Inteiramente filmado no município de São João d’Aliança, Chapada dos Veadeiros/Goiás, o longa-metragem Oeste Outra Vez aqueceu a noite gelada de Gramado, e já é o meu favorito entre as obras vistas até agora no Festival.
O filme é um exemplar típico do que nós cinéfilos costumamos chamar de ‘produção BO’ (Baixo Orçamento), e leva às últimas consequências o que seu diretor e roteirista, o goiano Erico Rassi, designou como “Estética da Precariedade”. No entanto, é justamente quando a verba escasseia que se instala o desafio da criatividade; e a busca de um conceito norteador determina as escolhas estéticas que fazem avançar a linguagem cinematográfica. Afinal, as verdadeiras obras de arte são construídas na sofisticação da simplicidade.
Como o próprio título já sugere, a premissa aqui foi realizar o que eu chamaria de um ‘faroeste tupiniquim’ ou um ‘bang-bang à brasileira’, com várias nuances do subgênero western spaghetti, porém fiel ao universo rural do Brasil profundo, e com assumida referência à literatura contista de Guimarães Rosa na coletânea Sagarana. O resultado é um filme à moda antiga, mas com olhar inovador sobre o gênero.
O argumento é primoroso. Conta a trajetória de Seu Totó e Durval, dois homens abandonados por uma mulher que resolvem se matar um ao outro e contratam pistoleiros de aluguel para ajudá-los a concretizar a matança. Temos então um bando de jagunços armados se deslocando à esmo numa saga sangrenta de destruição mútua. E aqui cabe também a referência a outro subgênero, o walking movie.
Luísa, a única mulher da história, só aparece uma única vez, na primeira cena, dando as costas e indo embora. A partir daí temos somente personagens masculinos que não conseguem sustentar uma conversa coerente entre si, estabelecendo uma relação de ‘companheirismo às avessas’. Todas as falas são frases curtas, fragmentadas, em que a mulher ausente invade o mundo idealizado (às vezes inconsciente) desses homens. Pode-se até pensar em uma crítica velada ao machismo estrutural, por uma inserção indireta do universo feminino que transpassa imperativamente o imaginário masculino.
Pensando que os personagens nem sempre são seres humanos, em minha opinião o filme tem uma protagonista velada, apesar de explícita e onipresente da primeira à última cena. Todos os homens a buscam incessantemente, se alimentam dela, não abrem mão de tê-la. É a CACHAÇA. Bebem pura ou com sal e limão, mas bebem sem parar. Não sei se ela é causa ou efeito da solidão deles, mas ela determina indelével o transcorrer da saga masculina. Fica nítido e notório que, entre a mulher e a cachaça, eles preferem a segunda. E em um processo de desconstrução da narrativa realista, temos aqui machos fragilizados que não abandonam suas esposas, mas são abandonados por elas. Nos botecos do filme, onde também não há mulheres, os homens confraternizam euforicamente. Parece até que amam a si mesmos, uns aos outros e, principalmente, a cachaça. Através dela eles conseguem a façanha de poderem se escutar. É quando o tal ‘diálogo’ pode, enfim, acontecer.
A produção de baixo orçamento (Panaceia Filmes + Vietnã Filmes + Rio Bravo Filmes) é capitaneada por Cristiane Miotto, esposa do diretor, em parceria com a amiga Lidiana Reis. O mesmo trio lançou, em 2017, o excelente COMEBACK (primeiro longa deles) que também arrebatou a crítica e ganhou prêmios em vários festivais. Neste segundo filme, eles realizaram um longo e artesanal trabalho de pesquisa sobre o Serrado brasileiro, suas cores, falas e trejeitos. Mal sabiam (ou sabiam) que estavam descortinando um panorama representativo de todo um país. Isso fica claro, na escalação multicultural do elenco, que tem ator mineiro, carioca, cearense, goiano, amazonense, paraibano..puro suco de Brasil.
Babu Santana e Ângelo Antônio entregam MUITO na dupla principal, enriquecendo suas atuações com momentos que alternam densidade e descontração a ótimas cenas de improviso, sem perder a consistência dos personagens. Há uma participação especial rápida e excelente do icônico Antônio Pitanga. Outros destaques são o amazonense Adanilo e o paraibano Daniel Porpino que encarnam uma dupla de pistoleiros impagável e impecável. Porém, a grande revelação do elenco é o cearense Rodger Rogério, músico e compositor que, ao lado de Augusto Pontes, Belchior, Fagner, Fausto Nilo, Ednardo, Amelinha, entre outros, fez parte na década de 70 do grupo que ficou conhecido como “Pessoal do Ceará”, um dos mais relevantes movimentos da MPB no século passado. Hoje, aos 80 anos, Rodger brilha na tela como um pretendente a pistoleiro de aluguel que cativa o espectador de forma sutil e irreversível. Um LUXO.
Outro aspecto que chama atenção no filme é o trabalho conjunto da Direção de Fotografia de André Xará Carvalheira com a Direção de Arte de Carol Tanajura, que consegue realçar toda a sujeira, a aridez, a desolação e as cores fortes do Serrado. Tudo em fotogramas escuros, opressivos, elaborados em luz minimalista e monocromática, através de planos fixos com pouca ou nenhuma movimentação de câmera. Muito BOM.
Por fim, a minuciosa e criativa montagem/edição de Leopoldo Nakata e Erico Rassi executa a necessária recriação final do Roteiro, elevando a obra a esse lugar preciso de ser um filme sobre o ‘não-diálogo’, um filme de arestas, de rachaduras, com muitos códigos do western, mas fiel à estética da Precariedade. Cinema Independente Brasileiro de Primeira Qualidade. Vejam..
DARIO PONTES: Crítico. Especialista em Cinema pela Fundação Getúlio Vargas. Médico psiquiatra e psicanalista no Rio de Janeiro. Paraibano de Campina Grande radicado há 36 anos no Rio. Crítico da Rede Sina no 52° Festival de Cinema de Gramado.