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MAR ABERTO | Na antessala da (in)civilização*

por Boca Migotto

Segundo Eduardo Galeano, aquele escritor uruguaio que Diego muito leu na sua juventude, a quantidade de prata retirada de Potosí, na Bolívia, foi suficiente para construir uma hipotética ponte sobre o oceano, desde as minas, nos Andes, até o palácio real de Sevilha, na Espanha. Apesar disso, Potosí, umas das cidades mais ricas da colonização, foi transformada em uma das mais podres da América Latina.

Depois de ter financiado o enriquecimento europeu ao custo de milhares de vidas de nativos obrigados a trabalharem nas minas de prata, hoje a Bolívia é um dos países mais pobres do mundo. A sua população original foi radicalmente – e dramaticamente – reduzida ao custo do trabalho escravo. A utilização do mercúrio na mineração, associado aos gases tóxicos que vertiam da terra, provocavam a queda do cabelo e dos dentes dos índios. Os padres humanistas – vejam bem, humanistas – afirmavam que os índios mereciam esse sofrimento, e deveriam ser assim tratados pelos espanhóis, pois eram seres sem alma, pecadores, que idolatravam demônios e, portanto, ofendiam a (d)Deus. Argumento repetido constante e reiteradamente, ao longo dos séculos, para justificar o tráfico de mais de onze milhões de vidas humanas da África para as Américas. Destas, quase a metade, cinco milhões de africanos, acabaram nas plantações de cana-de-açúcar, nas minas de ouro e diamante, nas plantações de café e cacau e nas charqueadas do Brasil. Um negócio extremamente lucrativo, para os europeus, que souberam muito bem como tirar o máximo rendimento desse trade transoceânico em que apenas eles lucravam.

Da África, arrancaram a ferro e fogo a mão de obra escrava que seria vendida na América. Lucro. Para europeus. Ao custo dessas vidas africanas, os diamantes e o ouro, mas também açúcar, cacau, borracha, café, fumo, tudo que valesse a pena, era explorado e exportado para a Europa. Lucro novamente. Novamente, apenas para europeus. Em contrapartida, seguiram nos empurrando – como quando chegaram aqui a primeira vez – espelhos, panelas e todo o tipo de quinquilharia manufaturados nas fábricas inglesas, francesas e alemãs, pois, claro, tínhamos que reproduzir, na colônia, a vida e os hábitos do Velho Mundo dito civilizado. Mais uma vez, lucro europeu. Nesses quinhentos anos de comércio, os povos latino-americanos – e africanos – nunca lucraram.

E assim seguimos até hoje quando, para eles, vendemos commodities, produzidas aqui, com trabalho forçado – para não dizer escravo – e deles compramos produtos com valor agregado. Não satisfeitos, europeus e americanos – do norte – influenciaram e influenciam a política dos nossos países. Já promoveram golpes, incentivaram ditaduras, compraram e compram empresas estatais a preço de banana, subornaram políticos corruptos e inviabilizam toda e qualquer proposta de um projeto nacionalista que possa, finalmente, nos libertar dessa exploração secular. Aos poucos, estão aniquilando nossa cultura. Se houvesse justiça no mundo, pararíamos tudo agora, com um grande ponto final, para ouvirmos da Europa e dos Estados Unidos um estrondoso pedido de desculpas… (pausa e silêncio para escutar o pedido de desculpas) …seguido do devido ressarcimento monetário, por todo o saque realizado em nossos países ao longo de todos esses séculos. Tanto aqui, na América Latina, como na África. Isso seria o mínimo da decência para podermos dar um restart na história e seguirmos a nossa marcha sobre a Terra. Mas não, a humanidade é um projeto falido e, por conta do profit, ao invés de reparar todo o mal causado a milhões de pessoas nesses dois continentes, os países do Hemisfério Norte seguem com o seu projeto de exploração de tudo o que ainda restou por aqui, desde a Amazônia até a água potável que corre sob os nossos pés. E assim vai ser até a última gota de vida humana sobre a Terra. Obviamente, os primeiros a morrerem e aqueles que mais sofrerão as dores dessa hecatombe climática e social serão, novamente, os países mais pobres e, estes, sempre estarão na América do Sul e na África.

Toda essa digressão fez mal a Diego. Nervoso, e sentindo o braço dormente, decidiu parar o carro e respirar um pouco de ar puro. Saiu do carro, pegou seu famigerado Marlboro vermelho e o acendeu. Enquanto fumava, olhava para a imensidão da Patagônia e sentiu uma tristeza profunda. Teve vontade de chorar. Pensou na vida de todos aqueles nativos, negros, imigrantes e pobres de toda espécie os quais, ainda hoje, seguem oprimidos por um sistema social extremamente injusto. Fez força para chorar. Quis chorar. Por eles todos. Até sentiu os olhos marejarem. Mas nada aconteceu. Nem uma gota de lágrima brotou dos seus olhos azuis. Por mais que tivesse empatia por todos eles, por mais que amasse o continente latino-americano, por mais que quisesse sentir essa dor para, quem sabe assim, ajudá-los a suportar o peso de toda essa injustiça, sua condição privilegiada não lhe permitia, ainda, compartilhar do mesmo sentimento. Então, de cara consigo mesmo, jogou a bituca do cigarro no chão, pisou nela para apagá-la, entrou no carro e seguiu viagem, desconsiderando que a dormência no braço permanecia. Encheu o saco também com isso. Encheu o saco também da sua solidão. E foda-se a morte. Foda-se tudo.

* O texto publicado acima é um trecho do meu livro, Na antessala do fim do mundo, lançado ano passado, em meio à pandemia e, portanto, relançado presencialmente esse ano, na Feira do Livro de Porto Alegre. Nesse trecho do livro, Diego, o protagonista da história, está mergulhando em uma profunda reflexão sobre a América Latina enquanto dirige, sozinho, pela Ruta 40, na Argentina, em direção ao Ushuaia, na Terra do Fogo, – também conhecido como “Fim do Mundo” – onde pretende reencontrar seu irmão.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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