“Maradona se escribe com “M” de Malvinas”, falou-me com amistosa seriedade. Diego, não sei se pela emoção ou pelo vinho, tinha os olhos marejados. Enquanto ele contava sua história, o bar seguia sua sina, alheio aos tantos que contavam suas histórias, cada vez mais cheio e barulhento, a fumaça dos cigarros dava um tom nebuloso ao ambiente. Orgulhoso, Diego continuou na sua explicação: “esse era o título da manchete após o jogo entre Inglaterra e Argentina, um dos maiores jogos já feitos em uma Copa do Mundo”. Eu estava em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, no inverno de 2003.
Em 1986, no ano que Diego se referia, a Argentina ainda era um país machucado pela ditadura, pelos assassinatos e pela derrota das Malvinas. Eu tinha cinco anos e o mundo tremia por causa de uma partida de futebol. Só fui saber da importância desse jogo e, principalmente, da importância da “mão de deus”, bem mais tarde, já adolescente, assistindo um Globo Esporte de um domingo qualquer.
A Guerra das Malvinas havia acabado quatro anos antes da Copa, em 1982, deixando 649 argentinos mortos, mais de mil feridos, 11 mil argentinos aprisionados e centenas de homens e mulheres traumatizados.
Nos anos 1990, em Uruguaiana, eu conheci um senhor, um correntino, que vendia cachorro quente na frente do Clube da Cohab II. Todo domingo, lá pelas 23h, eu e meus amigos íamos para a frente do clube e lá ficávamos, bebendo e conversando. Eu me lembro de uma das histórias que escutei ao redor do correntino. Ele contava coisas do tempo das Malvinas. Eram sempre histórias curtas, rápidas, poucos detalhes, provocadas por alguma pergunta, nunca eram histórias espontâneas. Lembro que numa vez, enquanto conversava com outro senhor, também com forte sotaque castelhano, de ouvi-lo contar que vários de seus conhecidos, que haviam ido lutar nas Malvinas, tinham se suicidado. E que outros que voltaram da ilha, viviam numa antessala da morte, numa sobrevida, como parte de uma tropa de ex-soldados abandonados pelo governo argentino.
Entre um cachorro quente e outro gole de cerveja, ouvi que os argentinos não tinham condições de ir para uma guerra contra uma potência como a Inglaterra, mas que, ainda assim, foram. O correntino da frente do clube, se bem me lembro, não chegou a embarcar para as ilhas, quando estava pronto para ir, a guerra terminou.
Aquele correntino amava Diego Armando Maradona…
Anos depois, lá por 2003, conheci um outro argentino, um senhor que se chamava, curiosamente, Diego, tal qual o Maradona. Foi numa noite fria em Santa Maria, numa das mesas do Café Cristal, um bar que eu frequentava quando estudante de História na UFSM. O bar era um paradeiro de todo tipo de gente, artistas, escritores, jornalistas, estudantes, aposentados, bêbados e almas passageiras. E foi no Café Cristal que o argentino chamado Diego me contou coisas que nunca mais esqueci, se falou a verdade, não sei, gosto de pensar que sim, afinal, sempre há um pouco de verdade no vinho.
Diego me disse que era de Buenos Aires e que foi obrigado a ir para as Malvinas, ele tinha 20 anos quando foi alvejado pela primeira e única vez, por conta disso, voltou para casa mais cedo. Ele me contou que durante o tempo em que esteve na ilha, passou frio e fome, disse-me que seguidamente as armas não funcionavam direito e que os soldados argentinos eram torturados pelos próprios colegas, outros militares argentinos. Os torturadores eram oficiais habituados a torturar civis durante a ditadura e que não pararam de torturar nem mesmo durante a guerra. Os castigos eram variados e se davam por qualquer motivo, um soldado podia ficar sem comer por dias ou até ser amarrado nú sobre a neve por horas.
Diego falou que o frio era uma das lembranças mais fortes, os soldados argentinos não tinham sequer roupas térmicas, como tinham os ingleses, eles usavam palas de lã que se encharcavam com a umidade e se congelavam nos frios de até 27 graus negativos. Por conta do frio, os argentinos tiveram de fazer fogueiras para amenizar as baixas temperaturas e com isso viravam alvos fáceis nas noites escuras das Malvinas. O frio queimava as pontas dos dedos dos pés e se entranhava no corpo como se fosse a própria sensação da morte. Para Diego, o frio e a guerra eram como irmãos. Antes da Copa do Mundo de 1986, o que restava do imperialismo europeu seguia firme e forte na América do Sul, assim como, também seguiam firmes e fortes as ditaduras militares patrocinadas por interesses vindos de uma outra parte da América.
Nunca mais esqueci daquela noite, bebendo vinho e ouvindo as histórias de um senhor tristonho. Depois de umas duas horas, Diego foi embora e eu nunca mais o vi. Partiu da mesma forma como chegou, quase invisível. Ele tinha uma filha que também estudava na UFSM, disse que voltariam para Buenos Aires para as férias, tão logo amanhecesse. Na mesa do bar, restou eu, o Osmã, aposentado da UFSM, o Glênio, aposentado da Viação Férrea, e conosco, uma estranha sensação de frio.
Aquele porteño amava Diego Maradona…
Depois disso, de conhecer um correntino e um portenho, eu entendi o peso que as Malvinas, e sobretudo, Maradona tinham no imaginário argentino. Naquela Copa do Mundo do México, quando se confirmou o enfrentamento entre Argentina e Inglaterra, tanto o governo mexicano quanto a FIFA estremeceram. Reforçaram-se a segurança no Estádio Azteca e por toda a Cidade do México. Soldados e mais soldados mexicanos andavam pelas ruas. Esperavam que a qualquer momento ocorresse uma nova guerra entre as torcidas. E embora os hooligans e os barra bravas argentinos tenham se enfrentado antes do jogo, a guerra de verdade não aconteceu nas ruas, ela aconteceu dentro de campo.
Dessa vez, ao contrário das Malvinas, onde os fuzis não disparavam, agora os argentinos tinham um soldado armado com a genialidade.
Diego Maradona fez dois gols, um deles, talvez um dos mais bonitos de todas as Copas, driblando meio mundo europeu, rasgando o imperialismo contra o qual ele lutou durante toda a vida. O outro gol, talvez o mais antológico das Copas, Maradona subindo sozinho, usando a própria mão, tal qual numa guerra, lutando de qualquer maneira pela própria vida, de qualquer jeito, com a raça da sobrevivência de um povo. A ditadura, os desaparecidos, as mortes, o frio, os jovens, os soldados, os pais e mães enlutados, todos estavam presentes em cada um dos gols de Maradona.
Às vezes eu penso que a Seleção Argentina nem precisava ter vencido a Copa, a verdadeira vitória já tinha vindo antes da final, um título moral, vencido contra a imperiosa Inglaterra. Maradona e seus colegas não venceram um jogo, eles devolveram o orgulho para um país inteiro.
Você até pode não gostar do Maradona, por que ele é argentino, mesmo embora os argentinos sejam nossos irmãos em modo de vida e cultura. Ou por que o Galvão Bueno disse que os argentinos são nossos rivais, ou por causa do Pelé. Você pode não gostar do Maradona, por que ele era amigo do Fidel, ou por que ele era de esquerda, mesmo embora ser de esquerda no futebol não seja coisa para qualquer um. Mas você não pode negar dois fatos: O primeiro, “Maradona se escribe com “M” de Malvinas”. O segundo, como nós gostaríamos de ter tido um Diego Armando Maradona jogando em nossos times ou na seleção do nosso país.