Já vivi mais de sete décadas, com pelo menos cinco de militância ativa. Marchei por Liberdade, Igualdade, Fraternidade e uma Sociedade Sem Classes em pelo menos cinco países: Brasil, Chile, Suécia, Portugal e Cuba. Lutei pela Democracia e contra o Fascismo das mais diferentes formas: agitando, propagando ideias, debatendo, dando aulas dentro e fora da prisão, servindo na logística da guerrilha urbana, organizando-me e organizando sindicatos, partidos, comitês, associações e agrupamentos. Alguns revolucionários, outros reformistas. Assinei dezenas de manifestos, escrevi outros tantos documentos políticos, centenas de artigos, dois livros e capítulos de mais alguns, chefiei e fui chefiado, coordenei e fui coordenado. Dirigi dez documentários de curta e longa metragem, (um inacabado), trabalhei em pesquisa e roteiros para cinema, vídeo e rádio. Fiz teatro, participei da produção de shows, fui estivador e atuei na segurança de espetáculos de massa. Editei livros, revistas e jornais. Tratei de arte, cultura, comunicação, política e educação. Prática e teoricamente. Ouvi milhares de discursos e fiz uns poucos. Contribuí para a formação intelectual de jovens que se tornaram profissionais maduros, como opiniões próprias. Homenageei e fui homenageado (sempre com a impressão de que não merecia).
Já esqueci mais do que lembro.
Vi alguns golpes de perto, vitoriosos ou não. Só no Brasil foram oito:aquele contra Getúlio, em 1954;o contragolpe do Exército comandado pelo General Lott, em 1955,garantindo a posse do Presidente e do Vice eleitos (Juscelino e João Goulart); as intentonas da Aeronáutica e de parte do Exército em Tubiacanga (1956) e Aragarças (1959), novamente contraJK e Jango; o de 1961 contra Jânio e, por extensão, a tentativa de impedir a posse do Vice João Goulart, quase causando uma Guerra Civil; o de 1964; o de 1968 (golpe dentro do golpe) e, em 1985, o contragolpe parlamentar que encerrou o período ditatorial por meio de uma eleição indireta acordada entre partidos de oposição e o do governo (que se dividiu)levando à vitória de Tancredo Neves e à posse de Sarney (até ali, fiel servidor da Ditadura), eleito Vice pelo Congresso sem receber um único voto.
No Chile foram dois: o balão de ensaio batizado de “tancazo” (29 de junho de 1973) e, logo depois, o nefasto e trágico 11 de setembro, que se transformou no maior genocídio do povo daquele país desde a Conquista Espanhola. Passei pela Argentina durante o golpe interno do Partido Justicialista, que obrigou Héctor Cámpora a renunciar para que fossem convocadas eleições com Juan Domingo Perón como candidato. Estava pronto para transferir-me, com família, roupas, discos e livros, da Suécia para Portugal em novembro de 1975 quando, no dia 25, a ala socialdemocrata do Movimento das Forças Armadas golpeou seu lado esquerdo encarcerando alguns dos principais líderes da Revolução dos Cravos e afastando meus contatos de suas funções, entre eles, democratas, anarquistas e comunistas. Mais uma vez, meus planos tiveram que ser alterados. Fiquei na Suécia, larguei a estiva e voltei a trabalhar com Cinema.
Agora assisto a mais um golpe parlamentar. Pela televisão pude ver performances grotescas que me fizeram lembrar o saudoso ator e sindicalista João Ângelo Labanca, meu pai putativo, que, ao ver pessoas discursarem afogueadas e sem estribeiras, dizia: “Essa pessoa já entra como se estivesse no terceiro ato”.
Se o primeiro ato foi assim, como será o último?
Eu odeio golpes. Sejam os pequenos, tão comuns, desfechados na luta mesquinha pelo poder em empresas, partidos, associações de classe, comunidades, famílias… Sejam os grandes, que afetam as vidas de milhões de pessoas. Detesto também difamações, discussões inúteis sobre quem é o quê e sobre a pureza de uns e a impureza de outros. Sobretudo quando se trata de pessoas que deveriam estar lado a lado. Gente que tem o mesmo objetivo estratégico. Ainda mais se nos propomos a construir um futuro em que sejam respeitadas as diferenças e todos possam viver segundo suas necessidades.
Em 22 de junho de 1974, de Estocolmo, escrevi uma carta circular a meus amigos e companheiros em que dizia:
“Hoje, parece que quase todos me consideram alguma coisa que os outros não consideram — uns me dizem perigoso subversivo, outros um desbundado filho da puta, para alguns sou um socialdemocrata, para outros sou um ultra esquerdista, uns me dizem pró-soviético, outros me chamam foquista, quase todos: oportunista.” (Memórias do exílio: Brasil, 1964-19?? — IDe muitos caminhos, p. 307. São Paulo: Editora Livramento, 1978
Sinto-me num túnel do tempo, viajando na cabine telefônica do Doctor Who. Repetem-se episódios, histórias, ofensas. Não são os mesmos, embora semelhantes. Tampouco é farsa ou sátira o que já foi tragédia. É como um pesadelo em que Dostoievski toma a forma de Nelson Rodrigues. É como estivessem repetindo em “loop” o episódio do restaurante em “O Sentido da Vida” dos Monty Python (quem não viu aproveite para ver) com o burguês glutão explodindo diante nos nossos olhos uma e outra vez. Só que em 3D.
O avanço tecnológico possibilita maior circulação de ideias e informações, contribuindo para a difusão de ideais e práticas libertários, antes propagados quase apenas presencialmente. Mas isso não é privilégio. Ideais e práticas liberticidas também usufruem desses meios, muitas vezes com maior sucesso, apoiados por grandes meios de comunicação, dispondo de recursos oriundos do capital internacional e local. Gente melhor do que eu já escreveu sobre isso. Nós somos os marginais que começamos a ocupar um espaço que não foi criado para nós. Parece que esquecemos que a Internet nasceu para coordenar polícias e forças armadas dos estados nacionais, sob a hegemonia do imperialismo norte-americano e posteriormente estendida às organizações científicas. Aí se deu a brecha para o longo processo de democratização ainda tateante,só possível após o grande capital ver aqui um campo quase inesgotável para a globalização de sua ganância. Agora, sob um imperialismo mundializado, etapa final do capitalismo, já sem fronteiras. Situação já prevista com alguma precisão na melhor literatura de ficção científica.
Uma das coisas que aprendi foi a duvidar, a não “ter aquela velha opinião formada sobre tudo”(já disse Raúl Seixas).Outra foi a entender que minha ignorância é maior que minha sabedoria e meus conhecimentos (ler Platão repetindo Sócrates ajudou: “Só sei que nada sei”). Compreendi também que o diálogo é essencial e para que ele exista de fato os que dialogam precisam considerar-se iguais, respeitadas particularidades e diferenças. Alguém mais sábio escreveu:
… O diálogo não se impõe a ninguém. Responder não é um dever, mas é um poder (…). O dialógico não é, como o dialético, um privilégio da atividade intelectual. Ele não começa no andar superior da humanidade, ele não começa mais alto do que ela começa. Não há aqui dotados e não-dotados, somente há aqueles que se dão e aqueles que se retraem. E aquele que se dá amanhã, nele não se nota isso hoje, ele próprio não sabe ainda que tem este algo dentro de si, que nós o temos dentro de nós, ele vai simplesmente encontrá-lo, e encontrando-o, surpreender-se-á.(Martin Buber, Do Diálogo e do Dialógico. S. Paulo, Perspectiva, 1982, p.71)
Tenho especial predileção por esse trecho, cheio de magníficas orações de espírito libertário. Cada uma delas nos propõe uma profunda reflexão, em si e a respeito do momento em que vivemos e das situações que vivenciamos.
Nesse túnel do tempo, vem à minha memória uma reunião em que foi discutida a dissolução de uma organização revolucionária. Já não lembro quantos estavam presentes. Uns trinta, talvez, na sala de uma casa de periferia em alguma cidade estrangeira. O grande problema não era a dissolução, mas a divisão do patrimônio.Sim, ele existia. Eu me senti estranho ali. Não pertencia a qualquer dos grupos que julgavam ter direito a uma parte. Mas, assim mesmo, entrei na discussão. Como a situação era tensa, estabeleceu-se um regimento. O ponto que me interessa é: quando alguém dissesse que uma questão era de princípio, ela ficava bloqueada. Então, era questão de princípio pra cá e pra lá a toda hora. Acabei me enchendo e quis ir embora. Pensei, cá comigo, não se trata de princípios, mas de dogmas, o quê estou fazendo aqui? Mas a segurança era a principal questão de princípio. Tive que esperar o fim da reunião, que remeteu a outra, à qual já não fui. Felizmente, pois não fiquei sabendo que fim o patrimônio levou.
Mas, pensando bem, a lembrança está difusa. Pode não ter sido assim. Pode ser apenas uma sequência que imaginei para um roteiro que nunca escrevi. Ficção. Então, ninguém se sinta ofendido, por favor. Sou apenas um velho louco.
Pois é, estou me sentindo novamente confinado naquela sala lotada da minha imaginação. Companheiros bradam “questão de princípios” e procuram, exasperadamente, provar que são mais revolucionários que outros. Há impropérios, jargões (cujo significado desconheço) e nenhum diálogo. Cada um só ouve a si mesmo e o faz com uma certeza absoluta da grandeza de suas palavras.
Continuo tentando ouvir, aprender e convencer o máximo de pessoas a fazer o mesmo. No pensamento libertário, entendo, a Educação ocupa uma posição central, eu diria, de princípio, não de dogma. E como eu entendo isso? Escrevi um livro para o Senac no qual dizia:
… possuidores de talento para o ensino e conduzidos por nossa vocação de educadores, seremos capazes de viver nos ambientes multiculturais que são hoje os espaços educacionais e experienciar a geração de projetos transculturais — em que todos aprendem e ensinam, sintetizando tradições, experiências, ideias e inovações — dominando a técnica e, com esse domínio, expandindo a criatividade, o que resultará no enriquecimento da técnica, transformando projetos em obras antes apenas imaginadas. Dialeticamente, a criatividade desenvolve a técnica, que impulsiona a criatividade, que enriquece a técnica, que…
(…)
Mas isso é impossível sem diálogo. Todos pensamos saber exatamente o que a palavra quer dizer: conversação entre duas ou mais pessoas, instrumentos musicais, pássaros, rãs etc. Só que existem alguns fortes conteúdos na palavra que o senso comum tem esquecido. O primeiro é que é uma conversação entre iguais, sejam animais, instrumentos musicais ou, principalmente, pessoas.
A Educação — que significa essencialmente o desenvolvimento das capacidades intelectuais e éticas de uma pessoa — não acontecerá sem diálogo. Na sua falta, poderemos proporcionar adestramento, instrução, treinamento ou formação — aspectos táticos da educação — que, encarados apenas tecnicamente e ministrados de um ponto de vista hierárquico, distanciam-se da missão de desenvolver o intelecto e a ética das pessoas. Ora, o diálogo é essencial para que isso aconteça e o sentimento de igualdade é primordial para que haja diálogo, para que possa haver troca — de informações, conhecimentos, sentimentos. (Luiz Alberto Sanz, Procedimentos metodológicos: fazendo caminhos. Rio de Janeiro: Senac Nacional 2ª reimpressão, 2006, p. 28)
A Acracia, sociedade sem classes, igualitária, fraterna, livre, comunal, federativa e internacionalista é um projeto que se desenvolve à medida que seus criadores-integrantes se desenvolvem. E como qualquer projeto, só pode acontecer e crescer com a existência de diálogo entre os que a desejam e também com os que ainda não sabem que a desejam. Voltando a Buber, citado no início: aqueles que não sabem ainda que têm este algo dentro de si e que hão de surpreender-se ao descobri-lo.
Ah, como gostaria de ser surpreendido por nossa capacidade de dialogar, libertários que vivemos no presente abrindo caminho para o futuro, para que eu possa me educar, apesar da minha velhice, e assim contribuir com os mais jovens nessa longa jornada da qual não verei o fim.
LUIZ ALBERTO SANZ (LUIZ ALBERTO BARRETO LEITE SANZ)
Pesquisador independente em Educação, Comunicação Social e Artes do Espetáculo. Professor Titular aposentado da Universidade Federal Fluminense. Foi coordenador editorial da revista libertária “letra livre”, é colaborador da “Revista da Educação Pública” (eletrônica) da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro e membro fundador da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE). Foi, em sua vida profissional, jornalista, cineasta, educador, diretor de espetáculos, técnico cinematográfico e estivador. Exerceu suas funções em Brasil, Chile, Suécia e República da Guiné (nesta, como consultor da UNESCO na área de Comunicação em Matéria de Educação). No Jornalismo, passou por quase todas as funções, mas destacou-se sobretudo como critico teatral (Jornal do Commercio – RJ e Última Hora) e cinematográfico (Última Hora e Rádio MEC), repórter e comentarista cultural e político (Letra Livre, Revista da Educação Pública, Jorna1 de Brasília e Rádio MEC). Na vida sindical, foi Secretário- geral e Presidente do Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diverão do Estado do Rio de Janeiro, na gestão 1981/1984 e, como representante do SATEDERJ, membro da Executiva lntersindical do Rio de Janeiro (1981/1984) e da Executiva do Conselho Nacional das Classes Trabalhadoras – CONCLAT (1983-1984). Como administrador cultural, foi Diretor do Centro Nacional de Rádio Educativo Roquette- Pinto/Rádios MEC (1994); Superintendente Cultural da Embrafilme (1983/1984); membro do Conselho Diretor (1977-1978) e Secretário de Informação (1978-1979) de FilmCentrum (cooperativa de cineastas independentes e animadores cinematográficos), Suécia.
OBRAS PRINCIPAIS / LIVROS: “Procedimentos metodológicos: Fazendo caminhos”. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2003; “Dramaturgia da Informação Radiofônica”. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 1999; FILMES: “Soldado de Deus”, de Sergio Sanz. (Pesquisador e co-roteirista). Rio de Janeiro: J. Sanz, 2004. “Carnaval: Tradição, beleza e trabalho” (criador e co-roteirista, em parceria com Valéria Campelo, da série de cinco documentários). Rio de Janeiro: Senac Nacional, 1999. “No es hora de llorar/Não é hora de chorar” (parceria com Pedro Chaskel). Santiago do Chile: Universidade do Chile, 1971. [Premiado com a Pomba de Ouro no Festival de Leipzig de 1971; “Kommunicerande karl/Vasos comunicantes” (parceria com Lars Säfström). Estocolmo: Instituto de Cinema da Suécia, 1981. [Premiado com a Menção Honrosa no Festival de Leipzig de 1983] ESPETÁCULOS: “O Amor e seus duplos” (orientador e roteirista). Rio: Cia. Helenita Sá Earp/UFRJ, 2001; “Aline, Luli e Lucinha” (Diretor). Rio de Janeiro: Funarte, l981; “Filo porque qui-lo”, de Aldir Blanc, Gugu Olimecha, Maurício Tapajós e Fátima Valença (Diretor). Rio de Janeiro: Saci Produções, 1971. RADIO: “Tião Parada, o Rei da estrada” (co-criação do projeto, em parceria com Luciana Medeiros e Rosa Amanda Strausz da série dramática infantil e roteirização de alguns). Rio de Janeiro: IBASE/Rádio MEC, 1996. “Verso e Reverso – 2ª fase” (Produção e Criação da Série de 12 programas, e roteirização de dez). Rio de Janeiro: Rádio MEC/Educar, 1990.