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MAR ABERTO | A maionese, a carne de cavalo, o Cais Mauá

por Boca Migotto

Às vezes são tantas coisas sobre as quais gostaria de escrever que uma coluna quinzenal não dá conta. Às vezes, enjoo de mim mesmo, da minha permanente indignação, crítica e cobrança. Do meu insistente tom sarcástico e da minha ironia. Às vezes, nem eu me aguento. Mas isso dura pouco. E vou dizer porquê. Se eu não me aturar, quem vai?

É tanto servilismo, tanta alienação, tanta falta de percepção sobre o mundo que vivemos e a sociedade que construímos, que não me resta alternativa além de ser o “chato” – mais um, pois eu sei que existe vários outros – que está, o tempo todo, tentando puxar o tapete da zona de conforto alheia. Dessa forma, nesse país, com essa gente – isso não é para ser uma generalização – e essas crenças que, muitas vezes, mais beiram um conto de fadas idiota do que a realidade crua das nossas veias abertas, não consigo escrever (quase) nada, digamos, positivo (demais). Assim, deixo a positividade para os “influencers” e visto meu personagem mais bem sucedido: o “contestador rabugento”.

São tantas feridas onde meter meu dedo grosso de gringo tosco – mentira, até que sou bem “sofisticadinho” – que, se tivesse tempo, pediria à Rede Sina uma coluna semanal. Ou diária, até. Como isso não é possível, me vejo obrigado a misturar temas. Hoje, por exemplo, vou tentar conjugar três fatos que ocorreram e me chamaram a atenção na última semana: a) uma maionese extra cobrada em uma cervejaria metida a besta em Bento Gonçalves, b) a carne de cavalo distribuída há anos pelas mais diversas casas de lanche de Caxias do Sul e c) mais uma tentativa – agora vai (?) – de revitalização do Cais Mauá, em Porto Alegre. Haja samba no pé para chegar ao denominador múltiplo comum desses três assuntos. Até porque, não sou chef, não sou gourmet, não sou engenheiro ou arquiteto e, muito mesmo, um “empreendedor”. Mas sou metido e, por isso, mais uma vez, quero aqui lançar uma ideia sobre esses temas. Os dois primeiros temas, dá para perceber facilmente, são assuntos “hermanos”. Já o Cais Mauá parece ser apenas um “primo distante”. Veremos se isso, de fato, se confirma.

Muito apreciada em alguns países europeus onde, inclusive, a “horse meat” ou “viande de cheval” – brasileiro adora estrangeirismos – custa mais caro que a de vaca, no Brasil e, creio, principalmente no Rio Grande do Sul, comer um cavalo é quase como degustar um amigo. Ao menos, simbolicamente, é possível que tal prática esteja no mesmo nível proibitivo de um “asado de perro”. Afinal, ambos ocupam o status de “melhores amigos”: o cachorro, do homem e o cavalo, do gaúcho. No entanto, mesmo assim, volta e meia aparece alguma denúncia de frigorífico clandestino que processa um cavalinho – ou um gatinho, ou um cachorrinho – misturado a outras carnes e temperos, em salsichões, salsichas e afins. Isso sempre ocorre com os embutidos afinal, para encher linguiça não há preconceito. Basta ser um sabichão para encher o salsichão. Lembrem, ainda, que essa prática não é nenhuma novidade por essas bandas. Tanto que uma das nossas mais famosas linguiças levava até carne humana na receita. Quem duvida, basta pesquisar sobre o crime da Rua do Arvoredo, em Porto Alegre. No passado e no presente, o esquema é sempre o mesmo. No caso da famosa linguiça, inclusive muito apreciada pela elite porto-alegrense da época, o alemão Carlos Clausser e sua esposa húngara, Catarina Palse, trituravam a carne humana junto a um tanto de carne de porco, misturavam tudo com muito tempero e, voilà, enchiam as tripas. Ninguém percebia o gosto, ao contrário, todo mundo elogiava a qualidade do produto. Quando foram descobertos, o casal argumentou que tudo era feito com muito esmero. O segredo era a qualidade das carnes.

Infelizmente, pelo o que andei lendo por ai, parece que esse diferencial não fazia parte dos hambúrgueres oferecidos aos caxienses. Os cavalos, além de serem cavalos, eram doentes, sarnentos, abandonados à própria sorte e, justamente por isso, comprados por apenas 200 ou 300 reais para serem sacrificados e processados em uma chácara no interior da cidade. Sabe-se lá por quantos anos – e quanto cavalos – isso acontecia. E, sabe-se lá se essa carne foi, de fato, apenas comercializada – e consumida – na “Pérola das Colônias”, ou cavalgou também pela “Rota Romântica”, pelo “Caminho das Hortênsias” ou pela “Região da Uva e do Vinho”. Para deite dos turistas: hambúrguer gourmet, acompanhado de uma maionese verde e harmonizado com uma cerveja artesanal de produção local. Delícia.

E, aqui, fica a deixa para pularmos para a maionese. Afinal, o link está praticamente dado. O que seria de um bom xis ou hambúrguer sem o acompanhamento de uma boa maionese? Adiciona a cerveja artesanal à uma conta digna de um pub londrino e este é o tradicional “combo” “eu sou trouxa, sei disso, mas e daí?”. Pois bem, às vezes – mas só às vezes – eu também sou trouxa e caio nessa. Não pelo hambúrguer gourmet porque, na real, eu prefiro mesmo é um bom xis gaúcho, mas uma cerveja artesanal é irresistível. Por isso, noutro dia fomos parar numa cervejaria em Bento Gonçalves. Para ser mais preciso, no roteiro turístico “Caminho das Casas de Pedra”.

Uma vez lá, e com sede, embora já relativamente “alegre” pois vinha de um churrasco ali perto, pedi – pedimos – duas cervejas, uma batata frita, um suco – estava com o meu enteado – e uma panceta. As fritas vieram logo, acompanhadas de uma maionese que, não sei se porque eu estava com fome ou já meio borracho, realmente era boa. E era tão boa, e tão pouca, que acabou rapidíssimo. Antes das batatas, claro. Então, pedi outra porção e, para minha surpresa, ouvi do garçom que eles à cobrariam. Na hora perguntei se ele estava brincando, afinal, entre as cervejas – àquela altura já eram mais duas –, as fritas, o suco e a tal panceta, conforme o cardápio, por baixo, já estávamos gastando uns 150 reais. Como resposta, ouvi dele, de uma forma bem desaforada, que uma maionese extra era “custo” para o estabelecimento. Custo? Como assim? Depois de gastar, em poucos minutos naquele lugar metido a besta, aproximadamente 150 reais – uma fortuna, ainda mais para um Brasil faminto e desempregado –, ele olha para mim, com a cara mais lavada do mundo, e me diz que um potinho extra de maionese é custo? E tudo que eu estava pagando por aquilo não compensava esse “custo”? Afinal, acredito que eles sejam inteligentes o suficiente para acrescentarem uma margem de lucro sobre a batata, a cerveja, o suco e a panceta. Estou sendo irônico, óbvio, pois sei bem que, por ingênuos, eles não passam. E muito menos por socialistas. Portanto, essa margem de lucro certamente já compensaria um mísero potinho de maionese extra para três pessoas? Não tive dúvida, levantei e fui conversar com o gerente. Sim, sou a favor do “barraco-bem-educado”. Afaste-se de mim quem se sentir envergonhado.

Justamente porque as pessoas se sentem constrangidas em reclamar é que esse tipo de coisa segue acontecendo. A gente deixa passar, afinal, não vale o estresse. E é assim que eles se aproveitam. Ao me levantar e reclamar, posso até não mudar a atitude deles mas, certamente, o enfrentamento vai tirá-los da zona de conforto. E se mais gente reclamar, chegará o momento quando será necessário repensar tais práticas abusivas. A prova disso é que, após o gerente me argumentar ser aquela uma “norma da casa”, quis “resolver” tudo me oferecendo uma cerveja cortesia. “IPA ou Lager”, me disse ele, ao mesmo tempo que ostentava um ridículo sorrisinho de canto de boca. Foi quando perguntei por que ele queria me dar uma cerveja, mas não podia me fornecer uma maionese extra. Como resposta, e então já desfazendo o tal sorrisinho por perceber que a sua estratégia falhara, ouvi que seria uma compensação por eu estar insatisfeito. Era “norma da casa” deixar o cliente sempre satisfeito. Mas não foi justamente a tal “norma da casa” que provocou tudo aquilo? Uma cerveja grátis não mudaria minha insatisfação. Ao contrário, me senti ofendido, como se a minha indignação pudesse ser comprada por um copo de cerveja choca. É impressionante o quanto foram infelizes. Nunca mais colocarei os meus pés nessa tal Primo Santo Birra Artigianale – claro, tinha que ter nome estrangeiro.

Ao sair de lá, no entanto, fiquei pensando que não é por acaso que os hambúrgueres de carne de cavalo faziam tanto sucesso nas lancherias de Caxias do Sul. Apesar dos discursos moralistas, a ideia de que é preciso tirar vantagem em tudo é muito praticada na “gringolândia”. Nem que seja por centavos. Lembrei que li uma entrevista de um dos proprietários de lanchonete que se sentiram lesados por terem comprado gato por lebre. Quer dizer, cavalo por vaca. Em depoimento, esse “empresário” afirmou que o preço da mesma nem era tão mais barato que as carnes “legais”, inspecionadas e de procedência reconhecida. Mesmo assim eles – sim, no plural – compravam aquela carne porque “a vida estava difícil” e era uma forma de “ganharem um pouquinho mais”. Ou seja, todos sabiam que estavam comprando uma carne produzida ilegalmente, mas isso não era um problema. Eles eram apenas trabalhadores honestos e, portanto, também não eram os responsáveis mas, sim, vítimas de um fornecedor que os enganou.

De uma forma bem semelhante pensam os proprietários – acredito que são mais de um – da Primo Santo Birra Artigianale que se enxergam no direito de cobrar preços abusivos pelos seus produtos ao mesmo tempo que se negam a fornecer um potinho extra de maionese, se utilizando do falso discurso de que aquilo, para eles, é um “custo”. Quer dizer, o cliente que pedir uma maionese extra está lhes gerando um prejuízo. Que cliente mais malvado este. Percebam a inversão de valores. O corrupto é sempre o outro. O errado é sempre o outro. E o lucro é o que move os dois modelos.

Semelhantemente ao fato de que a carne de cavalo apenas existiu porque havia quem à comprasse, para ganhar centavos, a Primo Santo abusa dos seus clientes pois, estes, são levados a acreditar que é preciso pagar mais caro, sem reclamar, para se sentirem incluídos naquele ambiente “diferenciado”. A ganância não tem limite e sobrevive graças à ignorância alheia. De um lado, a ambição do imigrante que quase morreu de fome e perpetuou esse pensamento aos seus descendentes, de outro lado a síndrome do vira-lata que se vê – ou quer se ver – digno de pedigree. Ma va bene, enquanto ficar nos centavos, serve mais para expor a avareza dessa gente do que definir uma prática social coletiva. O problema é quando esse vírus se alastra por toda sociedade e, inclusive, vira propaganda de cigarros na boca de um “craque” do futebol brasileiro – não, ainda não era o Neymar, embora este pense exatamente assim.

Falo da famosa “Lei de Gérson”, expressão cunhada em 1976 através da propaganda dos cigarros Vila Rica. O então jogador da Seleção Brasileira, o meia-armador Gérson, assinava o comercial de TV para esta marca de cigarros afirmando que gostava de levar vantagem em tudo, então olhava para a câmera – para o espectador – e dizia: “leve vantagem você também”. Por isso, a expressão, “Lei de Gérson”, passou a ser utilizada para designar pessoas ou empresas que obtém vantagem de forma indiscriminada, pouco importando-se com questões éticas ou morais. Se o Brasil, um país construído sobre cadáveres humanos de indígenas e negros escravizados – sobre isso, ler o livro “Banzeiro Ókótó”, de Eliane Brum –, desde que o primeiro europeu aqui pisou, sempre foi visto como um lugar apenas para se enriquecer e ir embora, de volta para a Europa “civilizada”, a partir desse comercial, a prática da vantagem acima de tudo ganhou status de lei. A “Lei de Gérson”.

 Tirar vantagem acima de tudo, portanto, parece ser o que move esse país desde o princípio. No entanto, tal ideia se expandiu de tal forma que não há quem não queira – e não possa – dar um jeito de tirar vantagem. O próprio “jeitinho brasileiro”, que é percebido como algo positivo no traço cultural do brasileiros mas, sobretudo, do chamado “malandro carioca” – e, de fato, de alguma forma e em algum nível, realmente é positivo – também configura, em si, uma desobediência à uma norma estabelecida. Sobre isso já se discutiu muito. O próprio antropólogo Roberto DaMatta discorreu inúmeras vezes sobre o tema que é extremamente complexo uma vez que o “jeitinho”, em uma sociedade desigual e injusta como a brasileira, mais do que unicamente definir uma contravenção, é praticado, também, como forma de resistência. Afinal, a corrupção e as práticas ilegais, desde sempre, foram utilizadas pela elite brasileira sem que esta raramente fosse censurada ou efetivamente criminalizada. Nesse país, sabemos bem, a lei não é mesma para quem tem dinheiro e influência. Nesse cenário, se os menos favorecidos e historicamente injustiçados não dessem, também eles, “um jeitinho”, dificilmente resistiriam a um sistema tão perverso. E, assim, surgiu aquele malandro dos pequenos golpes, quase inocente, que se vira na ginga apenas para “dar um jeito” de sobreviver. Por outro lado, por representar um tensionamento das normas e da lei, o “jeitinho” abre ainda mais margem para que o crime ou, ao menos, as práticas destituídas de ética e moral, sejam quase que institucionalizadas. Apenas essas contradições apresentadas acima já demonstram a complexidade do tal “jeitinho” o qual, além de tudo, também é responsável pela percepção do estrangeiro sobre (quase) tudo o que há de melhor e de pior no brasileiro. No entanto, esse “jeitinho brasileiro” nada tem de ingênuo.

 Hoje mesmo estava ouvindo no “Café da Manhã”, um podcast da “Folha de São Paulo”, uma entrevista com a jornalista Daniela Arbex, autora do livro “Todo dia a mesma noite”, sobre o incêndio na boate Kiss. Cito esse livro e esta entrevista como exemplo pois, após nove anos e inúmeras tentativas de evitar o julgamento, finalmente, o mesmo está ocorrendo, nesses dias, em Porto Alegre. É revelador – e muito tem a ver com o que estamos falando aqui – quando a jornalista enfatiza que a tragédia não ocorreu naquela noite de janeiro de 2013 mas, sim, em 2009, quando a boate foi inaugurada. Isso porque, desde então, aquele lugar nunca operou obedecendo efetivamente as diversas normas vigentes exigidas por lei. Foram 41 meses de portas abertas sem que, em NENHUM MOMENTO – isso exige caixa alta – a boate estivesse 100% regular. Chamou a atenção, no julgamento, os gritos desesperados do proprietário da boate quando ele diz que não é um assassino. Que não saiu de casa para matar ninguém. Entretanto, ele era o responsável pelo estabelecimento e, graças a um jeitinho aqui e outro acolá, sempre conseguiu empurrar suas obrigações com a barriga para manter a boate operando. Da mesma forma os bombeiros sempre deixaram passar alguma coisa que estava irregular e a prefeitura emitiu o Alvará, mesmo sabendo que a casa estava irregular. Todo esse “jeitinho”, no final, “apenas” culminou na morte de 242 pessoas.

 Ou seja, esse “jeitinho do brasileiro” além de não ser nada romântico, também nada tem de inofensivo. Isso, somado ao nosso histórico problema com a impunidade, também contribuiu para o desenvolvimento de uma sociedade individualista e egoísta, que raramente se percebe parte de um coletivo. A desobediência quanto ao uso de máscaras ilustra muito bem a questão. Afinal, não estamos falando de uma relativização ou uma decisão pessoal. Usar máscara, no Brasil, hoje, é obrigatório – Lei 14.019/2020, sancionada pelo Presidente Bolsonaro em 03/07/2020 –, o que significa dizer que não usá-la, em público, é um desrespeito à lei e à própria ordem social. No entanto, as pessoas, e o próprio Presidente da República que à sancionou, não obedecem aquilo que é lei, o poder público não fiscaliza, não há punição para quem a desrespeita e, assim, a norma institucional, que deveria ser seguida por todos, é simplesmente ignorada. Mesmo após mais de 600 mil brasileiros perderem a vida por causa da pandemia.

Dar um jeitinho para tirar vantagem sobre tudo é o que rege a nossa sociedade. O individualismo sobrepõem o coletivo e o lucro, unicamente, torna-se o objetivo final, alcançável a qualquer custo. O que, em parte, também ajuda a explicar as exaustivas tentativas – e frustrações – em se transformar uma área pública e nobre de Porto Alegre em, apenas, oportunidade de negócios. Muito se fala, por exemplo, sobre como ficou legal a nova Orla do Guaíba. Entretanto, ninguém parece lembrar que esta apenas foi possível pois parte da sociedade civil lutou, e muito, ao longo de vários anos, para evitar que diversas administrações seguidas a entregassem à iniciativa privada. Quer dizer, se não houvesse “orla”, certamente não haveria como construir “a Orla”. E, nesse caso, certamente, a história seria outra, possivelmente bem mais parecida com o que ocorreu no espaço onde, antigamente, havia o Estaleiro Só. Depois de anos pacientemente esperando pela definição da justiça, a “iniciativa privada”, hoje, está ali finalizando mais um “edifício-gourmet-carne-de-cavalo-ao-preço-de-maionese-extra”. Ao menos, este livrou-se de ser batizado por mais estrangeirismo e recebeu o nome de “Portal”.

Aquilo que não ocorreu com a bela Orla do Guaíba, mas ocorreu com o espaço do antigo Estaleiro Só, parece, mesmo com toda a resistência de grupos decididos em mostrar – inclusive através de projetos arquitetônicos – que há inúmeras alternativas para além de mais um shopping center, virá a ocorrer com a área do Cais Mauá. Finalmente, ao que tudo indica, o Governo Eduardo Leite conseguirá entregar aquela área nobre de Porto Alegre à iniciativa privada. Sob os aplausos de todos os mesmos setores que sempre faturam alto com a especulação imobiliária e a despeito da sociedade que clama – embora boa parte dela nem saiba disso – por mais espaços coletivos e não elitizados. A revitalização da Orla do Guaíba, nesse sentido, se apresentou como aquela exceção que confirma a regra. No entanto, a exemplo da famigerada “revitalização provisória” de parte do Cais Mauá – esquizofrenicamente batizado de “Cais Embarcadero” –, no geral, a cidade já se transformou em um grande canteiro de Parcerias Público-Privadas. Inclusive, agora, nos parques públicos. No final essas PPPs mais servem para privatizar aquilo que um dia foi público, limitando assim, pelo poder de consumo, o acesso das pessoas menos favorecidas. Não é por acaso que o porto-alegrense está tão carente de espaços públicos que humanizam a cidade, que, desde que foi inaugurada a Orla do Guaíba – trecho 1 e, agora, o trecho 3 – esta passou a ser um dos principais pontos de encontro na capital.

Como consequência direta desse abandono dos espaços públicos, temos o ressurgimento daquele cidadão porto-alegrense que não se orgulha da própria cidade e, portanto, ao contrário de cuidá-la, passa a vandalizá-la. Ao perceber isso, impossível não lembrar da descrição da historiadora Sandra Pesavento sobre a Porto Alegre do início do século passado quando ela diz que “[…] algumas ruas eram verdadeira mataria, intransitáveis no mau tempo, escuras à noite […] e absolutamente mortas após o toque de recolher do sino da Matriz”. Mesmo levando em conta o distanciamento temporal de mais de 100 anos, quando, inclusive, o sino da matriz já não mais dita o cotidiano metropolitano, a Porto Alegre daqueles anos, retirada do livro “O imaginário da cidade”, não deixa de ilustrar um pouco a Porto Alegre de hoje.

Não se iludam, não me iludo. A “Lei de Gérson”, sobre a qual comentei acima ao me referir aos gringos “empreendedores” que sempre querem tirar vantagem em tudo, se faz presente também capital. O Cais Mauá, uma área tão nobre e com enorme potencial de valor, não pode ser entregue a alguns artistas que vão transforma-lo em espaço cultural. Onde se viu? Seria muito desperdício perder metros quadros em um teatro, uma sala de cinema, um espaço para exposições, whatever. É preciso ganhar no hambúrguer, mas também na maionese extra. Por isso, os grandes empresários, faz muito tempo, estão pacientemente de olho naquela região. E ai entra todo tipo de blá-blá-blá sobre a importância de revitalizar o Centro Histórico. Como se essa revitalização tivesse que, necessariamente, passar pela construção de edifícios envidraçados.

Na essência, o discurso é sempre o mesmo. E os objetivos também. Não há espaço, nos projetos apresentados, para a cultura, as artes e para os pedestres irem e virem sem que, para isso, precisem pagar pedágio. Não há, nesses lugares, metro quadrado que não deva ser transformado em lucro. E não importa quanto tempo isso demore para acontecer. O importante é que, cedo ou tarde, vai acontecer. Faz parte do processo e inclusive está inserido no projeto o tempo necessário para persuadir a sociedade sobre a necessidade de se construir alguns prédios comerciais e residenciais, com seus necessários estacionamentos, antes de ver todo o espaço definhar gradativamente, dominado por ratos, cupins e, claro, mendigos. O potencial de lucro daquela região justifica o tempo de espera pela liberação das obras. Se o “empreendedor” de hoje não ganhar, o seu filho ganhará. No Brasil, o sobrenome sempre definiu quem entra e sai do clubinho.

Infelizmente, a ideia de que é preciso tirar vantagem em tudo – e sempre lucrar – nos transformou em uma sociedade fútil. Nesse sentido, a única diferença entre negar uma maionese extra, pagar menos por um pouco de carne de cavalo sem procedência ou transformar um espaço privilegiado como o Cais Mauá em mais uma montanha de prédios em aço e vidro é que aqueles “empresários” de Caxias do Sul e Bento Gonçalves fizeram por centavos, enquanto estes, de Porto Alegre, fazem por milhões. Mas, como diria minha mãe, sábia filósofa da vida, “roubar uma agulha ou um milhão não faz diferença na hora de definir o ladrão”. Não é por acaso que, para todos eles, uma “rachadinha” não é motivo suficiente para inflar as ruas e pedir o impeachment do Presidente. No final, ainda como diria minha mãe, “é tudo farinha do mesmo saco”. Eles se merecem e nós, filhos que aprendemos a honestidade com nossas mães, nesse país de Gérsons, pagamos o pato. Ou melhor, o hambúrguer gourmet de cavalo, sem direito à maionese extra. Eu, pelo menos, levanto da mesa e reclamo. E você?

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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