Todas as mulheres sabem identificar algum “sinal” de Lilith em si mesmas.
Este texto é uma releitura de um artigo escrito anos atrás, mais precisamente em 1992, quando a editora Cultrix lançou no Brasil a tradução do The book of Lilith, livro da analista junguiana Bárbara Black Koltuv, PhD em Psicologia Clínica pela Universidade de Columbia. Em 2017, a mesma editora lança uma edição atualizada da obra sob o título O livro de Lilith: o resgate do lado sombrio do feminino universal.
A autora reuniu e analisou numa antologia, contos mitológicos, antigos e modernos, que evidenciam a tentativa de banir a figura de Lilith da consciência humana.
Segundo ela, esse aspecto do feminino antecede os valores da era patriarcal e remete a um período ainda mais antigo – o da fase matriarcal vivida pela humanidade. É na história mitológica registrada sob a égide do patriarcado que a instintividade do feminino aparece como algo maligno que se tenta suprimir ou expulsar. Ele é mencionado como Lilith, o sedutor demônio feminino e noturno, de longos cabelos. É a outra face de Eva no mito cristão. Lilith é a primeira mulher de Adão, a que ousou subverter a ordem do paraíso do Deus masculino. Aparece também na mitologia árabe como Lamasthu, a bruxa assassina de crianças; ou como Naama, a jovem sedutora, ou ainda, como Adamah a síntese que representa a terra mãe, feminina e vermelha.
Lilith é o lado sobrevivente da Grande Deusa que regia com consciência lunar, vida, morte e renascimento. Trabalhando com o corpo – instintividade e sexualidade- aliado ao conhecimento profético interior e da experiência, a Grande Deusa dividiu-se em duas com o advento do patriarcado. Um Deus uno e masculino passou a deter o poder de vida e morte, provocando a ruptura entre sexualidade/magia e procriação/maternidade.
Lilith é a parte do feminino que não assimilou a ordem patriarcal e é vivida no inconsciente de homens e mulheres como a bruxa, a proscrita, a sombra sedutora. Ela não aceita a visão patriarcal que criou Eva, vista como receptáculo e mãe, cuja sexualidade limita-se ao proscrito enlace conjugal. Igualmente não aceita a virgem, mulher idealizada e espiritualizada elevada aos céus pelos homens.
Lilith é prostituta e está ligada à terra. Sua sexualidade pertence a si mesma e à Deusa. Não se submete a um arrogante poder masculino. Opõe-se a Eva e discorda de Adão, negando deitar-se debaixo dele no ato sexual, alegando que ambos haviam sido criados igualmente da terra.
Lilith é aquele lado feminino que não pode ter suas necessidades satisfeitas numa relação como Eva. Ela foge porque não aceita submissão, não pode ser acorrentada ou enjaulada. “Ela é um aspecto do feminino que só pode desenvolver-se no deserto, sem relacionamentos, sem eros e sem filhos. Sempre com ciúmes de Eva que permanece abraçada ao homem. Eva, por sua vez, sente-se acorrentada à terra pelos homens e pelos filhos, e reflete os ciúmes de Lilith”, na interpretação de Bárbara Koltuv que defende a necessidade de trazer Lilith à tona, em suas inúmeras formas, para que seja possível a emergência do Eu feminino nas mulheres. Esta dupla face vivenciada de modo inconsciente pela mulheres impossibilita a síntese na personalidade feminina. Daí o papel da subversão da ordem imposta como condição primeira para uma vida mais inteira do feminino, apesar da negação primária e tradicional em fazê-lo.
Todas as mulheres sabem identificar algum “sinal” de Lilith em si mesmas. Habitualmente é o aspecto mais escondido ou negado – o inconfessável. Ela está presente em todas as mulheres, independente da idade, de forma mais ou menos consciente. Se lhe é permitido emergir de diferentes maneiras, acaba abrandando sua ira e torna-se acolhedora e lúcida. Do contrária, pode matar tudo o que está a sua volta.
Em tempos de aceleração e fragmentação das referências humanitárias, nada mais premente do que retomar os mitos que subjazem o imaginário da humanidade e ainda hoje são objetos de temor e rejeição, como é caso do lado instintivo da feminilidade representado por Lilith. Vale a pena ler ou reler o Livro de Lilith.
ROSANA ZUCOLO
Jornalista, professora universitária (UFN), mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa. Se diz ” parideira de jornalistas” e renasce com eles todos os anos. Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois gatos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs, duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras…