Há alguns anos, enquanto eu fazia a barba no Salão Pequeno Príncipe, um dos mais antigos de Uruguaiana, não pude deixar de ouvir uma conversa que, por uma frase, ficou cravada na minha memória. Enquanto o barbeiro lambuzava meu rosto com espuma, para em seguida fazer minha barba, da porta do salão eu ouvi: “Mas o Ivo foi o fresco mais macho que eu já vi!”. Como a navalha já espreitava meu pescoço, não pude virar a cabeça para ver quem era.
De canto de olho, vi um senhor, talvez com seus 70 anos, cabelos e barba tingidos pelo tempo. Ele falava naquele tom de voz bem fronteiriço, uma voz de trovão, e recebia em resposta o balançar positivo das cabeças ao redor. Eu já tinha ouvido muitas histórias sobre o Ivo, sobre o seu Palacete e sua carruagem. Sobre suas roupas. Sobre seu facão e sobre seus atos de caridade. Mas eu havia esquecido que aqui, do lado de Paso de Los Libres, os gays ainda eram tratados como “frescos”. E isso valia até para o mais famoso deles, o Ivo.
Na conversa, que seguia animada na porta da barbearia, um dos participantes lembrava de quando Ivo aparecia nos carnavais da cidade, nos salões dos clubes, rodeado por suas meninas e cheio de bajuladores atrás. E ele surgia como uma atração do clube, depois, surgia desfilando com a fantasia mais bonita, sempre por último na avenida, pois se desfilasse no início, as pessoas acabavam indo embora antes do final, pois muitos só iam para vê-lo. E assim, em menos de dez minutos, umas seis ou sete histórias do Ivo foram contadas na porta da barbearia.
O Ivo Rodrigues é assim, afinal, não é porque a gente morre que deixamos de ser, apenas deixamos de estar. E o Ivo é uma figura importante dentro do imaginário uruguaianense, sua vida ainda ocupa lugar de destaque na avenida das memórias, seja nas falas daqueles que o admiram ou daqueles que o usam como forma de edificar sua própria homofobia. O que vou contar a partir daqui são essas histórias, estes recortes das memórias de outros homens e mulheres, histórias que fizeram parte da minha infância e adolescência.
Pois o que ouvi é que o Ivo Rodrigues nasceu logo depois do século XIX, em 1908, na cidade de São Borja, nasceu homem e homossexual. Ainda jovem, ele se mudou para Uruguaiana, fugindo dos maus tratos que recebia em função da sua sexualidade. Desde pequeno, Ivo conheceu as agruras da vida na binária lógica fronteiriça para os que não seguem os padrões da cultura patriarcal: Onde se não é “moça de família” é puta. Se não é “macho” é fresco.
Nos idos de 1940, Ivo já era adulto e trabalhava como “Leão de Chácara” em uma “casa de tolerância” da cidade, o vulgo Cabaré. Seu porte avantajado lhe permitia acabar com situações desagradáveis sem fazer muito esforço. Ele era uma espécie de segurança/porteiro. Não tardou em se tornar figura de confiança dentro do estabelecimento e amigo das mulheres que trabalhavam profissionalmente com o sexo. Dizem que, ao morrer, a dona da boate deixou para Ivo o estabelecimento, assim como, deixou também seu bem mais valioso, a sua velha mãe. E o que aconteceu depois fala muito sobre a índole de Ivo e atesta muitas de suas histórias.
Ele cuidou das duas heranças. A velha senhora, ele cuidou e com o tempo ela morreu, já o estabelecimento, com o tempo, assim como o Ivo, transformou-se.
Entre 1950 e 1960, a “casa de tolerância” virou a “Casa Rosa”, o melhor Cabaré da metade sul do Estado. Lugar frequentado por autoridades políticas do Brasil, Argentina e Uruguai, por ruralistas importantes, empresários e velhos caudilhos da região, todos em busca da mesma coisa, os prazeres afrancesados que Ivo disponibilizava. Reza a lenda que um importante político getulista, ao participar da inauguração da Ponte Internacional, lá pelos idos de 1947, enamorou-se por Ivo, retornando várias vezes para vê-lo.
Nos anos 50 e 60, pobre seria da menina que resolvesse “ficar” com mais de um menino. Ou que resolvesse transar. Ou que quisesse sair à noite e beber num bar. Pobre da mulher que engravidasse sem estar casada. No glossário da família tradicional fronteiriça, os cidadãos de bem catalogavam essa pessoa como “puta” ou “china”. E aqui o Ivo aparece em diversas histórias novamente, sobre como ele encontrou muitas destas meninas pelo caminho, abandonadas por suas famílias, grávidas, sozinhas, sentadas chorando na estação de trem.
Um dos caminhos de sobrevivência para as excluídas da sociedade uruguaianense, muitas vezes, era a prostituição. De certa forma, elas seguiam fazendo parte da lógica patriarcal, extraoficialmente, seguiam circundando os “homens de família”. A prostituição da mulher pobre era comum, e servia como uma luva que cabia perfeitamente nas mãos de muitos homens de bem, durante a noite, o comportamento não era igual ao que se discursava durante o dia.
Ivo usou disto, do machismo estrutural que o cercava e que vitimava gays e mulheres e tentou inverter os sinais, o que obviamente, não foi fácil. Para as meninas que tinham interesse em trabalhar na boate, Ivo orientava e ensinava. Para as meninas que não queriam, Ivo dava outras atividades, no bar, na limpeza, na cozinha. Ao mesmo tempo em que abraçava as mulheres vítimas do machismo, Ivo não conseguia escapar da contradição fundamental, ele precisava atrair uma oligarquia rural e política que defendia exatamente a exclusão de mulheres e gays.
Uma das estratégias para atrair de forma inteligente essa “elite” local, era recorrer aos símbolos que na época eram tidos como signos de bom gosto, e nada mais atrativo para os nativos do Pampa do que a França.
Ivo gostava da influência francesa, gostava de usar vestidos e de vestir com eles suas meninas. Outra característica que aparece em vário relatos é o de Ivo carregar sempre um lindo leque. Havia todo um comércio de vestidos ao redor do Cabaré do Ivo, costureiras se esforçavam para vestir as meninas da Casa Rosa e para satisfazer o gosto de Ivo. São muitas histórias de famílias de costureiras que sobreviviam com o dinheiro dos vestidos. |Ivo se tornou famoso por segurar numa das mãos o leque, e em situações extremas, com a mesma naturalidade, na outra mão o facão. A vida de sobrevivência e os anos de Leão de Chácara foram úteis. Dava “de prancha” no lombo de quem despeitava ele e sua casa, mas principalmente, quem destratava suas meninas. Muitos caudilhos, quando dentro da Casa Rosa, tornavam-se meninos obedientes.
Não havia briga que o facão de Ivo não pusesse fim, não havia quem não o respeitasse, fosse político ou caudilho. Um respeito construído com confiança, baseado nas atividades noturnas da “moralmente e ilibada” elite local e no silêncio libertino de Ivo e suas meninas.
Ivo também tinha uma carruagem vitoriana, na qual desfilava pela cidade, há um tempo atrás era possível vê-la no pátio do Museu Municipal. Muitos ainda lembram da carruagem adentrando vilas e becos, enquanto levava alimentos para famílias pobres, vítimas da concentração de renda dos latifúndios que mantinham a Casa Rosa.
Na semana de seu aniversário, Ivo aplicava uma ação de marketing arrojada. Ele enviava para as principais rádios de Uruguaiana uma de suas meninas com uma série de mensagens, pagava para que cada uma fosse lida, em cada mensagem, votos e felicitações por seu aniversário. Ele se auto parabenizava. Em poucas horas, a cidade toda sabia da data especial que estava para chegar e inúmeras mensagens surgiam. Na semana que antecedia o aniversário do Ivo, a Casa Rosa tinha fila na porta, pois sempre haviam “promoções” e bebidas de graça.
Dizem que Ivo foi morto durante uma briga, aos sessenta e poucos anos. Já não era mais o dono da Casa Rosa, talvez nem fosse tão temido, morreu envelhecido e pobre, mas morreu sendo respeitado. E respeito para um gay na Fronteira Oeste tem mais valor que dinheiro. Ainda hoje, em Uruguaiana, o seu túmulo recebe flores e pedidos, ele é tratado como uma espécie de santo. Ainda que em aura meio santificada, ele também segue sendo tratado como um “fresco”, mas não o “fresco mais macho” lá da porta da barbearia, pois isso é uma contradição em termos, o machismo pode ser tudo, menos corajoso.
Talvez, daí venha também o termo “frescura”, geralmente usado quando alguém não quer fazer algo que todos estão fazendo. “Deixa de frescura e vamos!”, todo mundo já deve ter dito ou ouvido isso. De certa forma, a “frescura” para o Ivo até faz certo sentido, pois um “fresco” é alguém que se nega em ir no comportamento de manada. Ele andou pela história, como diria Walter Benjamin, “à contra-pêlo”. E na metade do século passado, não andar protegido pela manada, na Fronteira do Brasil com a Argentina, exigiu muita coragem. Em Uruguaiana, Ivo foi o “fresco” mais humano e corajoso que muitos já conheceram.
Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.