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MAR ABERTO | A deles, nossa, vossa, bandeira do Brasil

por Boca Migotto

O verde simboliza a fauna, o amarelo, nossas riquezas e o azul o céu desse país abençoado por (d)Deus. Foi assim que aprendi, na escola, sobre a representação das cores da nossa bandeira que, no próximo 19 de novembro, comemora aniversário. Foi preciso, no entanto, muito tempo para que eu descobrisse, por conta e risco, que as referidas cores fazem menção, na verdade, aos colonizadores portugueses.

Assim, peço perdão aos patriotas de plantão, mas devo esclarecer que o verde representa a cor do brasão da família Bragança, de Dom Pedro I, e o amarelo faz referencia ao brasão da dinastia Habsburgo, a família austríaca da Imperatriz Leopoldina. Apenas a esfera azul, adicionada posteriormente à “Proclamação da República”, em substituição ao brasão de armas do Império, teria seu significado inspirado nos céus do Brasil. E escrevo “teria” pois há historiadores que afirmam que o azul, na verdade, faz referencia ao céu do Condado de Portucale, no qual surgiu Portugal. Se as pessoas lessem saberiam disso. Como a leitura – e o conhecimento da própria História – é um hábito que nunca vingou no Brasil – tal qual justiça social – os brasileiros aceitam qualquer balela como verdade. A “Fake News” não nasceu ontem.

Redesenhada por Raimundo Teixeira Mendes e por Miguel Lemos a partir da bandeira do Império do Brasil, a nossa bandeira sofreu forte influência do positivismo de Augusto Comte, na época bastante disseminado no Brasil, principalmente entre os militares e sobretudo no Rio Grande do Sul. Os dizeres “ordem e progresso”, escrito em verde sobre a faixa branca que corta a esfera azul da bandeira, é uma adaptação do lema positivista “o amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”. Na impossibilidade de reproduzir a frase completa, excluiu-se o “amor” e manteve-se a “ordem e o progresso”. Nada mais sugestivo, uma vez que, dentre outras coisas, o positivismo defendia a modernização do Estado através da potencialidade da nova economia, surgida da Revolução Industrial, sem, no entanto, promover uma ruptura traumática com as classes tradicionais europeias representadas, sobretudo, pela nobreza (quase toda) deposta e o clero enfraquecido. “Conservar melhorando”, era o lema de Comte, que até admitia a importância da Revolução Francesa para a instauração “dos novos tempos” mas, a partir de então, defendia que era imprescindível conciliar a nobreza e o clero, apesar de tudo, ainda bastante influentes na Europa, com a burguesia, cada vez mais forte financeiramente. É esse o pensamento que, no Brasil, cairá como uma luva para organizar uma sociedade ainda medieval, fundada e sustentada pela escravidão – a Lei Áurea havia sido assinada há apenas um ano, em 13 de maio de 1888 – que, por sua vez, originava uma nação extremamente corrupta politicamente, desigual socialmente e injusta institucionalmente. Algo que, como sabemos, muito pouco mudou com o passar dos anos. Portanto, obviamente, era preciso “modernizar” o Brasil a partir de um discurso republicano que justificasse o Golpe sem, no entanto, “provocar” a ira dos grandes latifundiários, na época – e ainda hoje, que ironia – tidos como elite desse jovem país em formação. Mais do que “bonito por natureza”, o Brasil é “contraditório por nascimento”. Um bom exemplo disso, segundo vários historiadores, é que o reinado de Dom Pedro II – e ele próprio – era muito mais progressista que todas as demais repúblicas latino-americanas já estabelecidas no continente, bem como, o próprio governo militar que assumiria o país a partir de 1889. Por conta disso, quando soube do Golpe sofrido por Dom Pedro II, o então Presidente da Venezuela, Juan Pablo Rojas Paúl, teria dito: “foi-se a única república da América”.

Embora o positivismo francês tenha se mostrado fundamental na formação do Brasil, principalmente pós-Golpe de 1889, a influência francesa sobre nossa cultura é muito mais ampla que isso. Apenas para permanecermos no objeto em questão, vale lembrar que a bandeira do Império do Brasil, apresentada aos brasileiros dias após a Independência proclamada por Dom Pedro I, foi desenhada pelo artista Jean-Baptiste Debret a partir de modelos de bandeiras existentes nas tropas francesas durante a Revolução Francesa. O próprio brasão de armas foi, também todo ele, desenhado pelo pintor francês que era figurinha tarimbada na corte tupiniquim. É verdade, no entanto, que após o Golpe responsável pela instauração da República, a bandeira do Império foi substituída pela bandeira dos “Estados Unidos do Brazil”. Assim com “z” mesmo. Uma espécie de cópia da bandeira americana, desenhada pelo médico e jornalista José Lopes da Silva Trovão, que substituía o vermelho e branco pelo verde e amarelo. De um mau gosto atroz. Felizmente, apesar da já forte influência dos Estados Unidos sobre os republicanos brasileiros, principalmente por conta da luta americana pela sua independência do Reino Unido, ainda em 1776, essa versão tropical da “stars and stripes” se manteve hasteada por apenas alguns míseros dias. Thank’s god! Assim, desde que a bandeira verde-amarelo-azul-e-branco se impôs como a “bandeira do Brasil República”, salvo pequenas alterações como a inclusão de novas estrelas, por conta do nascimento de novos estados, se manteve praticamente inalterada até hoje. Entretanto, apesar de nos representar desde 1889, apenas em 1971, por decreto do então Presidente, Emílio Garrastazu Médici, a bandeira se juntou ao hino nacional, às armas nacionais e ao selo nacional como símbolo oficial do Brasil. Sim, foi preciso uma ditadura militar para que isso ocorresse. Sim, os militares precisam de uma desculpa institucional para bater continência.

É essa mesma bandeira que, hoje, encontra-se em cárcere privado, sequestrada por Jair Bolsonaro e seus bolsonetes. Triste dizer isso, mas toda vez que vejo uma bandeira do Brasil tremulando em frente a uma casa ou circulando pelas ruas e rodovias em carros e caminhões, sinto uma dor inexplicável. Não poderia ser diferente, afinal, hoje, nesse país, (quase) toda bandeira do Brasil esconde um idiota. E, me perdoem, mas não vejo outra forma de designar alguém que se identifica e sustenta um Presidente como Bolsonaro. Mesmo quando em campanha, em 2018, era incompreensível, para mim, o apoio a alguém que destratava, grosseiramente, as pessoas – mulheres, principalmente – atacava a comunidade LGBTQI+, os indígenas, os negros e negras que construíram esse país, bem como todas as demais minorias. Um candidato que sustentava um discurso de ódio, armamentista e anti-diplomático. E, por fim, que defendia o desmatamento da Amazônia, jogava contra a nossa própria cultura, batia continência para a bandeira americana e nos chamava, artistas e ambientalistas, de vagabundos. Alguém cogitar votar num desqualificado como esse que, além de tudo, sempre foi um político vagabundo e corrupto, me parecia um pesadelo surrealista. Contudo, após praticamente três anos de uma presidência que nada construiu mas tudo destruiu, que ampliou a desigualdade social, que contribuiu para o aumento da inflação, do dólar e do combustível, que comprou meio Congresso com o mesmo toma-lá-da-cá criticado ao longo da campanha, que foi responsável pela morte de mais de 600 mil conterrâneos e que é insensível à tragédia da fome que atinge milhões de brasileiros, apenas para listar as questões mais graves que envolvem esse (des)governo, apoiá-lo só pode ser obra de idiotas. Que falta fez a esse país levar a sério a educação.

É atribuído a Nelson Rodrigues, se não me equivoco, a frase “o patriotismo é o último reduto do canalha”. De fato, estamos aprendendo “in loco” o quanto isso procede. Afinal, como bater na bandeira do teu próprio país quando tu mal consegues compreender o sentimento dúbio que te atinge toda vez que passas por ela? Confesso, muitas vezes meu peito infla tanto de ódio que tenho vontade até de queimá-la. Afinal, eu sei, e acho que tu também sabes, que aquela bandeira não está lá, tremulando na janela daquele cidadão, por amor à Pátria. Se assim fosse, por que só agora? Sabemos bem que o significado daquela bandeira verde a amarela, nesse momento, é outro.

Pessoalmente, eu sou nem um pouco favorável a esse negócio de ostentar símbolos. Até pouco tempo atrás, inclusive, me via argumentando sobre isso com amigos estrangeiros que, em visita ao Brasil, diziam se admirar por, justamente, não verem muitas bandeiras do Brasil em frente às casas. Perguntava a eles qual o sentido de demonstrar que sou brasileiro – ou patriota – a outros, também, brasileiros. Essa neura é, principalmente, dos americanos, que inclusive exploram seu principal símbolo de todas as formas possíveis pois, também através dele, buscam dominar culturalmente outros povos e justificar o investimento bilionário em guerras desnecessárias. Ou dos italianos e franceses que, através da bandeira tremulante frente suas casas, talvez queiram dizer que o fascismo e o nazismo não mais desfilará por suas ruas e avenidas como, sabemos, já o fez anteriormente. Quanto a mim – e ao Brasil – me deixem fora disso. Patriotismo demais é também desculpa para odiar.

No entanto, ironicamente, para bem além de uma invasão argentina via rede ferroviária – por medo disso, o Brasil não integrou sua malha ferroviária à malha latino-americana – ou americana, via bombardeios marítimos sobre a então capital, Rio de Janeiro, o inimigo morava ao lado. Mais precisamente, no próprio Palácio do Alvorada. Numa estratégia muito inteligente – embora insistam em chama-lo de ignorante porque o cara confunde John Kerry com Jim Carrey (sic) – Bolsonaro não apenas se elegeu Presidente, como o fez a partir do discurso conservador em nome de (d)Deus, pátria e família. Mais velho que cagar sentado – me perdoem a expressão chula em homenagem ao dito cujo. Mas, num país que ainda tem um pezinho no século XVI ou XVII, nada mais eficaz que apontar o dedo para aqueles que ousarem bater em (d)Deus, na pátria e na família. Sempre funciona, afinal, quem seria louco o suficiente para isso? Além dos tais “comunistas”, é claro? E, assim, quando nós, ilustrados e iluminados, nos demos conta, a bandeira não era mais nossa.

Ressignificada, hoje a bandeira do Brasil não representa mais os brasileiros, mas sim os bolsonaristas. Tanto que para usar a bandeira brasileira sem medo de ser confundido com um bolsonarista, é necessário associá-la a outro símbolo. Isso, um dia, mudará. Eu sei. A bandeira voltará a ser de todos os brasileiros e até pode ser que Bolsonaro não se reelegerá – aliás, esta é a única chance de resgatarmos o Brasil das profundezas da imbecilidade eterna. Mas, por enquanto, toda vez que vejo a nossa bandeira, vejo também uma pessoa que se identifica com a grosseria, que deseja ver a Amazônia pegar fogo e os índios assassinados por mineradores ilegais. Vejo um idiota que defende o armamento de uma população que carece, sobretudo, de comida. Alguém que acredita em “Kit Gay” e que o nióbio é a oitava maravilha do mundo. Vejo uma pessoa que menospreza a cultura, as artes e a educação. Alguém que acredita ter o direito de subjugar as outras pessoas ao mesmo tempo que acha bonito ser um ignorante. Que defende a ditadura, a tortura, o golpe contra a democracia. Alguém que fala alto com os mais fracos, mas é uma “tchutchuca” com os mais fortes – seja lá o que “ser mais forte” significar. Vejo, por traz da bandeira do Brasil, um verdadeiro apatriota, que se utiliza da corrupção como discurso moralizante, mas não se importa com as “rachadonas” da família Bolsonaro ou, ainda, sonegar o próprio imposto. Infelizmente vejo, escondido pela bandeira do Brasil, a síntese de o porquê esse país nunca se libertou do seu passado criminoso.

É por isso tudo, e por muito mais, que é preciso, urgentemente, fazermos as pazes com a nossa bandeira. Mas, sobretudo, é imprescindível que, o mais rápido possível, chutemos a bunda mole desses imbecis. E que façamos isso enquanto ainda há tempo. Enquanto as instituições estiverem, ainda, cumprindo seu papel constitucional. (E essa última frase foi mais uma ironia).

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design.
Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade.
Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema.
Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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