Maria Bonita, a esposa de Lampião, não era conhecida por este nome enquanto viva e bandoleira. Filha de agricultores do interior da Bahia, ela se chamava Maria Gomes de Oliveira e, como sua mãe era conhecida como dona Déa, ganhou a denominação Maria de Déa, seguindo um costume da época: as filhas trazerem o nome da mãe; os filhos, o nome do pai.
Quando morreu (baleada pela polícia, junto com Lampião e mais dez cangaceiros, em 1938), é que passou a ter essa denominação. Fazia sucesso o filme “Maria Bonita”, tendo como personagem principal uma bela jovem do sertão nordestino, e a associação foi inevitável. Uma das hipóteses é de que jornalistas cariocas relacionaram as duas figuras e deram o apelido. Outra, é a de que os volantes que mataram a cangaceira se admiraram da sua beleza (examinando a cabeça que eles deceparam do corpo) e fizeram a associação.
Seja como for, é como Maria Bonita que a esposa de Lampião ganhou o mundo e chegou até nós. Em torno da sua trajetória, a jornalista Adriana Negreiros escreveu um livro muito instigante, colocando a famosa bandoleira do eixo da narrativa: “Maria Bonita: sexo e mulheres no cangaço” (Editora Objetiva, 2018, 294 p.).
Mais do que uma biografia de Maria Bonita, no entanto, a intenção da autora foi a de investigar o lugar das mulheres no mundo do cangaço. Rever os depoimentos das cangaceiras que deixaram algum testemunho (o que não foi o caso de Maria Bonita) e a partir daí identificar e analisar o lugar das esposas e companheiras de cangaceiros no universo violento e masculino da bandidagem.
Outra fonte documental importante foram as fotos e filmes feitos por Benjamin Abrahão, em 1937. Material que dá destaque à figura de Maria Bonita e permitiu que a autora a visse como uma espécie de primeira-dama do bando, ao reunir a representação visual com os relatos dos integrantes do bando.
Maria Bonita se casou cedo (por volta dos 17 anos), o casamento não a fez feliz e passou a se interessar por outros homens, entre eles o famoso bandoleiro. Um fascínio que não era raro entre as mulheres do sertão. O grupo difundia uma áurea de “ouro, dança e aventura” e isto era percebido como uma alternativa à vida dura e monótona dos camponeses. Mesmo deixando um rastro de temor e ódio (devido aos horrores que os cangaceiros cometiam, entre eles o estupro), havia lugar para o fascínio. No caso das mulheres, a atração por homens poderosos, divertidos, com muito dinheiro no bolso.
Maria Bonita não se arrependeu da sua escolha, ao que tudo indica. Em 1930, aos 20 anos de idade, passou a seguir o grupo e construiu uma relação afetuosa com o marido. Segundo Dadá, era “mimada, abusada e metida”. Segundo a autora, era bem tratada por Lampião, ria muito e nunca deu um tiro. Como as outras mulheres, não participava da linha de frente dos tiroteios, mas estava presente na fase posterior às lutas e tanto colaborava nas torturas (arrancava os brincos das mulheres, rasgando suas orelhas) como às vezes intervinha para que o marido fosse menos cruel com as vítimas (poupasse as suas vidas, por exemplo). Dadá, por sua vez, instigava o marido a maiores violências.
Há uma tensão na abordagem da autora a respeito de qual o padrão dominava entre as mulheres cangaceiras – se a livre escolha ou o rapto seguido de estupro. Um trabalho não conclusivo e instigante. Mas, seja qual for, todas as mulheres submetidas ao domínio masculino, propriedade de seus homens e obrigadas a demonstrar “respeito” em relação a eles. Mesmo dentro desse quadro tradicional (semelhante ao da sociedade brasileira da época, na qual a conquista recente do voto feminino ainda era polêmica), algumas mulheres eram capazes de protagonismo. Maria Bonita escolheu o cangaço e, ao que tudo indica, teve a vida intensa que desejou (ao menos, conseguiu uma alternativa à frustração que o primeiro marido proporcionava), enquanto Dadá (como outras tantas) foi arrastada à força ao mundo do cangaço e sobreviveu a ele de forma sofrida. De menina inocente, raptada e violentada aos 12 anos, tornou-se mulher fria e vingativa, segundo a autora.
Um livro sobre mulheres movimentando-se nas teias do poder e da violência masculinos. Poder e violência não muito distantes do padrão das relações entre homens e mulheres da época, talvez com alguns extremos (na forma como as mulheres que traíam seus maridos eram castigadas e mortas) devido ao fato de ser protagonizadas por homens à margem da lei.
Um livro que vale a pena. Mas, como apontaram outros comentadores da obra, “não indicado para pessoas sensíveis a temas e cenas escabrosos”. Algumas cenas, por sinal, que parecerem retiradas de um filme de terror.
VITOR BIASOLI