toda a diferença na vida de Alceu.

Ainda em 1914, o jovem Alceu Wamosy foi nomeado pelo Presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, como Alferes da Guarda Nacional, por sinal, assim foram nomeados todos os oficiais pertencentes à Comarca de Alegrete. A Guarda Nacional tinha por função apoiar o exército na defesa da ordem e obediência das leis, assim como, nas linhas de fronteiras e costas. A cidade toda questionou essa ação com curiosidade e medo, afinal, estaria o Brasil se preparando para entrar na 1° Guerra Mundial? Para ser um Alferes da Guarda Nacional, cargo vinculado ao Ministério da Justiça, bastava ter entre 21 e 60 anos e ter capacidade para ser um eleitor. De toda forma, Alceu ficou lisonjeado com a nomeação, afinal, ele defendia os ideais republicanos de Hermes e Pinheiro Machado quase que diariamente em seus textos, depois da nomeação, ele seguiu entrincheirado no seu jornal.

O ano de 1914 seguia firme, as notícias da grande guerra estampam os jornais, o mundo acompanhava as imagens dos soldados em suas batalhas. Em Alegrete, Alceu Wamosy acompanhava as críticas positivas que seu livro, “Na Terra Virgem” recebia em jornais de Uruguaiana e Alegrete, e em pouco tempo, em periódicos de Porto Alegre. No número de Natal da revista “Fon-fon” de 1914, seu poema “Duas Almas” é publicado pela primeira vez na capital do país e sua fama de poeta se firma nacionalmente, especialmente, após seu texto ser plagiado por um padre chamado Evaristo de Paula, que assumiu a autoria e o declamou no Salão Coelho Neco, na cidade do Rio de Janeiro. Quando a farsa foi descoberta, todos queriam saber quem era o jovem autor gaúcho que escrevia tão bem.

E assim ele se dedicou e, junto da poesia e dos contos, escreveu textos políticos de apoio ao Partido Republicano e ao Borges de Medeiros. Nos anos seguintes, o Alceu Wamosy passou também a frequentar a capital do Estado com mais frequência, convivendo com intelectuais como Celestino Prunes e autores como De Sousa Junior e Dyonélio Machado, este último, com quem tinha em comum, além dos textos em jornais e livros, a origem fronteiriça, pois Dyonélio era de Quaraí. Com Dyonélio Machado, o jovem poeta de Uruguaiana passou a conviver com a cena artística de Porto Alegre, participando de um grupo chamado “A República do Império”. Os membros do grupo se reuniam na Confeitaria Schramm, que ficava na rua dos Andradas e também, por diversas vezes, na Praça da Harmonia, bem no início da Rua da Praia.

Em 1917, aos vinte e dois anos, Alceu decide mudar de ares e compra um jornal em Santana do Livramento, era “O Republicano”. Um jornal que seria voltado para defender abertamente os ideais positivistas e a causa republicana dos chimangos. Era o mínimo que o poeta poderia fazer como um Alferes da Guarda Nacional: lutar com as palavras e com a tinta.

E os dias foram passando até que o ano de 1922 e o mês de novembro chegou diante de Alceu Wamosy, que estava com 27 anos de idade e acompanhava com atenção as eleições do Estado. De um lado, Borges de Medeiros e seus chimangos de lenços brancos, de outro, Assis Brasil e seus maragatos de pescoços vermelhos. Borges tentava se eleger pela quinta vez como Presidente do Estado e manter no poder os vencedores de 1893. Embora sempre sendo acusados de fraude, o Partido Republicano pouco ligava e seguia reprimindo os opositores. As eleições foram marcadas por muitas denúncias de repressão e violência, onde muitos dos que eram contrários a Borges foram presos, espancados e mortos. Em Alegrete, durante a votação, o Coronel Vasco Alves sofreu atentado com vários tiros. Flores da Cunha em Uruguaiana era acusado de mandar prender sem motivos um sargento da polícia aduaneira, pois este era eleitor de Assis Brasil. Oswaldo Aranha era acusado de levar eleitores para votar em locais diferentes.

Por sinal, a prática adotada pelos republicanos era a mesma dos anos anteriores, vencer na força e não nos votos. De Livramento, Alceu lia as notícias das prisões dos maragatos em várias cidades, locais de reunião dos correligionários de Assis Brasil eram fechados pela polícia a todo momento.

Ao término das apurações, alegria para os republicanos, a vitória novamente de Borges de Medeiros. Acontece que a comissão apuradora, formada por pessoas fiéis ao governo, foi acusada de fraude eleitoral pelos eleitores de Assis Brasil. Ao que parece, as denúncias tinham fundamento e pessoas votaram várias vezes em locais diferentes. Muitos estancieiros levavam seus peões para votar em cidades próximas várias vezes, havia relatos de pessoas que tinham votado mais de cinco vezes no mesmo candidato, no caso, em Borges. Rapidamente, o que era uma disputa política de argumentos e votos e que antes também era feita em textos de jornais, transformou-se numa disputa armada e violenta. O Rio Grande do Sul entrava em uma guerra civil, mesmo que num nível menor de violência que em 1893, novamente era um fratricídio em que famílias se dividiram, amigos se mataram e vizinhos se degolaram. Pessoas dos mais diferentes lugares, das salas das faculdades, dos jornais, das cidades, dos galpões e dos fundos de campos, independente do lado político, todos imbuídos de um mesmo idealismo e desprendimento diante da própria vida. “Depois da morte da liberdade, só a liberdade da morte”, escreveria Alceu Wamosy.

Depois de fiscalizar a votação em Santa Rita e presenciar eleitores votando mais de uma vez no 4° Distrito de Livramento, Honório Lemes declarou: “Eu não darei mais um passo para concorrer a esta farsa que chamamos eleições”. Afirmou que apenas a revolução poderia trazer mudanças e a reivindicação dos direitos federalistas deveria ser feita a bico de lança. No final de janeiro de 1923, as cidades de Palmeira das Missões e Passo Fundo foram atacadas pelos maragatos. O plano de Assis Brasil e seus apoiadores era tão simples como mover um busto em uma praça. Como em nível nacional o vencedor era Arthur Bernardes, que era politicamente crítico a Borges de Medeiros, imaginava-se que diante de uma luta armada, restaria ao Presidente da República decretar uma intervenção federal no Estado e, assim, novas eleições.

O problema é que Borges de Medeiros, antevendo isso, conseguiu se aproximar de Arthur Bernardes, evitando, assim, que o governo federal interviesse nas eleições e nos focos de confronto entre os chimangos e maragatos pelo Estado. Isso foi um balde de água fria sobre os maragatos, pois eles contavam com a intervenção federal e sequer estavam organizados para uma luta de grande porte com o governo de Borges. Os focos de lutas se encontravam longe de Porto Alegre. Com isso, os federalistas tiveram que se organizar em colunas e ao redor de seus líderes locais. No Norte, Leonel Rocha. No centro e sul, Zeca Netto e Estácio Azambuja. Felipe Portinho ficou com o Nordeste do Estado. E na região onde Alceu Wamosy morava, a Fronteira Oeste e Campanha, os encargos das batalhas maragatas ficaram com Honório Lemes, o Leão do Caverá.

A coluna comandada por Honório Lemes se destacou rapidamente entre as outras colunas maragatas, pelo alto nível de sucesso dos embates e pelo número de cidades ocupadas. Além disso, Honório tinha um comportamento diferente dos grandes líderes de pescoços vermelhos, ele não ostentava riquezas e, tão pouco, queria que o tratassem como um diferente dentro das fileiras armadas. Honório era um tropeiro, homem do lombo do cavalo, sua simplicidade campeira o aproximava das pessoas pobres da região, tanto é que sua coluna chegou a contar com mais de três mil homens, todos voluntários. E o Leão do Caverá foi ocupando a Fronteira Oeste e Campanha, Alegrete, Dom Pedrito, São Gabriel, Rosário do Sul e Quaraí. Todos os meses uma nova cidade era ocupada.

Em abril, Honório e sua coluna partiram de Quaraí na direção de Uruguaiana. Uma vanguarda ligeira tomou a dianteira, queriam ir combatendo pequenos focos e reconhecendo estâncias onde pudessem ter chimangos escondidos. Quando a vanguarda estava a cerca de uma légua da cidade, encontraram-se com um único homem armado, tratava-se do policial Capitão Bernardo Mathias Muller, intendente do 3° Distrito. Os soldados de Gumercindo Saraiva foram recebidos à bala pelo exército de um homem só. Um único homem contra uma vanguarda inteira. As testemunhas narram que jamais viram um “homem sozinho, bater-se com tanta valentia como o fizera”. A vanguarda demorou um bom tempo para superar Bernardo, que por fim acabou ferido, vencido e morto, mas jamais esquecido pelos que presenciaram sua valentia, estando inclusive nas memórias de Flores da Cunha. Quando a coluna de Honório Lemes chegou na cidade de Alceu Wamosy, o Leão do Caverá não atacou, pernoitou nos arredores e organizou suas tropas.

Acontece que na cidade todos já sabiam de sua presença. Flores de Cunha, que havia sido o nono intendente de Uruguaiana e ex-combatente de várias lutas na Revolução de 1983, já estava organizado e preparado para o enfrentamento. Ainda em novembro de 1922, mandou carta para Borges de Medeiros, solicitando armas e homens, pois tinha conhecimento de movimentações de “elementos desordeiros” na estância de Luiza Pereira, na Coxilha Negra. Contando com o apoio da Polícia Municipal, com pessoas de Itaqui, liderados por Oswaldo Aranha, alegretenses que conseguiram fugir com armas, quarenta praças do 2° R. C da Brigada Militar e muitos uruguaianenses da Guarda Republicana, a força de defesa da cidade contava com quase 400 homens. Flores da Cunha pernoitou fora da cidade, havia trincheiras em todas as bocas de ruas, no acesso por onde deveria vir a coluna de Honório Lemes, estenderam uma linha com pessoas armadas que ia do matadouro municipal, cruzando pela estrada geral que ligava a cidade aos municípios de Alegrete, Quaraí e Livramento, prosseguindo por campos e por chácaras, indo até às margens do arroio do Salso.

Na manhã do dia seguinte, em 03 de abril de 1923, descendo de um cerrito, surgiu a primeira vanguarda dos maragatos. Foram recebidos com saraivadas de tiros, Flores da Cunha contou que aguardou ao máximo sua aproximação junto da linha de tiro que havia montado. A recepção violenta atordoou os maragatos que precisaram se desagrupar e bater em retirada. Depois de várias investidas sem sucesso, Honório retirou-se de Uruguaiana em 05 de abril. Com a vitória momentânea, Flores da Cunha foi incumbido da missão de perseguir e exterminar os maragatos que haviam tentando ocupar a cidade. Começava ali uma das maiores perseguições de nossa história, a Brigada do Oeste, de Flores da Cunha, contra a Coluna de Honório Lemes.

O inverno já começava a perder as forças e o mês de setembro havia chegado. Alceu Wamosy já estava há algum tempo envolvido com a luta armada contra os maragatos, ele se alistou no início de 1923, tão logo começaram os primeiros combates, e já tinha participado de várias batalhas, como o ocorrido na ponte do Ibirapuitã. Há vários dias Alceu não sabia de sua noiva e família. As tropas de Flores da Cunha tinham perseguido a coluna de Honório Lemes por uma distância gigantesca, cruzando rios, arroios e pradarias.

Os maragatos, já bastante isolados uns dos outros e quase sem munição, começavam a dar sinais da derrota iminente. O Leão do Caverá, manteve-se com sua coluna por muitos dias, lutando com táticas de guerrilha e usando a pampa como o tabuleiro de um grande e mortal jogo de xadrez, mas vendo-se acuado por todos os lados por tropas borgistas, adotou uma estratégia arriscada. Foi até o Rio Santa Maria Chico, que estava envolto numa enchente, era o dia 03 de setembro de 1923. A coluna maragata de Honório Lemes se viu entre as tropas da Brigada do Oeste e do mercenário uruguaio Nepomuceno Saraiva. Sabendo que as tropas de Flores da Cunha vinham para se juntar com o uruguaio, Honório se meteu entre ambas, dividindo as duas tropas. E sabendo também que as tropas de Flores da Cunha eram em maior número e vinham pela margem oposta, Honório decidiu enfrentar primeiro Nepomuceno.

Honório Lemes foi até os campos do Ponche Verde e organizou uma arapuca, colocando atrás de uma coxilha a 3° Brigada Libertadora. Depois atraiu as tropas de Saraiva até o lugar exato em que havia planejado para o combate. Nepomuceno foi advertido por Flores da Cunha, para que não fosse em perseguição, que esperasse ou atravessasse para a outra margem, o uruguaio ignorou a ordem e partiu atrás da coluna. Mal chegou nos campos do Ponche Verde, as tropas do uruguaio foram recebidas com violência, Honório mandou que uma carga de cavalaria fosse jogada para cima dos borgistas, que em posição de defesa agrupam-se num baixio do terreno, depois, linhas de atiradores maragatos abriram fogo. A cavalaria se retirou em seguida e, depois de se reorganizar, retornou para nova investida. Daí, o que se viu no Ponche Verde foi uma luta brutal. Das coxilhas, depois de muitas horas de espera, surge a 3° Brigada Libertadora. A batalha campal se desenvolve no chão, sem cavalos ou metralhadoras, homem contra homem, no facão e na espada. Cerca de cem soldados da cavalaria descem dos animais e também vão a pé para o confronto. Muitos soldados uruguaios abandonaram o campo de batalha. Derrotados, os chimangos são aprisionados e executados ali mesmo.

E Alceu Wamosy estava entre os presos. Ferido com um tiro que entrou pela clavícula e furou um dos pulmões. Na fila da degola, o poeta ouvia os degoladores pedindo para que os prisioneiros falassem “quero-quero”, quem não conseguisse pronunciar, sabido seria que era uruguaio e a degola era a resposta. De repente, Alceu foi reconhecido por um dos filhos de Vasco Alves, o homem com quem seu pai havia discutido anos antes e com o qual demonstrou respeito e honradez diante de duas cidades que esperavam uma luta. Em seguida, Honório Lemes é avisado que o poeta estava entre os feridos, mandou que Batista Luzardo fosse ver como ele estava. Todos pareciam incrédulos com o fato de um poeta que escrevia sobre o amor, um intelectual, estar ali, no meio de tanto sangue e mortes. Honório Lemes dá ordens para que Alceu seja poupado e levado para um hospital em Santana do Livramento. Dias depois, chega Dona Maria Wamosy, sua mãe, ela vai até o hospital e lá se deica em cuidar do filho, junto dela, a jovem Maria Bellaguarda, namorada do poeta, com quem se casaria ainda no hospital.

No dia 13 de setembro de 1923, dez dias depois de ser ferido em Ponche Verde, a morte de Alceu Wamosy é comunicada e choca toda uma comunidade. Dois anos depois, um de seus textos chamou a atenção de muitos de seus admiradores. Wamosy, quando criança, gostava de brincar de fazer adivinhações com cartas de baralhos, mas ele acabou fazendo a maior de suas adivinhações numa poesia, intitulada “Idealizando a Morte”, como numa premonição sem cartas, ele diz:

“Morrer ouvindo a voz de minha mãe e a tua,
rezando a mesma prece, ao pé do mesmo santo,
vós, ambas tendo o olhar estrelado de pranto,
e no rosto, e nas mãos, palidezes de lua.

Morrer com a placidez de uma flor que se corte,
com a mansidão de um sol que desce do horizonte,
sentindo a unção do vosso beijo ungir-me a fronte,
– beijo de noiva e mãe, irmanados na morte.”

Após a batalha do Ponche Verde, em novembro, começaram as tratativas para o armistício. A paz entre chimangos e maragatos só foi oficializada em 14 de dezembro, com as assinaturas de Borges de Medeiros e Assis Brasil. Estima-se que mais de mil pessoas morreram naqueles poucos meses de 1923, e o poeta foi um dos tantos que se aventurou na violência como forma de se fazer política. Os restos mortais de Alceu Wamosy permaneceram em Livramento e, depois de muitas discussões entre as cidades, só foram enviados para Uruguaiana em 1953, colocados dentro de uma caixa de ferro, junto com um livro, onde seriam enterrados por décadas no esquecimento de uma praça. Até que em 2017,  sem querer, os ossos de Alceu foram encontrados debaixo de um busto feito em sua homenagem na Praça Barão do Rio Branco. Não era um “enterro de dinheiro”, como pensou o trabalhador que retirava o busto do lugar, o que ele tinha encontrado era o enterro de um poeta num anônimo túmulo público. Era a vida esquecida de Alceu Wamosy.

No próximo dia 23 de setembro de 2023, completaremos cem anos de sua morte, espero que ele nunca mais seja enterrado em nenhum túmulo esquecido, mas revivido constantemente em homenagens e na leitura de seus textos e poesias.

 

 

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana, também é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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