O Poeta
Lembro-me como se fosse hoje daquele longínquo 17 de novembro de 1994. Estava no escritório da Editora Moderna quando me foi entregue uma carta de Manoel de Barros, o poeta que aprendi a amar desde muito cedo. Tremendo como vara verde, segurei a carta junto ao peito. “Seria então a resposta do poeta ao convite que lhe fizera uma semana antes? Manoel de Barros, o autor de ‘Gramática expositiva do chão’, o dono da poesia a que Guimarães Rosa comparava a um doce de coco, teria considerado a ideia de escrever um livro para crianças?” — eram as perguntas que assaltavam a minha cabeça.
Abri o envelope como quem abre uma caixinha de música ou um pacotinho de suspiros recém-feitos, aquele doce que as mães antigas faziam para o deleite dos meninos. Encontrei um bilhetinho, escrito em letras mínimas, em que o poeta dizia, depois de recusar, com muita delicadeza, o meu convite: “Agradeço as referências elogiosas à minha poesia. É o que me alimenta e me faz reverdecer um pouco. Estou comovido com o seu convite. Um dia, quem sabe, haveremos de nos encontrar. Com o abraço e a amizade do Manoel de Barros”.
Depois daquele bilhete, que guardo até hoje como um troféu, perdi a conta das cartas que trocamos. Tornamo-nos amigos e durante um bom tempo esqueci-me do convite que fizera ao poeta. Tinha a sua amizade e isso sempre me bastou.
Qual nada… Em 1998, depois de tantas e tantas cartas trocadas, eis que o poeta me presenteia com um poema chamado “O menino que carregava água na peneira”. No bilhetinho que acompanhava o poema, Manoel, hesitante, diz: “Vê se presta.” Ato contínuo, liguei para o poeta: “‘Vê se presta’, Manoel? Você enlouqueceu?” — disse-lhe ao telefone, logo após ler o poema pela primeira vez. Sabia que ele não gostava dos telefones, mas eu não podia esperar. Tinha o coração a saltar. Rimos muito enquanto conversávamos, mas percebi que Manoel se mostrava verdadeiramente hesitante quanto à adequação do poema. Quando a questão já parecia superada, ocorreu-me lhe pedir um poema para uma menina. Sabia que estava a cometer uma heresia, mas a ideia não desagradou ao poeta. Tanto que, uma semana depois, eis que Manoel me manda “A menina avoada”.
No bilhetinho que acompanhava o novo poema, Manoel diz que o livro se chamaria “Exercícios de ser criança” e que já não tinha medo de escrever para crianças.
Citando Fernando Pessoa, Manoel diz: “Nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças.”
Aos poemas de Manoel de Barros juntei os mágicos bordados da família Dumont. “Exercícios de ser criança” foi lançado em 1999 e rendeu, entre outros, o Prêmio ABL de Literatura Infantil, que o poeta recebeu pessoalmente. Não afeito a aparições públicas, Manoel decidiu receber o prêmio pessoalmente, mas não sem antes, num boteco próximo ao prédio da ABL, tomar uma bela dose de uísque. Tomamos juntos (Manoel não gostava de chá).
Esse foi apenas o primeiro. Outros tantos livros vieram depois. Outras histórias…
Saudade que dói.
Viva, Manoel de Barros!!!!
PASCOAL SOTO
Foi diretor editorial nas editoras Planeta e LeYa. Criador e editor do selo Estação Brasil, Sextante