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LEIA ROTEIROS | PULP FICTION

por LEO GARCIA

Tenho quase certeza que este foi o primeiro roteiro que comprei na vida. Foi nos primeiros dias de 2006, eu morava na Espanha, mas estava de férias em Amsterdam (olhaí Vincent Vega) quando encontrei este pequeno tesouro em uma livraria.

Na verdade é uma publicação bem cachorra, tamanho pequeno “de bolso”, com poucas fotos em PB e páginas de papel meio baratex típico de livros de ficção de polpa, o que pode ter sido proposital por parte da editora britânica (ou não). O que importa é que a minha impressão, quando li na época, segue a mesma quinze anos depois: é um roteiro ES-PE-TA-CU-LAR. Não só as histórias e aqueles personagens nos prendem, mas a maneira como é escrito gera uma leitura muito saborosa.

Vou voltar um pouco no tempo antes de falar exatamente sobre o roteiro. Lembro da primeira vez que assisti “Pulp Fiction”, deve ter sido entre 1994 e 1995, aluguei meio na sorte o VHS na locadora. Eu com 12 anos já estava começando a acompanhar o Oscar, mas não tinha noção do que representava uma Palma de Ouro em Cannes. O filme me arrebatou de uma forma que se transformou no meu filme favorito durante uma década e muito provavelmente ainda esteja no meu Top 10 (gosto de listas alheias, mas tenho incompetência/preguiça de fazê-las). Uma pena que nunca assisti no cinema, o que nos leva ao Fato Curioso nº1: Em 2013, na primeira edição do FRAPA, a gente fez uma Mostra bem massa exibindo nos cinemas de Porto Alegre os 20 melhores roteiros americanos da história escolhidos pela WGA, só coisa fina, Casablanca, Poderoso Chefão, Crepúsculo dos Deuses… quer dizer, dos 20 filmes, mesmo sendo sessões gratuitas, só não conseguimos a liberação de um deles: sim, Pulp Fiction. Obrigado por nada, Miramax (e o que esperar do estúdio dos irmãos Weinstein né).

O roteiro de “Pulp Fiction — Tempo de Violência” (esta será a primeira e última vez que escreverei o infame subtítulo brasileiro do filme) foi escrito por Quentin Tarantino e por Roger Avary, mas até hoje rola uma polêmica sobre autoria. O Tarantino assina “writen and directed by” e o Avary tá creditado somente como “Story by” junto com o Quentin. A ideia original já era fazer um filme com três histórias desse submundo de L.A., mas a parte do Tarantino acabou aumentando de tamanho e virando nada menos que o “Cães de Aluguel”, seu fodástico longa de estreia. A história do Roger já era a do relógio de ouro e tinha alguma coisa também de “Bonnie Situation”. Os dois conceberam grande parte do filme juntos em Amsterdam (veja só), onde comeram fritas com maionese, aí o Tarantino criou o restante, amarrou e fez a costura geral. Hoje parece que já são águas passadas, mas dá pra ler um pouco mais detalhes sobre essa “pseudo-treta” AQUI:https://faroutmagazine.co.uk/roger-avary-the-forgotten-co-writer-of-pulp-fiction/

e também AQUI:https://www.shmoop.com/study-guides/movie/pulp-fiction/behind-the-scenes/screenwriter

Vale salientar que no Globo de Ouro de 95 o Tarantino recebeu sozinho o prêmio de roteiro e sequer mencionou o Avary. Mas depois, já no Oscar, tavam os dois e reza a lenda que o Avary subornou o Câmera da cerimônia com 500 dólares: caso eles levassem a estatueta, era pra dar um black na cara do Tarantino — e pior é que rola isso por um segundo e o foco é todo no Roger até chegar no palco, confere aí (os mini discursos também são bons):https://www.youtube.com/watch?v=6IGTPyLE27c

Atenção para o Fun Fact nº2: em 2015 eu troquei diversos e-mails com o Roger Avary e ele quaaaase veio para o FRAPA, pena que ele pediu um cachê um pouco pesado pros nossos padrões (quase foi possível visto que o dólar ainda tava acessível na época) e quase metade do montante ele queria que fosse em… moedas de ouro. Verdade, juro.

Falando no Avary, no site dele tem o roteiro do Pulp Fiction pra ler online:https://www.avary.com/content/PulpFictionScreenplay.pdf

Aparentemente é exatamente a versão do meu livrinho de bolso, com três diferenças que notei passando os olhos:

1) Nesse PDF escaneado do roteiro não há os cabeçalhos com as locações — e não me perguntem o porquê.

2) O último capítulo se chama “Jules, Vincent, Jimmie & The Wolf” e no livro (e no filme) ficou como “The Bonnie Situation” (de fato um título melhor).

3) No meu livrinho, eles apontam entre colchetes o que foi retirado na montagem do filme, o que é DEVERAS interessante. Já já volto com isso.

Nesse link do Avary achei curioso que na primeira página ele conta que os executivos do estúdio Tristar, que inicialmente financiaram o desenvolvimento do projeto, falaram que foi o pior roteiro que eles pagaram na vida e logo pularam fora. Foi aí que entrou a Miramax dando liberdade total pro Tarantino fazer o que bem entendesse.

Gosto muito que os personagens “mudam de nome” assim que descobrimos seus apelidos. E todo mundo que teve o cd com a trilha do filme sabe de cor esse trecho gritado antes de entrar a sensacional música dos créditos iniciais.

Nestas googleadas da vida também descobri que o roteiro foi publicado em português no Brasil pela Rocco, acho que anda esgotado, mas ainda se encontra na Estante Virtual. Pra quem não é familiarizado com a língua inglesa, o PDF pode ser encontrado online aqui (passei os olhos e acho que a tradução não é das melhores, porém entendo o desafio, é gíria pra cacete):

https://estudosaudiovisuais.files.wordpress.com/2013/04/pulp3.pdf

Tarantino e Avary nos brindam com um roteiro com uma estrutura não-linear que foi a grande sacada deles. Depois disso até virou moda uma penca de filmes com idas e vindas no tempo, nem sempre justificáveis como recurso narrativo, só pra parecer “cool”. Eu, particularmente, gosto bastante deste recurso, mas todo cuidado é pouco, como meus colegas roteiristas sabem bem.

Em “Pulp Fiction” temos quatro histórias que se entrelaçam. Oficialmente são três (inclusive na capa do roteiro original de 1993 tá escrito “Three Stories… about one story”), mas acho válido também computar a do casal assaltante no prólogo/epílogo. E a intenção do Tarantino, dessas histórias serem parte de uma única e poderosa história, foi alcançada com louvor. É tudo muito orgânico e acho que

poucos filmes possuem tantos momentos que se tornaram icônicos na cultura pop como aqui: a dança do Vega e da Mia, o discurso bíblico de Jules (que é inventado, não está na Bíblia), Butch escolhendo a arma, a maleta dos gângsteres com algo brilhoso e valioso dentro que nunca sabemos o que é…

Outro dos trunfos é o seu multiprotagonismo. Cada uma das histórias tem o seu e que eventualmente vai estar presente nas demais: Vincent Vega na primeira, Butch Coolidge na segunda e Jules Winnfield na terceira. E todos aprendem alguma lição e tem uma espécie de redenção em seu capítulo.

[Porra e a ousadia de matar o personagem do Vincent no meio do filme e de uma forma até meio estúpida e poder voltar com ele depois “um dia antes”? Clap clap clap]

Muito também já se falou sobre os diálogos desse filme (e de quase todos os filmes do Tarantino) então não vou chover no molhado. Provavelmente o mais famoso é o papo coloquial brodagem do Jules com o Vincent antes de entendermos que eles são capangas/matadores de aluguel a caminho de uma missão arriscada ou mais um dia normal na vida deles:

Algum chato do rolê pode dizer que a trama não avança nada aqui, mas ainda estamos apresentando os personagens, é início do filme (logo o espectador tem mais paciência). Sem falar que o papo dos dois é bom demais.

Outra coisa que acho incrível é o cuidado que todos os personagens recebem, seja nos diálogos, nas ações e na caracterização, inclusive os que são bem coadjuvantes. Por exemplo, a taxista chamada Esmeralda Villalobos, que pega o Butch depois da luta e que tem apenas uma cena (bem dialogada): naquela corrida notamos a sua personalidade “excêntrica” e sentimos que ela tem toda uma vida por trás. Um roteirista mais preguiçoso talvez apenas focasse no protagonista do capítulo e fizesse algo mais no piloto automático aqui, um taxista qualquer genérico.

Outro exemplo é o traficante Lance (e a mulher dele, a Jody!) que tem só duas cenas em todo filme (uma delas é o clímax do primeiro capítulo, quando ajuda a resolver o problema da overdose da Mia). Leiam que delícia de apresentação do personagem no roteiro, quando o Vincent tá indo lá comprar a droga que vai dar ruim depois:

Muita gente pode argumentar que isso é “errado”, que no roteiro não se pode colocar algo tão literário, meio ficha de personagem, que não terá como se filmar, mas eu acho que aqui só ajuda o leitor a seguir dentro da história, não tá exagerado.

Como eu já adiantei anteriormente, uma das coisas mais legais do meu livrinho é apontarem o que caiu na montagem, mas que tava no roteiro de filmagem. Às vezes é uma ou duas falas (ex: depois que o Butch salvava o Marcellus, tinha apenas o chefão ligando pro Mr. Wolf, que ainda não tinha sido apresentado no filme) e em outros momentos até mais de uma página. E a bem da verdade é que nada ali faz falta, acho que concordei com 100% das decisões do montador e/ou do Tarantino. Quando o Vincent chegava pra buscar a Mia, rolava meio que uma entrevista dela apontando uma câmera pra ele que era até interessante, mas a solução adotada ficou melhor, mais limpo e mais direto (no meu roteiro de bolso tá escrito também a parte que foi adicionada durante as filmagens), deixando os dois pra se conhecerem melhor no restaurante mesmo.

Um dos maiores cortes era todo um momento de insegurança do Butch, enquanto ele estava indo buscar o relógio no apartamento. Ele dava um bifão falando sozinho (!!!) totalmente desnecessário que só enfraquecia o personagem — e depois daquela história que o Christopher Walken conta no início do capítulo, todo espectador sabe que o Bruce Willis precisa buscar aquela porra daquele relógio de ouro mais do que tudo.

Ah, eu falei agora pouco que concordava com 100% dos cortes, mas agora fiquei em dúvida: no roteiro que depois que The Wolf (um dos melhores personagens tarantinescos) resolve a situação, o Jimmie (interpretado pelo próprio Tarantino) pede pra tirar uma foto da galera. E o Wolf nunca sorri em fotos. Isso era legal.

Por fim, pra quem tá em clima de férias e com tempo, recomendo um longo e detalhado artigo da Vanity Fair lá de 2013 sobre como “Pulp Fiction” aconteceu (no início fala bastante sobre o processo de escritura em Amsterdam):https://www.vanityfair.com/hollywood/2013/03/making-of-pulp-fiction-oral-history

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LEO GARCIA
é roteirista, produtor, sócio da Coelho Voador e diretor-geral do FRAPA, o maior Festival de Roteiro da América Latina. Mestre em Roteiro (UPSA – Salamanca, Espanha), escreveu as séries “Sapore D’Italia”, “Bocheiros”, “Werner e os Mortos” e “Paralelo 30”. Destaque para o curta de animação “Ed”, selecionado para mais 100 festivais e com 27 prêmios. Em 2014, Leo foi selecionado para o Berlinale Talents, prestigiado programa do Festival de Berlim. Em 2018, lançou nos cinemas dois longas que escreveu e produziu: a ficção “Em 97 Era Assim” e o documentário “A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro”, no qual também assina direção. Leo, ainda, escreveu o roteiro dos longas “Legalidade” (2019) e “Depois de Ser Cinza” (2021). É criador, roteirista e produtor da série “A Bênção”, exibida no final de 2020 no Canal Brasil e disponível no Globoplay
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