Qualquer análise sobre o cinema latino-americano nos dias atuais não pode prescindir de um olhar sobre o mercado global e também sobre a vertiginosa transformação do modelo de negócio que o setor vem vivendo nos últimos cinco anos.
Como ponto de partida, cabe observar que o cinema que chega às salas de exibição significa uma arrecadação ao redor de 35,9 bilhões de dólares* em todo o mundo. E é notável que o jogo de mercado tenha feito a balança progredir paulatinamente para outros vetores. O mercado dos Estados Unidos e Canadá significam 10,9 bilhões de dólares em faturamento e o restante do mundo 25 bilhões de dólares.
Nesse cenário o mercado chamado de “Ásia e Pacífico” já significa um faturamento de 11,1 bilhões, ultrapassando o mercado americano e canadense e o mercado europeu, que somado ao Oriente Médio e África, se iguala ao da América do Norte com 10,9 bilhões de rendimento bruto.
Já a América Latina (AL) representa um faturamento de 3 bilhões de dólares, inferior ao faturamento da China, que é de 3,6 bilhões, sendo esse o mercado que mais cresceu entre 2012 e 2013, com 27% de aumento na afluência às salas.
A partir desses números, mesmo que não atualizados e que incluem o faturamento dos filmes realizados e exibidos no mundo inteiro, podemos ter uma dimensão do que significa atualmente para a hegemonia de Hollywood o mercado internacional. O cinema dos EUA, que há cerca de 20 anos atrás buscava a maior parte de seu faturamento no mercado interno, hoje depende essencialmente, para a manutenção de seu modelo de negócios, cada vez mais apoiado na lógica do espetáculo, daquilo que consegue arrecadar fora de suas fronteiras, com ênfase no crescimento exponencial do cinema de projeção estereoscópica, chamado de “3D”.
E mesmo que possamos considerar-nos, os latino-americanos, como o “patinho feio” dessa festa, com apenas 12% do faturamento mundial de cinema, não é nada desprezível o que significamos. E diante disso a importância cada vez mais candente da existência de políticas de regulação que permitam a sobrevivência de nossas cinematografias.
Há uma notável mudança no perfil do público espectador nestes últimos anos. A melhoria geral das condições de vida no continente e o crescimento do PIB de vários países incorporaram milhões de pessoas ao mercado de bens de consumo duráveis e bens simbólicos. Além do crescimento da TV por assinatura, vertiginoso no caso brasileiro, que era um dos países mais atrasados na AL neste segmento, milhares de novas salas de cinema tem sido inauguradas a cada ano, na mão inversa do fenômeno de fechamento que assolou a década de 90 do século passado.
E essa incorporação de novos espectadores, que antes não possuíam poder de compra para ir ao cinema, tem significado também, e cada vez mais, uma mudança no que podemos chamar de condicionamento do gosto. Tomemos como exemplo os críticos anos 90, quando o Brasil chegou a cair para pouco mais de 900 salas de cinema em funcionamento, das mais de 3.000 que havia possuído em décadas anteriores. Nessa época, existia a oferta de uma enorme diversidade de títulos de diferentes cinematografias, como a persistente presença de ciclos de cinema. No Brasil atual, que se aproxima novamente das 3.000 salas de exibição, essa diversidade não só estreitou-se imensamente como foi deslocada para as chamadas “salas de cinemateca”.
Se considerarmos a máxima do mercado, que se move pela lei da oferta e da procura, e buscarmos uma interpretação rasa, poderemos dizer que o público espectador atual, que vem crescendo ano a ano desde a crise de 2008/2009, está buscando essencialmente o cinema espetáculo, o cinema chamado de 3D e os blockbusters, com destaque para os filmes dos gêneros de ação, aventura e comédia. No sentido oposto, o cinema chamado “de arte” ou “de autor”, luta penosamente para encontrar vitrines e janelas de exibição.
Os números não nos permitem fazer tergiversações. Quase todas as cinematografias latino-americanas, exceto surtos sazonais ou apoiados em fenômenos peculiares como Tropa de Elite 2, no Brasil, mal passam dos 10% de participação na renda bruta do mercado interno de seu país (market share). Muitas, bem abaixo disso.
Há falta de produção de bons títulos? Há escolhas erradas nas temáticas e gêneros? Certamente não. Nunca houve antes uma tão grande variedade de bons e qualificados filmes produzidos em todas as cinematografias de nosso continente. Apenas para tomar o exemplo do Uruguai, que até final dos anos 90 praticamente não produzia longas-metragens, hoje produz entre cinco e dez filmes por ano e muitos deles com uma significativa premiação internacional. As cinematografias argentina, colombiana, chilena, venezuelana e peruana também obtiveram colheitas significativas em premiações. Uma geração fértil que vem projetando novos diretores como Simón Brand, de Colômbia, Federico Álvarez, do Uruguai e Andres Muschietti, da Argentina, veio a somar-se à nomes como Walter Salles e Fernando Meirelles do Brasil e Alejandro González Iñarritu do México, no acesso ao topo do cenário de Hollywood.
Vivemos então um paradoxo brutal: crescimento das cinematografias de nossos países e do número de títulos produzidos; crescimento do público espectador nas salas de cinema; aparecimento de novos talentos e presença constante de filmes da AL nos principais festivais internacionais e reconhecimentos como o caso do brasileiro “O Som ao Redor”, considerado um dos 10 melhores filmes de língua não-inglesa nesta primeira metade de década pelo British Film Institute; surgimento de dezenas de eventos de mercado, cujo mais importante é o Ventana Sur de Buenos Aires; mas, ao mesmo tempo, presença limitada ou às vezes pífia em nossas próprias telas, como é o caso do México com participação de apenas 4,8% e do Perú e Uruguai com apenas 2% do público espectador em seus mercados internos em 2012.
Na esteira desse processo a TV por assinatura e, sobretudo, o Video on Demand (VOD) tem sido as únicas alternativas para buscar essa diversidade de títulos. E no caso brasileiro, com a nova lei da TV paga, Lei 12.485, e da Argentina, com a nova “Ley de Medios”, a produção de séries e telefilmes surge como uma janela possível que talvez permita a nossas cinematografias se reencontrarem com parte de seu público. Porque nos templos do cinema por excelência, as salas de exibição, somente medidas drásticas e duras de proteção à produção nacional podem fazer frente a um cenário carente de isonomia competitiva e cada vez mais desfavorável a nossos filmes.
*Dados recolhidos do relatório anual a MPAA (Motion Pictures Association of America) de 2013.
BETO RODRIGUES
(Luiz Alberto Rodrigues) é graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-graduado em Produção Audiovisual pela Universidade Complutense de Madri. É sócio-diretor da Panda Filmes, produtora e distribuidora cinematográfica brasileira. Atua como roteirista, produtor e diretor. Atuou na realização de 18 longas-metragens e cinco séries para TV. Entre seus trabalhos mais recentes como produtor estão os longas-metragens: “Comboio de Sal e Açúcar” (2015/2016) – co-produção com Portugal e França, selecionado nos Fundos IBERMEDIA, EUROIMAGES e PRODECINE 05, “Em 97 Era Assim” (2015/2016) – Selecionado no Edital B.O. do MINC, “Central” (2015) – Selecionado no Edital do FAC-RS de finalização, “La Tierra Roja” (2014/2015) – co-produção com Argentina e Bélgica, selecionado no INCAA, Fundo de cinema da Bélgica e Prodecine 04, “A Oeste do Fim do Mundo” (2013/2014) – co-produção com Argentina, selecionado no I Edital de Co-produção Brasil-Argentina. Dirigiu cinco documentários em curta e média-metragem: “Rua da Praia Quem Te Viu Quem TV”; “Histórias no Bom Fim”; “Outros Carnavais”; “Amigo Lupi”.