Era um dia normal na vida de Ana Paula. O despertador do celular, como sempre, vibrando ao lado da cama e lembrando que o dia já começara. Nem sete da manhã e a luz do sol já estava iluminando a louça limpa sobre a pia da cozinha.
As contas do mês descansavam empilhadas sobre a geladeira, a luz, a água, o telefone, lembretes que o mundo é datado e tem preço. Na porta da geladeira, presos com imãs, os números de telefones de uns consultórios médicos e as receitas dos últimos remédios. O preço de tudo sempre aumentando e a sua renda sempre diminuindo. Mas o dia não liga para isso, ele vai se movendo e a Ana Paula precisava ir junto.
E nesse movimento impiedoso, uma silenciosa sinfonia doméstica ia se encorpando, a coisa de limpar a casa, organizar os brinquedos, guardar e dobrar as roupas. E antes do almoço, às 11 em ponto, dar banho no filho. Ana Paula tinha um menino de seis anos. Um guri inteligente, sensível e que adorava saber tudo sobre dinossauros.
E o dia vai movendo a vida. Preparar o almoço. Pensar nas contas não pagas, pensar no que vai dar para pagar. O mês mal havia começado e o dinheiro já estava contado. Uma olhada no relógio, é hora de servir o lanche do filho. De manhã ele só come banana e de tarde é biscoito e suco.
Só que dessa vez não terá o biscoito que ele gosta, é que ficou muito caro, e nem foi tão de repente, foi ficando. E a marca nova que a Ana Paula achou é bem mais barata, tomara que seja aceita pelo pequeno gourmet. É que o Matheus só come biscoitos ovais e de maizena. Torcer que ele goste. Ao menos, os sucos de uva, os preferidos, eram os mesmos. A grana do mês ainda deu para comprar da mesma marca. Torcer que não aumente de preço.
Enquanto o cheiro da cebola fritando no fio de azeite tomava conta do ar, para a Ana Paula restava cuidar das coisas de sempre. Arrumar as camas. Dar uma olhada no filho. Ter cuidado com a luminosidade. Fechar as cortinas. Lembrar de seguir cuidadosamente a mesma rotina de sempre, respeitar os horários e os caminhos. Fechar as janelas quando os vizinhos começarem a ouvir música em um volume muito alto. Deixar lápis e caderno de desenho sobre a mesa. As revistas de dinossauros na mesinha do lado do sofá. A vida de uma mãe nunca é fácil, sempre um acumular de coisas. Uma infindável sobrecarga. A vida de uma mãe com maternidade atípica, como Ana Paula, era ainda mais difícil. Ainda bem que naquele dia ela não tinha que ir trabalhar.
A Ana Paula não tinha marido, ou melhor, ela já teve. Ele desistiu dela e do Matheus uns anos atrás, quem sabe, ao perceber que o filho tinha o espectro autista. Ao saber disso, ele optou por fugir. Quem sabe, até já tenha outra família. O certo é que, não fosse pela pouca pensão, qualquer um diria que ele desapareceu. Já a Ana Paula, ela seguiu sempre presente. Mãe, ela era mãe.
Quanto tinha 33 anos, num julho frio, o Matheus nasceu. Foi uma alegria só, na família de dois que agora eram três. Nasceu pequeno, sempre de olhar sério e poucos sorrisos. Matheus não gostava de muita luz, chorava bastante, mas se acalmava no escuro do quarto. Adorava dormir segurando o dedo da mão de Ana Paula. Com o tempo e as pequenas crises, Ana Paula descobriu que ao segurar as duas mãos de Matheus fazia com que ele se acalmasse também, mesmo com luz.
O diagnóstico demorou um pouco, foram muitas consultas, muitos testes e quando ele chegou, o Matheus já estava com quatro anos.
Era uma sexta-feira, fim do dia, quando Ana Paula recebeu a notícia de que o filho tinha autismo, não houve impacto, ela já sabia. Ela sempre soube. Não importava, o amor era o mesmo, talvez, ainda mais potente. O marido, assustado, queria outro médico, outro psicólogo. Os outros disseram a mesma coisa. E assim a vida foi se moldando diante da nova realidade. O marido, ele foi se distanciando. Evitando o filho, chegando tarde e saindo cedo de casa. Tinha dias em que insinuava que a culpa do menino ter autismo era da Ana Paula. Até que um dia ele não voltou mais. A solidão e o abandono, vida típica de muitas mães com maternidade atípica. A fuga e a covardia, típico comportamento de um homem irresponsável e que não quer ser pai.
Diz-se que o típico é aquilo que é normal. É típico de um dia de sol as praças cheias. As crianças na escola, brincando e correndo. As mães com os filhos na pracinha. Tudo isso é muito normal. É típico. Mas quem diz o que é “normal”? Geralmente, àqueles que se acreditam normais. Os que se acham típicos.
No bairro onde a Ana Paula morava tinha um parque com uma pracinha e, embora ele gostasse, ela não levava o Matheus lá com muita frequência, geralmente, quando conseguia levá-lo, ficava no máximo meia hora das tardes de domingo, quando o sol começava a se pôr.
Quando o Matheus ia na pracinha, a Ana Paula ficava sempre sozinha, parada ao lado do brinquedo onde o filho estava. As outras mães, sempre olhavam de longe, às vezes com olhar de pena, noutras vezes com olhar de crítica. Teve uma vez que uma das mães, que também frequentava a mesma pracinha, do nada, chegou e abordou a Ana Paula. Disse que tinha medo de deixar sua filha brincar com o Matheus, pois ele gritava e se debatia às vezes. Sugeriu também que Ana Paula fosse para outro lugar com o filho, afinal, aquela pracinha era para crianças normais. Típico.
Na escolinha era o mesmo. Primeiro foi a luta para que um auxiliar de inclusão fosse contratado, depois a luta para que ele fosse educado da mesma maneira que os demais. Sempre é uma luta. Nas reuniões de pais, sentava sempre sozinha, uma que outra mãe de quando em quando puxava conversa. Mas era coisa rara.
E naquele dia a Ana preparou o almoço. Colocou os pacotes de biscoitos sobre a mesa, mentalizando que ele gostaria da nova marca. Tinha planos de separar os que tinham formato triangular, assim, ficando apenas os ovais, seu filho teria mais dificuldade em perceber a diferença. Não pegou o habitual pote onde o Matheus gostava de comer biscoitos, um pote azul do Capitão América, não deu tempo.
Ainda nem era 11:50 e o peito de Ana Paula estava estranho, apertado, uma angústia, um cansaço. No seu celular, nenhuma mensagem de amigos, sequer qualquer coisa do tipo “oi, que estão fazendo?” ou “precisam de alguma coisa?”. Nada. Ninguém nunca ligava. Ana Paula disse para Matheus que iria se deitar um pouco. Sentia dor. O almoço ficou no fogão. Com o passar das horas a comida ficou fria. Aí escureceu de novo. Veio a noite. Com o passar dos dias, a casa toda foi ficando fria. E era para ter sido apenas um dia normal.
O silêncio da casa só era quebrado pelo som dos biscoitos sendo mastigados. Um carro de som na rua, longe. Uns passos até o quarto. Mãe? Mãe?
O tempo andava lentamente. O som do ponteiro do relógio de parede. O menino quieto, na cozinha, sentado no chão. Parado na porta do quarto. Mãe? Na cozinha de novo. Os sucos de uva. Parado ao lado da cama de sua mãe, sozinho no silêncio de casa e no esquecimento do mundo.
O barulho do portão sendo arrombado, depois a porta sendo chutada, ambos deram um sobressalto em Matheus. O cheiro dentro da casa era perturbador.
Matheus estava na cozinha. Sentado, desenhando um dinossauro. O pequeno rosto emagrecido, a roupa suja de suco de uva. Os biscoitos em formato de triângulos, intocados.
O corpo de Ana Paula foi encontrado quase duas semanas após sua morte. Matheus ficou dentro de casa com a mãe morta todo esse tempo. Era a triste história de um filho e sua mãe. Logo a notícia da morte de Ana Paula tomou conta do bairro.
Quando uns vizinhos souberam, disseram que Ana Paula havia se suicidado, afinal, tinha deixado comida no fogão e sucos e biscoitos sobre a mesa. Alguns diziam que mesmo tendo desistido da vida, teria ela, ainda assim, pensado no filho. “Não aguentou”, diziam as mães com os filhos na pracinha. Típico.
Dias depois, os legistas declararam que o que havia matado Ana Paula foi um infarto do miocárdio. O laudo pericial indicava que Ana Paula morreu próximo ao feriado do 1° de maio de 2022. Seu corpo só foi encontrado por seu irmão no dia 12 de maio, em avançado grau de decomposição.
Essa história que contei sobre uma mãe abandonada pelo seu companheiro e que vive só com o filho autista, numa maternidade atípica, que sofre preconceito e não consegue sequer ir com o filho numa pracinha, pois bem, essa história e o nome do Matheus eu inventei.
No entanto, o que aconteceu com a verdadeira Ana Paula, a sua triste morte, o seu filho, uma criança de seis anos com espectro autista, trancado com o cadáver da mãe por quase duas semanas, infelizmente, isso é verdade. Foi material para várias reportagens. Ela foi enterrada há três dias.
Li a primeira notícia sobre a criança e sua mãe no dia do seu enterro. O texto dizia que o corpo de Ana Paula, 39 anos, só foi encontrado por seu irmão cerca de doze dias após sua morte, trancado junto com o filho, dentro de casa, na cidade de São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais. A Ana Paula precisou de doze dias para que seus familiares e amigos dessem falta dela e de seu menino. A definição de solidão.
E lendo as notícias da morte da Ana Paula eu fui me lembrando de um dia no ano passado, quando prometi para o Gabo, meu filho, então com seis anos, que iria levá-lo no rio Uruguai para andar de caiaque. Fiz a promessa numa terça-feira. Quando chegou no sábado, o dia em que iríamos, declinei, inventei uma desculpa e o levei para a pracinha da frente do Quartel General.
Nos dias que antecederam nosso passeio de caiaque, eu fiquei imaginando uma situação em que estivéssemos só os dois de caiaque no rio, longe da margem. E se eu passasse mal? E se eu tivesse um infarto ou coisa do tipo? E se meu filho, uma criança de seis anos, ficasse a deriva rio abaixo, ele e meu corpo? E se…?
Certamente, minha esposa daria por nossa falta tão logo o sol se escondesse no horizonte e eu não atendesse o celular ou ela descobriria através de uma ligação feita pelo próprio Gabo. No caso da Ana Paula, isso não aconteceu, pois ninguém ligou para ela. Ela era uma mãe sozinha.
E a cada notícia sobre os dois, eu fui imaginando tudo o que ela deveria ter passado, tudo o que ela haveria de estar passando. Nos jornais, quase todos, que falaram sobre sua morte, o seu filho, a criança, não tinha nome, era apenas “criança autista”, mas deveria ter. Sei da importância de se proteger a criança, mas também é importante a humanização da sua vida. Deveria ter todos os nomes. Qualquer nome, mesmo que fosse inventado pelo jornalista, que fosse Henrique, Gabriel, João, Francisco, Lucas, que fosse qualquer nome, qualquer coisa que o humanizasse enquanto criança de seis anos, sensível, racional, inteligente e, aí sim, no final da frase, com autismo.
Pobre Ana Paula, como a sua solidão deveria ser gigante. Que peso haveria de se jogar diariamente por sobre seu pobre coração. Demorou doze dias até que alguém fosse em sua casa. Doze dias para que dessem sua falta. Quantas mulheres, mães de filhos atípicos e de filhos com deficiências físicas, quantas estão passando pelo mesmo que a Ana Paula passou? Essa solidão de ser mãe e esse medo de deixar o filho nesse nosso mundo, sozinho a deriva rio abaixo. A história de Ana Paula e seu filho é trágica e triste, trágica pois é verdade, e triste pois segue acontecendo.