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MAR ABERTO | As muitas mortes da (minha) vida

por Boca Migotto

Essa semana faço quarenta e seis anos de idade. Ao que tudo indica, neste 10 de março eu contorno o “Cabo do Meio da Vida” – expressão criada (até onde eu sei) por mim, agora, no calor da hora. Provavelmente não viverei mais de noventa anos. E nem sei se quero jogar todo um segundo tempo. A primeira metade da partida foi bastante disputada e uma substituição, lá pelos oitenta anos, seria, já, de bom tamanho. Levando em conta tudo que fiz nesses quase cinquenta anos, descontando, claro, os primeiros vinte, quando mais consumi oxigênio do que contribuí com a humanidade, acho que ainda será possível produzir muitas coisas.

Penso nos filmes que ainda gostaria de fazer – não quero morrer sem rodar um longa-metragem de ficção –, nos livros que pretendo escrever e publicar – mais um vai sair ainda este ano –, nos lugares que quero conhecer – Amazônia, África, América Central – e nos inúmeros momentos que ainda tenho a viver com a Pati e com o Arthur – minha companheira e meu enteado –, bem como, com meus amigos e amigas, e me animo com tantas surpresas boas que essa vida ainda há de me apresentar.

Mas, claro, também há todo um outro lado a relativizar. O tempo passa as dores chegam, depois, aumentam. As visitas ao hospital – algo que detesto fazer –  provavelmente serão mais frequentes e cada exame de rotina pode significar um atestado de morte prematura. Isso sem falar que do futuro nada sabemos e, portanto, não há garantias de uma “aposentadoria” saudável. Sempre existirá a possibilidade de envelhecer solitário, vegetativo ou sobre uma cadeira de rodas. Para mim, os três piores dos cenários possíveis. Mesmo assim, dificilmente queremos largar do osso. A vida é uma coisa louca, por pior que seja – e provavelmente, aos oitenta anos, será pior que aos quarenta e seis – seguimos enlaçados à ela. Minha melhor imagem para isso é eu criança, na iminência de uma “Benzetacil” na bunda, agarrado à saia da minha mãe. A injeção extremamente dolorida que eu tinha que tomar por conta das minhas  frequentemente amígdalas inflamadas, nesse caso, representaria a morte. Minha mãe, claro, a vida por essência.

Quem leu meu primeiro livro, “Na antessala do fim do mundo”, o qual descrevi algumas passagens autobiográficas, pode desconfiar que nasci num final de tarde de tempestade, seguida de um belíssimo pôr-do-sol, “quando a luz é filtrada pelas diversas camadas de nuvens, em inúmeros tons e nuances, o que provoca um efeito visual que contempla toda a paleta de cores”. Ao menos, foi assim que a minha mãe sempre relatou aquele dia o qual, para ela, foi um misto de alegria e preocupação. Em 1976, então com mais de 40 anos, num hospital precário de condições, na pequena Carlos Barbosa, tratava-se de uma gravidez de alto risco.

Quis o destino que a minha mãe não morresse no parto, naquele 10 de março de 1976. Mas, também quis esse mesmo destino, que ela morresse no mesmo 10 de março, no ano de 2013.

Sim, perdi minha mãe no dia do meu aniversario. Ela morreu de câncer, essa doença maldita e impiedosa, depois de passar por aproximadamente três meses de angústia por não saber, exatamente, a origem daquelas dores intensas que sentia. Os últimos dez dias, no entanto, foram particularmente traumáticos. Já sabíamos o diagnóstico – a médica e eu – e a mãe precisaria passar por uma cirurgia. Nunca esquecerei da noite de sábado que antecedeu o procedimento. Permaneci toda madrugada sentado ao lado da sua cama, segurando sua mão, pois logo de manhã ela seria encaminhada para a cirurgia, que o médico já havia antecipado, seria de alto risco. Segundo ele, era bem improvável que ela sobrevivesse. No alto dos meus trinta e oito anos de maturidade eu parecia uma criança assustada, perdida nos corredores sombrios daquele hospital.

Naquela manhã, enquanto as enfermeiras preparavam minha mãe, eu permaneci próximo à janela do quarto, observando a dança das folhas das árvores, embaladas por uma brisa matinal de um quase-outono, como quem queria capturar cada detalhe daquele provável último dia na presença dela. Meu coração estava dividido entre a possibilidade de perder a minha mãe, naquele dia, daquela forma, e em como voltar para casa para contar isso ao meu pai.

Foi só então quando me dei conta que era dia primeiro de março e poderia passar meu aniversario sem ela. Então, antes da mãe deixar o quarto fui até ela, me abaixei, e segurando o choro, para mostrar uma força que eu não tinha, pedi que ela voltasse. E ela voltou. Naquele dia ela saiu da mesa de cirurgia para uma cama de UTI onde permaneceu pelos próximos dez dias, lutando pela vida, indignada com o tempo que não passava e a sede insustentável que sentia e não “tinha cristo” de ser mitigada.

Foram dez dias de esperança e desassossego, durante o qual eu me dividi entre cuidar minimamente do meu pai, em Carlos Barbosa, visitar a mãe todos os dias, em Caxias do Sul, dar minhas aulas em São Leopoldo e Bento Gonçalves e, raramente, passar pela minha casa, em Porto Alegre. Durante esse tempo, passei a morar no meu carro. Às vezes acordava sem saber onde estava dormindo. Então, às 3 horas da manhã do dia 10 de março despertei sozinho, no meio da noite. Alguns instantes depois, o telefone tocou. Atendi a ligação já sabendo qual seria a notícia que justificava aquela chamada. Acordei minha tia, para que ficasse com o pai que, sob efeito de calmantes dormia alheio a tudo, entrei no meu carro e dirigi até o hospital, para buscar a minha mãe.

Durante o período quando ela esteve na UTI, eu voltava para casa todos os dias para mentir ao meu pai que ela estava melhorando. Meu pai, claro, acreditava. Ou fazia de conta acreditar, justamente para me deixar mais tranquilo. Ele estava, então, com 92 anos de idade. Foi somente no dia 9 de março que precisei lhe contar a verdade. Não havia mais o que fazer, era apenas uma questão de tempo. Ele estava lendo o jornal na cozinha. Quando abri a porta ele se surpreendeu por eu estar lá, pois naquela dia eu deveria permanecer em Porto Alegre, ensaiando com o elenco de uma série de TV que viria a gravar logo mais. Então, meu pai parou de folhear o jornal, olhou para mim e disse que também morreria. Levantou-se e foi para o quarto. Descrevi essa cena em detalhes no meu livro, colocando essa tragédia no colo do meu personagem para, quem sabe assim, aliviar um pouco a dor que recaia sobre meu próprio corpo. Foi uma das coisas mais difíceis que fiz na vida. Vi o olho claro do meu pai emudecer para sempre naquele momento.

O escritor português, nascido em Angola, Valter Hugo Mãe, em seu maravilhoso livro, “A máquina de fazer espanhóis”, reflete que um dos problemas de “ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprende-las, e faz todo sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento”.

Meu pai já havia desistido de aprender coisas há muito tempo. No auge dos seus 80 anos já se mostrava cansado da vida. O corpo era forte, mas pesava muito. Sentado sempre ao lado do fogão à lenha, inverno ou verão, relativizava que o pior da velhice nem eram as dores, mas testemunhar a morte dos amigos. Quase toda vez que o sino fúnebre da vizinha igreja tocava – em Carlos Barbosa se mantém esse hábito para anunciar os mortos – o nome pronunciado pelo padre era o de um conhecido. Faz um tempinho, mas também eu comecei a entender o sentimento do meu pai. Perder um amigo já não é mais algo raro e o Facebook, vejam só, substituiu o sino da igreja. Naquelas semanas mais angustiantes da pandemia no Rio Grande do Sul, no ano passado, tinha pavor de acessar as redes sociais e descobrir que havia perdido um amigo ou conhecido.

Já com a mãe, o ritual da morte era menos soturno. Ao contrário das reflexões silenciosas do pai, com ela a morte era como um passeio pelo parque num sábado de sol. De tempos em tempos colhíamos flores no seu jardim e íamos ao cemitério, para prestar as devidas homenagens aos meus avós. Primeiro visitávamos o túmulo dos pais dela e, depois, descíamos para a capela onde estão enterrados, ainda hoje, meus avós paternos. O ritual era sempre o mesmo. Limpar, substituir as flores murchas, rezar uma Ave Maria e um Pai Nosso. Com o meu avô materno – seu pai – a mãe também batia um papo rápido. Já eu, como não conheci nenhum deles, me limitava a olhar as fotografias, nas lápides, para tentar reconhecer, neles, traços dos meus pais e de mim mesmo. Parece um programa bizarro. E, de certa forma, é. Meus amigos não faziam isso e eu mesmo, após a morte dos meus pais, raras vezes os visitei no cemitério. Eles não estão lá. Eu não acredito nisso. Minha conversa com eles é outra e em outro lugar. No entanto, para a minha mãe era importante e, para mim, com ela, um programa que misturava afeto e antropologia social. Mesmo sem saber, a morte sempre me fora uma conhecida.

Assim, não me foi surpreendente ouvir aquela frase sair da boca do meu pai. Ele estava certo, aos noventa e dois anos de idade não havia o que fazer por aqui, sozinho, sem sua companheira de quase meio século de vida. No dia 10 de abril confidenciei a mim mesmo, deitado na cama, antes de dormir, que ele não sobreviveria. Dois dias depois eu o estava enterrando ao lado dela, num túmulo construído por suas próprias mãos calejadas de pedreiro, no qual ele teve o cuidado de guardar o número certo de tijolos que seriam necessários para cerrar sua última morada. Meu pai foi um homem que construiu seu próprio túmulo.

Nós tínhamos um cachorro, um labrador chamado Bob, já um tanto velho, que era apegado demais aos meus pais. Sentindo que algo estava errado, percebendo a ausência dos dois, em apenas uma semana também ele se foi. Sem mais ânimo para viver, Bob apenas permanecia deitado. Foi assim por dias. Me olhava, abanava o rabo, mas nada de se animar. Chamei o veterinário que tentou medicá-lo. Inútil. Com a partida do Bob foi o restinho de tudo que eu considerava família. Uma espécie de ponto final de uma longa história. A casa estava lá, mas já não existia vida. Quando percebi, restava apenas eu em um espaço vazio, impreenchível e inodoro.

Eu, no entanto, seguia de pé. Acho que nunca trabalhei tanto na vida. Nesse mesmo período realizava uma série para a TV Unisinos, dava minhas aulas no Curso de Cinema e ia para Bento Gonçalves dar aulas no Curso de Publicidade e Propaganda. Rodava meu primeiro longa metragem, “O sal e o açúcar”, em Pelotas, e me preparava para realizar o “Filme sobre um Bom Fim”. Além disso, iniciava as gravações da série Bocheiros, para a TVE, e finalizava um curta-metragem para a RBS-TV, filmado no Chile ainda antes de a mãe ter sido definitivamente internada. Me agarrei ao trabalho para acreditar que estava forte. Nunca me dediquei tanto à Unisinos, a mesma instituição onde me graduei, fiz especialização em cinema e mestrado. A mesma instituição que, apesar de quase duas décadas compartilhadas como estudante e professor, alguns anos depois me dispensaria sem nem ao menos me chamar para conversar. Mais uma morte. Mais uma perda. Justamente quando mais precisava de um amparo. Os jesuítas, parece, não entenderam isso. Altruísmo, assim como a preservação do meio ambiente, nunca deixou de ser apenas marketing para vender uma ética que nunca existiu. O nível de humanidade é medido pela tabela do Excell.

Uma noite, 10 de março – sempre 10 de março -, estava em casa, sozinho, quando senti meu peito apertado. Pensei que estava morrendo. Desde a morte dos meus pais, apesar de achar que estava levando tudo numa boa, algo mudou e nem mesmo a minha negação conseguia esconder.

Passei a pensar na morte como algo presente no meu cotidiano. “Um escorregão idiota, num dia de sol”, poderia acontecer comigo a qualquer instante. A morte não era apenas uma abstração, ela existia e esperava por mim, quem sabe, já na próxima esquina. Desde então, toda morte passou a ser presente. Uma pontada na barriga poderia ser um câncer, uma comichão na cabeça, um AVC, mergulhar na piscina uma possível tragédia, um avião poderia cair simplesmente porque eu estaria dentro dele.

Lembro que, por ser filho único, minha única preocupação verdadeira era não morrer antes dos meus pais. Além de não ser natural, para aqueles dois velhos que a mim tinham como o motivo das suas existências – principalmente a minha mãe – minha eventual morte prematura seria inconcebível. Portanto, era fundamental me manter vivo, não poderia dar esse desgosto a eles. A ironia é que isso, no entanto, nunca me impediu de viver a vida enlouquecidamente. E perigosamente. Na verdade, fui um adolescente bem inconsequente e, felizmente, acreditem, deixei de morrer inúmeras vezes. Naqueles verdes anos esta parecia improvável. Impossível, até. Embora, por muito menos do que eu fiz, vários amigos meus não tiveram a mesma sorte. O casamento entre álcool e alta velocidade foi fatal para vários deles e muitos pais choraram sobre o caixão dos seus filhos adolescentes.

Mas agora era diferente. A maturidade é uma excelente conselheira. Ao mesmo tempo que estar sozinho no mundo me aliviava do compromisso de não morrer, o medo dela efetivamente chegar antes do esperado – ou talvez dela chegar na hora marcada – passou a me assombrar cotidianamente. Desde então, não há um único dia que não pense nela. Assaltos a mão armada, acidentes de trânsito, uma descarga elétrica, cair no fosso do elevador, enfim, todo tipo de morte passara a existir. Toda vez que saio de casa, pode ser que não volte vivo.

Aprendi a controlar a ansiedade que decorre dessa inevitável possibilidade, mas naquela noite de 10 de março, sozinho em casa, tive a certeza que era ela a bater minha porta. Meu peito apertou, minha respiração falhou, meu equilíbrio desandou. Pensei em dormir para que tudo passasse rápido. Se fosse para morrer, que fosse em sonho. Não queria estar acordado para vê-la chegar. No entanto, minha teimosia em viver não permitiu que me entregasse assim tão facilmente. Então desci, entrei no carro e corri para a emergência de um hospital onde me disseram que não era um infarto. Ufa! Mas, era preciso fazer uma tomografia do cérebro, pois poderia ser o principio de uma isquemia. Acho que foi isso que me disseram.

Havia se passado dois anos que o meu mundo havia se desfragmentado e, novamente, lá estava eu, no dia do meu aniversario, deitado em uma maca, entregue ao inexorável destino. Às 5 horas da manhã, finalmente, me entregaram o resultado dos exames e disseram para eu procurar uma terapia. Meu problema não era o coração. Era a cabeça. Havia sofrido uma crise de ansiedade.

Como num passe de mágica, no entanto, essa crise gerou outras crises que dispararam o gatilho de uma depressão e, quando me vi, estava desabando em choro, dentro do carro, no estacionamento da Unisinos, antes de entrar em sala de aula. Então respirava fundo, secava as lágrimas, lavava o rosto e assumia o personagem do professor, como se nada daquilo estivesse se passando comigo. Minhas pernas estavam bambas, minha visão turva, suava frio, mas não me entregava. Meu compromisso era um compromisso que ia além da Unisinos. Era um compromisso com tudo aquilo que eu acreditava, com tudo o que eu havia aprendido dos meus pais. Trabalho em primeiro lugar, sempre.

Foram meses assim. Muitas vezes sob efeito de remédios, os olhos ausentes, sem brilho, e a vida sem sentido. Mas as aulas em dia. Nunca faltei. Inúmeras vezes fui sincero com meus alunos e confessei estar passando por uma depressão. Nenhum deles levou isso a sério. Nenhum deles, nunca, veio me perguntar como eu estava. Nem eles, nem meus colegas professores. Pudera, depressão é uma bobagem que ninguém dá bola. Apenas uma tristeza. Para combate-la, o trabalho é o melhor remédio. Levanta a cabeça e enfrenta o mundo. Foi o que eu fiz, ou tentei fazer.

É o mesmo Valter Hugo Mãe, citado acima, que escreve, sobre a ausência de um amor perdido para sempre, algo mais ou menos assim: “um dia a saudade vai ser benigna, a lembrança trará um sorriso aos lábios porque é essa a função da saudade, construir uma memória que nos faça ter orgulho dessa mesma ausência. Como um troféu de vida.” E, de fato, às vezes me pego sorrindo ao lembrar do sorriso da minha mãe quando eu chegava em casa. Foi Roman Gary, em “A promessa da Aurora” (no original, “La promesse de l’aube”) que escreveu: “Sempre se retorna ao túmulo da mãe para uivar como um cão abandonado”. Essa imagem é forte e ilustra o amor materno como poucos conseguiram. A noite escura, o cemitério mal iluminado, o vento frio que faz as últimas folhas do outono caírem e, sobre o túmulo da mãe, uiva o filho, como um cão solitário, que todas as noites para lá retorna, para chorar a ausência eterna daquele olhar o qual nunca mais receberá de outra mulher. A partir da morte materna, a vida será uma procura permanente por aquela mesma troca de olhar.

O retorno ao cemitério, como já disse anteriormente, não é meu forte. Preferi chorar no divã. Demandou tempo, mas na medida que fui me conhecendo melhor consegui converter a saudade maligna em benigna.

Na busca por paz, tentei de tudo. Além da terapia, reike, tarô, constelação familiar, espiritismo, mapa astral, umbanda, santo daime, uísque, cerveja, vinho. Tentei de tudo para amenizar o aperto que sentia no peito. Entrei num doutorado para ocupar minha mente e  decidi fazer parte dos estudos na França. Para isso, era preciso aprender o idioma. Mergulhei cada vez mais em compromissos de trabalho. Precisava preencher a mente.

Mas, em uma viagem de estudos ao Canadá, cheguei acreditar que não havia mais motivos para voltar ao Brasil. Ao mesmo tempo, também não havia motivos para permanecer lá. Aquela viagem foi o clímax da minha angústia. A erupção dos meus sentimentos reprimidos. Não cheguei pensar em suicídio, mas não ter perspectivas sobre o futuro também não deixa de ser uma espécie de morte. Morri um pouco no Canadá. Mas ainda respirava, e como um zumbi, segui meu dias fazendo o que tinha de ser feito. No automático. Acordava, ia para a aula, almoçava, saia para fotografar a cidade, jantava, me embebedava para dormir. E, assim, passou o tempo até a hora de voltar para o Brasil. Quando coloquei os pés no aeroporto, em Porto Alegre, eu já sabia. Eu estava muito doente.

Alguns dirão que ao escrever isso estou sendo corajoso. Outros, que se trata de pieguice, drama ou, ainda, que eu estou me vitimizando, querendo chamar a atenção. Tapinhas nas costas. Na verdade, apenas escrevo sobre a morte – e em particular sobre as minhas mortes – porque estou curado. O luto é uma luta diferente para cada um de nós. Para alguns é mais fácil, para outros mais demorado. O mais importante, no entanto, é que seja consciente. Escondê-lo, como eu fiz durante anos, é a pior das alternativas. Não tem como disfarça-lo para sempre e, acreditem, quando ele vence a resistência, o chão se abre sob nossos pés de tal forma que o fundo do buraco parece nunca chegar. Eu escrevo sobre isso, hoje, porque talvez a minha própria experiência possa servir de conforto para outras pessoas que estejam passando por situações semelhantes. Aquilo que pensam de mim ou do que escrevo, já faz tempo, descobri que muito pouco me importa.

O fato é que a morte está em tudo e por todos os lados. Não falo apenas da morte das pessoas que amamos, ou de nós mesmos. Falo da morte como condição da vida.

A morte está na Amazônia, consumida pela ganância de alguns poucos privilegiados que têm apenas o enriquecimento como motivo de suas existências vazias. A morte está nas águas, rios, mares, lençóis freáticos. Está no ar. Sinto a morte da esperança, da arte – tão vital quanto o próprio ar que respiramos – e dos artistas. Percebo a morte da democracia, da sociedade, do que ainda nos resta de humano. Vejo a morte da vida como uma realidade inexorável, do contrário, como explicar (mais) uma guerra em pleno século XXI? Como conceber que alguém se ache no direito de bombardear cidades e as casas de outras pessoas?

Somos, dizem, a única espécie que sabe que o tempo é finito. Por isso, como por vingança, talvez, saiamos por ai a matar. O ser humano é um especialista em morte – impossível escrever isso sem lembrar das declarações do cara que o Brasil elegeu Presidente. O ser humano mata outros seres humanos por prazer, por grana, por um par de tênis. Mas também mata animais e plantas. Mata até aquilo que não enxerga. A história da humanidade foi construída pela morte e em meio ao odor impregnado de tanto extermínio, muitas vezes, o ser humano mata até a si mesmo, suicidando-se. A morte define a nossa existência, seja para compreende-la, seja para evita-la a qualquer custo. Não por acaso, talvez, inventamos deuses que matam por vingança. Assim justificamos a nós mesmos. Afinal, se até um deus, do alto da sua sabedoria e poder, mata, o que resta a nós, cópias imperfeitas, criadas à sua imagem e semelhança? A morte é o nosso principal drama. Até poesia enxergamos na morte. O único e verdadeiro sentido da vida. Não há arte sem a morte. E sem arte, não há vida.

Foi a ferro e fogo que entendi que na vida a gente mais perde do que ganha. Que as mortes são várias e, dentre tantas perdas, a nossa morte é a que menos importa. A que menos dói. Por outro lado, a vida é uma apenas. E é preciso saber aproveita-la de tal forma que essa única vida possa suplantar todas as demais mortes. Todas. Viver é morrer aos poucos – que baita clichê. Caminhar lado a lado à iminência de um desencontro fatal. Mesmo assim, é a vida. Talvez esteja ai a graça de se viver. Se para viver é preciso morrer, que assim seja. Acho que vale a pena. Vale, né?

Feliz aniversario para mim.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.

 

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