O recente julgamento sobre o incêndio da Boate Kiss, realizado em Porto Alegre, provocou-me uma reflexão a respeito da importância da emoção compartilhada. Particularmente, tinha um interesse especial neste evento, que chamou a atenção do mundo para a capital gaúcha durante dez dias. Inscrevi-me para acompanhar as atividades no local e compareci ao foro.
Queria abraçar os familiares que encontrasse pelos corredores e na tenda instalada no lado de fora. Cada abraço foi reconfortante e cada conversa foi afetuosa. Como jornalista, queria ver de perto a estrutura da cobertura única no Estado e também reencontrar ex-colegas e amigos. Consegui comparecer apenas no primeiro e no último dia do júri, pois não suportei a carga emocional ali envolvida. Cada instante era inundado pela emoção, então passei também a selecionar o que assistir nas transmissões on line. Compreensivelmente, o caso promoveu uma comoção coletiva naquele 2013. Mas, quem vivenciou diretamente aquela madrugada, teve de revivê-la em 2021. Impossível não doer. De certa forma, me vi revisitando meu passado em diferentes aspectos.
Desde 2013, o meu aniversário, 28 de janeiro, nunca mais foi o mesmo. Sim, é um dia após o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS). Naquele ano, eu trabalhava como repórter em Canoas (RS) e acabei participando da cobertura da chegada de vítimas da tragédia à cidade. Nos anos seguintes, os noticiários lembravam, nessa época do ano, a data e traziam as nuances, muitas vezes inusitadas, a respeito do percurso do processo judicial, que se iniciou em Santa Maria e teve decisão em Porto Alegre por meio do instrumento jurídico de desaforamento, apenas para citar uma dessas peculiaridades.
É verdade também que, com o passar o tempo, o tema foi ficando um tanto em desuso e passou até a incomodar, em especial, àqueles que entendiam que o assunto deveria ser esquecido. Mas, a cada janeiro, eu lembrava. E, junto ao meu aniversário, passei a marcar também a data da tragédia, pois sentia uma dor muito doída por tudo aquilo. Não sabia ao certo o porquê desse sentimento específico. Afinal, não conhecia a cidade e não tinha relação direta com ninguém ligado ao fato. Até que passei a ter.
Em 2016, comecei um relacionamento com um jornalista que havia morado em Santa Maria e estava de volta à capital, mas ele mantinha proximidade com o Coração do Rio Grande. Repórter pelo já extinto A Razão, Luiz Roese, o Tigre, viveu de perto o horror daquela madrugada. Mais que isso, descobri com o tempo que essa relação era muito maior. Luiz estabeleceu forte vínculo com as famílias das vítimas e acabou por se tornar o assessor de imprensa voluntário da AVTSM, a associação de familiares de vítimas, quando se aposentou do jornalismo devido à sua progressiva Esclerose Múltipla. A partir daí, o meu janeiro ganhou mais um significado, pois passamos a participar em Santa Maria das atividades em memória das vítimas organizadas pela Associação. Luiz foi incansável na divulgação da causa pela justiça aos familiares e sobreviventes.
E foi justamente esse afeto coletivo que nos fez mudar de Porto Alegre para Santa Maria, cidade onde Luiz faleceu em 2019, sem conseguir, infelizmente, acompanhar o desenrolar de todo o processo. Eu, ali, também o representava de alguma forma. Há quem tenha dito ainda que ele estava no foro acompanhando tudo. Aliás, algumas mães fizeram questão de me contar a respeito disso. Independentemente das percepções de cada um, eu acreditei e chorei de novo. Mas, esta já é outra história e, quem sabe, contarei em outro texto por aqui.
A tragédia afetou de diversas maneiras, algumas invisíveis e indescritíveis, o povo gaúcho e o Brasil afora. As mais profundas cicatrizes da tragédia, sem dúvida, atingiram de forma direta e definitiva as 242 vítimas e os mais de 600 sobreviventes e suas famílias. O recente julgamento, que resultou na condenação dos quatro réus, trouxe à tona a agonia daquela madrugada, que, especialmente para familiares e sobreviventes, seguia sem fim durante quase nove anos.
Era preciso aliviar a dor e dar sentido à luta pela valorização da vida. Jamais conseguirei atingir o tamanho desse sofrimento. Recorro ao que escreveram Roberta Campos e Nando Reis, ases artistas na tradução de sentimentos: “Essa coisa de fazer o mundo acreditar que meu amor não será passageiro. Te amarei de Janeiro a Janeiro até o mundo acabar”.
Erenice de Oliveira
Jornalista de formação que sempre preferiu a emoção para contar histórias cotidianas. Acredita na impermanência, na constante transformação da vida e sabe que tudo passa. Aliás, adora uva-passa.