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O BAÚ NO SÓTÃO | O relógio de pêndulo

por Menalton Braff

Cumprimenta-me como se não me visse, como se o vulto parado à sua frente, na porta, fosse um objeto fora de lugar, jornal velho esquecido sobre uma cadeira. Seus olhos devassam ansiosos cada um dos desvãos da sala, procurando uma face, uma sombra, qualquer ângulo que lhe devolva o passado perdido, que lhe dê  a certeza de haver chegado ao termo de sua viagem. Apesar da aba do chapéu, que lhe ensombrece o rosto, percebo logo os sulcos profundos gravados em sua testa pelas léguas de estrada: é Abelardo, meu irmão mais velho, só pode ser ele, o mito familiar. Seus lábios finos e ressecados, por fim, abrem-se num quase sorriso: pendurado na parede desbotada, ele acaba de descobrir, marcando o tempo, o velho relógio de pêndulo, que, daquele mesmo lugar, outrora, costumava interromper, rabugento, sua participação nos serões da família.

Ao responder que sim, aqui mesmo a casa de seu pai, onde ele nasceu, sinto uma alegria tão grande que meu desejo é o de apertar nos braços o herói desconhecido, mas nada faço além de balbuciar que entre, a casa é sua, porque ele me intimida. Muito mais pelas histórias que nos contavam na infância e que povoaram o território todo de minha imaginação do que pela figura frágil que se verga para apanhar a mala e onde me parece inverossímil caberem tantas aventuras.

No percurso entre a sala e a cozinha, Abelardo me segue em silêncio, misturando-se a tantas outras sombras de antepassados com que me habituei, nestes últimos anos, a conviver. Inconformado ainda com a desproporção entre conteúdo e forma, olho para trás, conferindo, e noto que meu irmão examina com ansiedade as portas fechadas ao longo do corredor. Uma delas foi a sua, sem dúvida, a porta sob cuja proteção, na infância, construía os detalhes de suas viagens. O que escondem agora?, parece perguntar, e eu me viro bruscamente, temendo que ele me faça a pergunta.

Na cozinha, Abelardo larga a mala ao lado de uma cadeira e, como eu não digo nada, ele senta-se. É uma dessas malas pequenas, de papelão escuro e cantoneiras metálicas, modelo antigo que não se usa mais, e que, apesar do tamanho, parece cansá-lo muito. Ele olha o teto, as paredes, os móveis em redor, então volta a cabeça para a porta com aquela mesma ansiedade que eu já percebi antes.

Fome?, pergunto, e ele, sacudindo a cabeça, confirma que sim, com fome.

Também, emendo com fingida distração, a distância de que você veio! E Abelardo, sem notar minha tentativa, limita-se a grunhir: é, é.

Ninguém sabia de onde nem como chegava a notícia, mas todos ficavam alvoroçados. O regresso de Abelardo, que eu não conhecia senão pelas histórias que nos contavam, ajudaria nosso pai a levantar a hipoteca da casa, reconciliaria Abigail com o marido, mostraria a certos vizinhos quem é que não é homem aqui nesta rua, e até a paralisia do Beto poderia ser convenientemente tratada em hospital de fora. Por isso a faxina geral na casa, aquelas roupas novas ou reformadas, todos os preparativos. Minha mãe pedia livros de receitas às amigas e passava horas, à noite, a copiar as que julgava serem as melhores. Ele chegou sem mandar aviso e eu não tenho, para oferecer, nada além de umas batatas cozidas com guisado e uma escumadeira de arroz: o que sobrou do jantar. Começo a mexer nas panelas quando meu irmão pergunta: O pai e a mãe? Surpreso pelo absurdo da pergunta, fito-o sem resposta por alguns instantes. A mesma testa estreita de meu pai, seu queixo pontudo, os mesmos olhos gateados. Não existem mais há muito tempo. Com minha resposta, ele parece encolher um pouco, pequeno demais para a blusa de couro surrada. Seus olhos, todavia, brilham ao me atingirem. E como foi, como aconteceu isso? Não lhe dou resposta porque estou ocupado na preparação de seu jantar. Ele insiste na pergunta e eu mexo a batata com uma colher de pau. Do passado, apenas as promessas não me machucam.

Servido seu prato, Abelardo concentra-se na comida, que mastiga meticuloso, lentamente. Da outra extremidade da mesa, observo a cena, dissimulado, até que o silêncio me exaspere. Você é que deve ter comido por este mundo a fora coisas que a gente aqui nem pode imaginar! Ele continua mastigando, mas agora me olha duro, o que me causa um certo mal-estar. Por fim, lacônico, ele responde que pode ser. Espero em vão  que ele alongue o assunto, porém permanece mudo até esvaziar o prato. E a Abigail?, pergunta então, seus olhos tristes sacudindo-me pelos ombros. Também. E me escondo atrás da urgência em lhe passar um café.

Em lugar nenhum do mundo se toma um café como o daqui, diz ele entre dois goles, e eu me animo, lisonjeado, preparando-me para ouvir o relato de suas peripécias. Afetando modéstia, apresso-me a responder que ora, decerto nem é tanto assim. Abelardo, entretanto, já está novamente viajando, não sei se pelos confins do mundo ou de sua infância. Para tê-lo de volta outra vez, ofereço-lhe mais café, ele, porém, esquiva-se de minha cilada com um gesto simples da mão direita.

O relógio de pêndulo, da sala, atravessa a casa com duas badaladas, e pergunto a meu irmão se não quer descansar um pouco, os quartos como antigamente. Ele diz que não, que não vale a pena, apesar das marcas que o sono vai deixando em seu rosto.

O relógio da matriz confirma as horas, como sempre com uns dois minutos de atraso. Nada vejo no pulso de Abelardo, não sei se para ele faz alguma diferença a passagem do tempo.

Sinto frio nos pés e nas mãos. A esta hora, em qualquer época do ano, sinto frio nos pés e nas mãos. Tomo um pouco de café na esperança de me aquecer, mas sem resultado, porque esqueci a garrafa aberta e o café está apenas morno. Faz algum tempo que Abelardo ressona com a cabeça apoiada nos braços. Acho que uma pessoa assim, como ele, não sente frio. Suas mãos não são muito grandes, como deveriam ser as mãos dos heróis, apesar disso parecem muito fortes, por causa da pele tisnada coberta de grossos pêlos. Não, não deve sentir frio. As pessoas que sentem frio não viajam com malas tão pequenas. Poderia requentar este café, se tivesse alguma disposição para me levantar. Não me levanto e tento distrair-me contando os estalidos que os pés descalços da noite produzem nas tábuas do forro.

Acordo assustado: Abelardo me sacode a cabeça. E os outros?, ele me pergunta sem disfarçar a raiva.

– Ninguém mais, além de nós dois.

Quando a manhã, azulada de orvalho, vem bater à janela da cozinha, ainda sinto o cheiro forte de estrada que ficou na cadeira vazia.

 

COLUNA: BAÚ DO SÓTÃO

Menalton Braff nasceu em Taquara (RS) e radicou-se em São Paulo (Capital e interior) Formado em Letras, com pós lato sensu exerceu o magistério superior antes de mudar-se  para o interior onde se dedicou ao ensino médio. Tem 27 livros publicados, sendo nove infantojuvenis e catorze de literatura geral (contos e romances). Conquistou o Jabuti, livro do ano em 2000, com À sombra do cipreste, foi finalista da Jornada de Passo Fundo em 2003, finalista do Jabuti (contos) em 2007 e finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura (romance) em 2008. Pela Editora Reformatório teve publicados Amor passageiro (coletânea de contos) e Além do rio dos Sinos (romance), livro com que conquistou o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.  

 

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