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Olho de Peixe Morto, por Yago Luís Nóbrega Mendes

Pela janela aberta vi eletricidade formar estrias de luz na pele escura das nuvens. O trovão reclamou alto, fazendo tremer as venezianas e o celular em minhas mãos. Por mais uma vez você me fez acreditar que seríamos. Todas aquelas mensagens trocadas fez o nosso amor, encharcado pelo tempo e vicissitudes, rebrotar em verde e depois em magenta. O cadáver decomposto retirado do cemitério tempestuoso com pá de pedra-do-sol. Eu acreditei em você uma vez mais. Acreditei em um “nós” há tanto tempo prometido. O carinho mantido mesmo após tantos anos. A voz meiga que irradiava pelo áudio me dizia todas as coisas que eu queria ouvir. Como me veria, como me tocaria, como me despiria de minhas roupas e incertezas. Dessa vez daria certo. Apenas daria. Amarrados pelas cordas radiantes de um amor predestinado. 

O aroma e sabor do néctar eram doces demais. Você sabe, e sempre soube, que por ti eu me quebraria um bilhão de vezes. Me cortaria com meus próprios cacos e coagularia o sangue para preencher seus vazios. Reconsideraria todas e cada uma de suas imprudências. Impulsividades. Te odiaria apenas de fachada, mas no mais vago “Me desculpe” tudo estaria resolvido. Doce demais. Pegajoso demais. Me vi mais uma vez preso, não na delicada flor, mas na impiedosa armadilha de uma carnívora. Pronta para dissolver e comer meu coração. 

Não tive controle sobre os acontecimentos. Eu tive que ir para a casa dos meus pais. O estado estava inundado pelas ações do antropoceno. Sem água encanada há semanas. Sem aulas. Sem sanidade mental. Não pude te receber no momento que você queria. Da maneira que queria. E, como vingança, você não quis mais. Não ME quis mais. Achou em menos de 20 dias outro. Outro para chamar de seu, para cuidar, para amar. Se apaixonou como água fervida. Me descartou e disse que queria me ver apenas como um amigo. 

Como você ousa?! Após fazer sentimentos antigos reapareceram. De me prometer noites de prazer e beijos desajeitados. De me certificar de um amanhã a dois, com momentos e realizações. E sorvetes de casquinha. E flores silvestres no campo. E lagartear no sol invernal. E jantares à luz de velas. E fotografias atemporais em trilhas no verão. E poemas bregas deixados sobre o cobertor. E o refrescante sabor de mexerica em nossos lábios. E demonstrações calorosas de afeto a cada 10 minutos.

Tudo isso sumiu em apenas algumas palavras: “Estou permanecendo na casa do boy que estou ficando, mas se quiser podemos nos ver ainda como amigos”. Aquilo liquefez o pavimento sob meus pés. Não consegui acreditar no que acabara de ler. Todas as nossas levadas fabulações lavadas pela enxurrada dessa mensagem confusa. Afogadas em Leptospira escura. Puxados quilômetros de distância e ilhados um do outro pela ribeirada do desencanto. Que deprimente! Para mim obviamente. E somente para mim. Um único pé de meia desaparecido entre o vão do guarda-roupa e da parede. Para sempre ali esquecido. Enquanto as Donas Aranhas trabalham suas fiandeiras sobre minha silhueta. Me cobrindo com cordéis de prata. E esqueletos de criaturas mortas. E muita, muita poeira. E umidade.

Apesar disso, não consigo chorar. O mar dentro de mim perdeu suas ondas. Sem rebentações contra as praias de areias brancas em minhas escleras. Ou as falésias cor-de-âmbar das minhas íris. A face faz caretas ao pensar em você. Rugas e vincos por todos os lugares. A boca com formato de ferradura. Porém, sem choro, sem lágrima, sem pranto. Sem som. Apenas destruição muda e ruído branco. Muita destruição. A resposta de luta ou fuga do simpático não veio. Simplesmente paralisia. Foi a pior tristeza que senti em muito tempo. Quis vazar, verter e transbordar. Mas já estava submerso no dilúvio para que qualquer água pudesse escapar. 

Nas profundezas, um olho de peixe morto me encarava fixamente. Conseguia sentir a malícia e chacota transbordar daquele olho cego. O olhar afiado como arame farpado. A alma fria. A calmaria de quem acessou com entusiasmo o jardim botânico de sua psique, apenas para incendiá-lo com a bituca de cigarro do pouco-caso. Voltou o calor contra mim. Todas aquelas espécies únicas, raras e ameaçadas absorvidas nas labaredas de nicotina e câncer. A vida broxando para longe até ser reduzida ao pó. 

Apenas os galalaus jequitibás-rosas intocáveis. Patriarcas da longevidade e alicerces da resistência. Da minha resistência. Recolhi as asas carbonizadas dos capitães-do-mato caídos pelo chão do meu quarto. Você nunca mereceu a honra de pousarem em seus dedos. Apertei tudo em minhas mãos seguradas contra o peito. E fiz tudo estralar e se desfazer. Apoiado no peitoril da janela, abri as mãos e com um único sopro fiz o pó azul metálico e chamuscado alçar voo. O vento norte carregando minhas frustrações céu acima e empurrando para longe as nuvens invocadas. 

Aos poucos uma clareira abriu-se na abóbada celeste. Crescendo pouco a pouco. Logo, o rosto belo e simpático de Apolo apareceu. Seu poderoso sorriso clareando tudo pelo caminho. Morno. Acolhedor. Peguei novamente o celular, digitei decisivamente “Prefiro que não.” e, depois de enviada, apaguei o seu contato das minhas vistas. Sorri timidamente para mim mesmo. Eu abrirei caminho entre a armadilha açucarada. Enxugarei meu chão escorregadio e contaminado. Colarei meus cacos uns aos outros com o kintsugi. Sairei do vão da solidão para a gaveta da solitude. Plantarei novamente cada vegetal perdido e terei um jardim mais vistoso e completo que antes. E o olho de peixe morto… Bom, este terei um prazer especial em lidar. Eu o pescarei e darei para minhas gatas comerem no jantar.

 

 

Yago Luís Nóbrega Mendes: nasceu em Registro – SP e cresceu em Miracatu – SP, possui graduação em Ciências Biológicas – Bacharelado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atualmente cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em Agrobiologia na mesma instituição. Apaixonado pela natureza e literatura desde sua infância, se ampara em ambas como fontes de paz, bem-estar mental e inspiração. Em seu tempo livre gosta de fotografar a natureza, escrever e ler, principalmente, Gabriel García Márquez e Clarice Lispector, seus autores prediletos.

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