Os 33 retratos intitulados Clarices pela artista plástica Graça Craidy estão no Espaço Cultural Correios, na Praça da Alfândega até o dia 17/12, em nossa capital.
Nela é possível transitar por momentos da vida e obra de Clarice Lispector em provocações que nos levam a querer mais. Desde a menina que nos inquire com seus olhos de espanto àquela que mesmo andando na companhia de seu par, volta-se para nós qual anjo de um quadro de Klee, o Angelus Novus. Walter Benjamin referia-se a ele como o anjo da história que enxerga a nossa catástrofe. E assim vamos tramando as histórias dessas múltiplas clarices que brotaram da artista e que reverberam em nós.
Há a Clarice que tapa o rosto por ver demais, penso eu. Segundo Hélio Pellegrino, “à semelhança de Van Gogh, ela sabia, com a pele do corpo – e da alma -, que por baixo de tudo lavra um incêndio”, escreveu por ocasião dos dez anos da morte da escritora. E tal estado de alma cansa e atordoa. E até mesmo gênios precisam de uma trégua.
O registro do encontro das três Lispector que trocaram cartas por anos a fio. As queridas irmãs estavam no Brasil ao longo dos 16 anos que Clarice viveu fora acompanhando o marido diplomata. Por esse meio intercambiaram experiências, reflexões e afeto. As descobertas filosóficas, literárias, só para citar algumas eram temas que as mobilizavam, colocando-as como pontos fora da curva, na época.
Na exposição há o flagrante da passeata dos cem mil em protesto contra a ditadura e o assassinato do estudante Edson Luís. Ali a artista capta a expressão de quem sabe a que veio e não há sombra de vacilo na posição assumida da escritora comprometida com seu tempo e lugar histórico.
Ao ver o quadro Clarice mãe com o filho ao colo, entrevejo a que se sentia derrotada em relação a sua ascendente. Seu nascimento não salvou a mãe da doença que a acometera, perdendo-a definitivamente aos nove anos de idade. Irradiava plenitude com seus dois filhos, pois através deles dissera poder exercer o amor sem limites.
A parceria eternizada em estátua no Leme/RJ de Clarice e Ulisses figura entre as obras para nosso deleite. A reiterada paixão por decifrar a natureza dos seres que não se descontinuam está presente ao longo da sua obra, na forma de cão, de barata, de galinha, de búfalo e outros. Eles não são atingidos pela consciência da morte e da finitude.
Há ainda um excerto do conto Mineirinho e o mesmo retratado ao chão, abatido pelos 13 tiros, “quando apenas um seria necessário, o resto era vontade de matar”. Aqui está também Clarice – “o décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Por que eu quero ser o outro.”
E a artista reconfigura Macabea a partir do desejo da personagem ao longo de A hora da estrela, transformando-a em uma sedutora atriz de cinema.
São tantas as Clarices que conversam entre si e nos dizem da literatura e da arte que saímos da exposição com a impressão que a força emanada reluz a miríade clariceana espraiada naquele espaço e para fora dele.
Somente a boa arte é capaz de nos proporcionar essa experiência alargada e também, por isso, alvo de ataque e sucateamento em governos antidemocráticos.
Cátia Castilho Simon é
Doutora em Estudos da Literatura Brasileira,
Portuguesa e Luso-africanas;
e escritora.