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Inteligência Artificial por Paulo Trindade

Nestas horas de irrealidade cotidiana é bom parar um pouco, pensar e falar em outras coisas que não sejam vírus, pandemia, Bolsonaro e isolamento social. Vale a pena respirar fundo e lembrar que tudo passa, inclusive isto.

Aqui um assunto mais leve e interessante. Olhem estas fotos:

Você conhece estas pessoas? Este senhor não é um epidemiologista famoso? Ela não foi secretária de cultura de São Paulo?  As respostas em ordem são : não, você não conhece, não é nenhum epidemiologista, e não foi secretaria de nada. Eu sei disto porque estas pessoas não existem. Estas fotos acabam de ser inventadas por um programa de Inteligência Artificial, meio segundo antes de eu começar a escrever este texto. Para ver a prova e gerar suas próprias “pessoas”, vá ao site thispersondoesnotexist.com. Este site foi criado pelo pesquisador americano Phillip Wang para demonstrar uma técnica de inteligência artificial chamada Redes Neurais Adversariais. O site gera uma nova “pessoa” cada vez que se abre ou atualiza.

Por mais que pareça bruxaria ou uma coisa muito complicada, esta técnica de Redes Neurais não é difícil de entender. É importante compreender o que elas são e como funcionam, porque estão se tornando cada vez mais presentes na nossa vida diária – desde na maneira como a Netflix decide que programas lhe sugerir, a como o Facebook reconhece quem é uma pessoa numa foto.

Em um futuro muito próximo estas redes vão decidir quem será contratado para uma vaga de trabalho e sentará ao seu lado, qual é o diagnóstico de sua radiografia de pulmão, e qual deve ser o preço do leite no supermercado da esquina. Nada disto é ficção cientifica. Cada uma destas coisas já acontece em diferentes partes do mundo. Isto não é o futuro, é o presente, só ainda não  está distribuído de maneira homogênea pelo mundo, mas isto já vem. Não é diferente de quando começaram os celulares ou a Internet.

Este assunto é mais leve do que falar de pandemia, mas é muito mais importante. A pandemia é transitória, mas a inteligência artificial é uma mudança sísmica nas bases de toda a civilização. Se a corrida nuclear foi a batalha que definiu a maior parte do século 20, e por pouco não matou todo mundo, a batalha pela criação de inteligências artificiais cada vez mais capazes é que está definindo este século. E já vai a 20%.

A batalha pela inteligência artificial está sendo travada entre os centros de poder na China e nos Estados Unidos, com a Europa em um terceiro lugar distante, e a Rússia nem no páreo, porque por mais que tenham uma grande tradição de matemáticos e engenheiros brilhantes, não têm as instituições políticas e de pesquisa que permitem o progresso. Os Estados Unidos tem a vantagem neste momento, mas suas instituições estão muito abaladas e o futuro é mais incerto que nunca.

 A China está tentando fazer progresso com sua típica maneira de pensar de cima para baixo. Se comenta que o Premier chinês Xi Jiping ficou muito abalado quando em 2016 um programa de redes neurais da Google ganhou repetidamente do campeão mundial no jogo de Go. Este é um jogo de tabuleiro em que para se ganhar é necessário estratégia e subterfúgio –  um jogo de “manha” tanto quanto de lógica. Desde então, a China passou a investir quantidades enormes de dinheiro em pesquisa nesta área.

 Em 2019, um programa de uma empresa “start-up” conseguiu repetidamente ganhar dos melhores jogadores de pôquer do mundo. O programa de redes neurais usado para gerar estas fotos é de domínio público, qualquer pessoa pode copiá-lo ou modificá-lo. O programa de pôquer e a empresa que o criaram desapareceram do mapa com uma história esfarrapada: a de que arruinariam os cassinos online. A realidade é que de todos os jogos, o pôquer é o mais similar à estratégia militar, e quem tem o melhor general ganha a guerra.

Alan Turing: da matemática às redes neurais

Compreender o método de “redes neurais adversárias” que inventou as pessoas nestas fotos, começa por entender que no mundo da tecnologia, muitas vezes, grandes avanços se geram na resolução de problemas menores ou não relacionados. Um exemplo disto foi um trabalho publicado pelo matemático inglês Alan Turing em 1936, no qual ele sugeria um método novo para comprovar um teorema matemático. Turing tinha 24 anos à época e o método que descreveu era uma máquina que ele chamava de “computador” – escrito assim, entre aspas. Durante muitas décadas os computadores foram chamados “Máquinas de Turing”, e o chip do computador em que você está lendo agora é feito milhões de Máquinas de Turing, desenhados com base nos princípios que ele descreveu em 1936, tentando provar um teorema matemático obscuro ao qual ninguém nunca deu bola.

 A história humana é uma repetição dos mesmos tipos de pessoa, com variações sobre os mesmos temas. As pessoas são boas, malvadas, heroicas, traidoras, mas no agregado, a humanidade não mudou muito nos últimos 10 mil anos. Existem registros históricos de mais de 4 mil anos atrás de gente reclamando que “esta juventude de hoje não é como antigamente”.  Se a humanidade não mudou, o que mudou foi a nossa tecnologia, isto é, a nossa capacidade de usar conhecimentos abstratos para modificar nosso mundo concreto. A tecnologia nos levou dos sinais de fumaça ao telefone e à internet; das pedras ao arco e flecha e às armas nucleares.

Alan Turing foi uma das duas pessoas de mais impacto na história do desenvolvimento tecnológico da humanidade. A outra foi Galileu Galilei. Galileu fez com que a ciência passasse a realizar experimentos reais para provar ou desaprovar suas ideias, em vez de somente “viajar” com elas, como faziam os filósofos gregos e companhia. Antes um dizia:  “- um objeto mais pesado cai mais rápido que outro mais leve”. Os outros concordavam, discordavam, discutiam. Galileu foi quem subiu na torre de Pisa e soltou dois objetos de formato igual, um leve e um pesado, e constatou que eles caem na mesma velocidade, por mais que pareça que não deveria ser assim.

A partir de Galileu a ciência começou a fazer progresso. Ele é a chave do porquê hoje se anda de avião, se desenvolvem remédios eficazes e se vive em casas que não desabam com muita frequência. Por estas ideias, Galileu foi condenado à fogueira pela inquisição, e se salvou porque somente porque teve o bom senso de negar tudo o que havia descoberto, mesmo sabendo ser verdade que a terra não é o centro do universo e o sol e as estrelas não giram ao redor dela. Hoje é fácil dizer isto e  se saber verdadeiro. Naquela época se pegava fogueira para aprender a não dizer bobagem.

 Com Alan Turing a coisa foi muito pior. Depois de inventar o “computador” (eu adoro escrever entre aspas como ele fazia, afinal era um conceito abstrato inventado por ele), Turing foi a chave para decifrar o código secreto das máquinas Enigma de códigos secretos da Alemanha nazista. Um esforço que mudou a corrente da guerra e é creditado por salvar mais de 10 milhões de vidas.

Muito provavelmente algum de seus antepassados não teria sobrevivido se não fosse por Alan Turing, e você não estaria aqui hoje. O filme “O Jogo da imitação” conta esta história, e é baseado nos arquivos secretos do serviço de inteligência britânico que somente saíram a público em 1975, décadas depois da morte de Turing.

 A parte muito pior é , depois de tudo o que fez na segunda guerra e de várias outras contribuições cientificas e tecnológicas importantes (incluindo o “computador”), Alan Turing foi julgado por uma corte inglesa pelo fato de ser homossexual e condenado a tomar injeções de hormônios para  ser“curado” de sua homossexualidade. Pouco depois, aos 41 anos, ele se suicidou.

 Hoje, Alan Turing vive através de seu trabalho. Esta frase faz lembrar outra do então comediante, Woody Allen: “Eu não quero atingir a imortalidade através de meu trabalho, eu quero atingir a imortalidade não morrendo!”.  Tarde demais para Alan Turing, e como diz um fatalista provérbio russo: “a vida é uma coisa perigosíssima. Ninguém conseguiu sobreviver ainda”.

Baseados em outro estudo de Alan Turing, e com isto dando imortalidade ao seu trabalho, nos anos 50 dois cientistas americanos, um deles um biólogo de 65 anos, outro um matemático de 21, inventaram as redes neurais artificiais, em uma tentativa de criar um modelo que replicasse o funcionamento de um cérebro.

Voltemos às fotos acima: uma foto digital é na verdade uma tabela de cores, cada cor representada por um número. Quando você faz zoom em uma foto e chega a um quadrado de uma só cor, significa que você chegou na unidade fundamental da tabela, isto é, um número que representa só uma cor específica.

A tela de seu computador também é uma tabela. Cada quadrado da tela é um transmissor que emite um sinal de rádio em uma frequência específica – sim, sinal de rádio, como de AM, FM etc. Dentro do seu olho há células que são antenas calibradas para frequências de rádio específicas, que mandam um sinal para o seu cérebro quando detectam a sua cor assignada.

O olho humano é uma tabela destas células antena de rádio e elas detectam somente três frequências correspondentes às cores vermelho, verde e azul. Outras células na mesma tabela detectam presença ou ausência de luz, ou seja, uma imagem em preto e branco. Isto tudo é muito similar ao sensor que capta imagens em uma câmera digital e, não por acaso, porque o sensor foi desenhado para imitar o olho humano.

Cada grupo de células no olho se conecta ao cérebro por um fio (um nervo). O cérebro interpreta este sinal como uma cor. A imagem que sai de cada olho é de baixa definição e está de cabeça para baixo. O grosso do trabalho é o processamento feito pelas redes neurais do cérebro, e se estima que 60% desse processamento é interpretar estes estímulos nervosos e criar uma imagem coerente.

O cérebro humano (e do que qualquer outro bicho) é muito sofisticado, porque os sinais que se transmite são químicos, o que permite decodificar não somente “tem luz vermelha”, ou “não tem luz vermelha”, mas também  qual intensidade de luz vermelha. E não somente em números inteiros como 1, 2, 3  sucessivamente, mas dados de alta resolução com números como “intensidade de vermelho 1,245675445”.

Os computadores não são químicos, são elétricos que é uma coisa muito mais  tosca. A única coisa que se consegue “escrever” com sinal elétrico são números inteiros. É pior, na verdade, porque somente se consegue escrever DOIS números! O número zero representado por “neste fio não tem corrente elétrica”, e o número 1, representado por “PQP este fio dá choque!”.

Mesmo com esta limitação, colocando vários zeros e uns juntos, se pode representar qualquer número. Um fio elétrico permite representar dois números, dois fios quatro números, três fios oito números, quatro 16 números etc. É por isto que tantos números em computação são potencias do número 2, pois assim se usam todos os fios sem desperdiçar nada. No caso de uma foto digital cada quadrado é uma cor  representada por um número entre 0 e 16 milhões e tanto, porque são 24 fios um ao lado do outro, então 2x2x2… 24 vezes, ou seja, 2 na vigésima quarta potência. E se vocês achavam que matemática do primeiro grau não servia para nada, provavelmente vão continuar pensando a mesma coisa!

 Em um programa de redes neurais, esta foto digital, digamos de uma tartaruga, é recebida como números. A partir daí o programa funciona como um grande menu, com uma escolha dentro da outra. O primeiro nível é :“o primeiro ponto é verde?”. “Sim”. “Tem 50 linhas amarelas seguidas?” “Não”. Vários submenus adentro, nos níveis mais profundos, a coisa vai sofisticando. “Tem quatro patas?” “Sim”… até que o programa chega na resposta final: “Jacaré”. Só que era uma tartaruga e, então, ele recebe a resposta: “errado. Estava bem até o penúltimo”. Todo o truque da coisa é que quando o programa recebe este feedback, ele pega todo o caminho que trilhou desde o primeiro menu até chegar no “quatro patas”,  aumenta a “nota” deste caminho e baixa a “nota” do ultimo menu que diz “jacaré”. É assim que ele aprende.

 Para se treinar uma rede neural como a de imagens do Google, este processo se repete trilhões de vezes para cobrir todas as combinações de cores presentes em fotos, e todas as palavras descrevendo o está em uma foto. Cada vez o programa vai seguindo o caminho entre os menus indicado pelas suas melhores “notas”, ligando esta sequência de números que representam as cores da foto e a palavra correspondente. Cada vez o programa recebe feedback e se ajusta.

Quando finalmente o programa começa a acertar, e a cometer um número de erros semelhante ao que uma pessoa comete, a rede neural está treinada e pronta para usar. Quando você busca “tartaruga” no Google imagens, a rede usa o treinamento que ela teve e puxa as imagens que correspondem ao caminho de nota mais alta entre a palavra “tartaruga” e as fotos que eles capturaram de toda a internet.

 Por mais que o conceito tenha sido inventado nos anos 50, estas redes eram só uma curiosidade até os anos 90, e o salto realmente se deu nos últimos 10 anos. O problema era que cada camada de menus que se agrega ao programa, multiplica por mil a quantidade de cálculos necessária. Com os computadores dos anos 90 se faziam redes com 5 ou 6 níveis de profundidade, o que não permitia muitas coisas. Hoje estas redes chegam a ter 100 mil níveis de profundidade, e a inovação que permitiu isto veio dos videogames.

Para gerar as imagens de um videogame moderno, é necessário multiplicar enormes tabelas de números por outras tabelas de números a uma velocidade muito alta. Olhem qualquer videogame moderno, e uma das coisas que se nota são como a luz do sol se reflete na armadura do herói do jogo. É um efeito bonito, mas que requer uma quantidade absurda de processamento, com toda a imagem sendo recalculada de 30 a 60 vezes por segundo.

 Mesmo que este processo requeira uma quantidade absurda de computação, o mercado de videogames é enorme, e era negócio tentar fazer com que isto funcione. Então se desenvolveram chips super especializados para processar imagens de videogame, um processo que consiste basicamente em multiplicar uma tabela (contendo, por exemplo, o herói) por outra tabela (contendo a luz do sol) por 300 outras tabelas contendo as camadas do ambiente em que o herói está. Tudo isto de 30 a 60 vezes por segundo, e ainda não incluímos o vilão!  A grande sacada foi quando um engenheiro se deu conta que se podiam usar estes mesmos chips para processar as redes neurais, e toda a ciência deu um salto.

No final dos anos 90, uma das primeiras versões utilizáveis destas redes neurais para imagens não tentava identificar o que estava na foto, mas somente responder sim ou não à pergunta “tem gente pelada nesta foto?”.

Além de ter boas aplicações comerciais como filtro anti pornografia, aquela rede tinha duas vantagens. A primeira era que para treinar uma rede neural se precisa ter um grande número de exemplos daquilo que se está tentando ensinar. Fotos de gente pelada é uma coisa que nunca faltou na internet, ao contrário de, por exemplo, fotos de tartaruga – pelo menos no final dos anos 90.

O outro problema é que treinar uma rede é exatamente isto, treinar. Uma pessoa precisa alimentar foto por foto e corrigir a rede quando ela estiver errada. É um trabalho extremamente maçante e, talvez, o “tema” destas fotos tenha facilitado recrutar a mão de obra, que era composta de estudantes universitários.

Até aqui, a moral da história é que se você é um adolescente e seus pais vierem dizer que os videogames e a pornografia são um desperdício de tempo, você pode saltar e dizer “Não mesmo! Os videogames e as fotos de gente pelada facilitaram a revolução tecnológica mais importante da história da humanidade!”

Mesmo com estes avanços, o problema do treinamento existe até hoje. Para treinar o programa de Pôquer que ganhou de todos os campeões, dezenas de jogadores profissionais foram contratados para jogar milhares de jogos de pôquer com o computador. É um sistema muito pouco eficiente. Neste ponto, a história volta ao cérebro humano.

O cérebro humano e o  conhecimento

 Os aparelhos de ressonância magnética de alta definição estão aprimorando muito nosso entendimento sobre o cérebro. Uma coisa que está ficando clara é que nosso “inconsciente” existe sim, mas é uma coisa muito mais prosaica de que imaginavam os freudianos de outras épocas. Meu exemplo disto é de estar jogando um videogame, ver uma formação de pedras e imediatamente pensar: “estas são pedras basálticas”. Eu não tenho a menor ideia de onde eu aprendi isto, não lembro quando ou de quem, provavelmente décadas atrás. Mais do que isto, eu não sabia que eu saberia reconhecer pedras basálticas e não sei o que elas são, mas a rede neural do Google Imagens concorda com a minha ideia sobre aparência destas pedras.

Em algum momento uma rede neural do meu cérebro aprendeu a reconhecer pedras basálticas, e este programa esteve rodando todo este tempo sem se dar a conhecer, ou seja, no “inconsciente”, até que ele registrou um resultado positivo e exigiu a atenção do resto do cérebro.

Outro aprendizado importante sobre o cérebro é que não se trata de uma estrutura monolítica e coesa, mas sim vários “órgãos” específicos, interconectados, mas não harmoniosos. O “conflito” interno que nós sentimos entre a vontade de comer um doce e saber que não devemos fazê-lo, é muito real entre partes do nosso cérebro que são fisiologicamente definidas. Aquela coisa do anjinho e do diabinho em cada ombro é verdade, só que não estão no ombro, estão dentro do nosso cérebro, e não são só dois, são centenas, talvez milhares. Eles brigam por supremacia todo o tempo, e ganham ou perdem influência com cada vitória e derrota. A melhor definição é a da “sociedade da mente”: nossas mentes são como sociedades de indivíduos, cada um com suas prioridades e ambições.

A chave de tudo isto é que o conflito não é um estado anormal ou desarmônico que precisa ser corrigido, é a essência da nossa mente. Agora levemos isto para os próximos passos da inteligência artificial.

 Um americano de Indiana chamado Gary Tuft, de 41 anos, passou por um período muito difícil. No mesmo mês ele foi demitido do seu trabalho, ficou sem perspectivas de conseguir nada mais, sua mãe faleceu e sua esposa anunciou que estava se divorciando dele. Gary ia à igreja regularmente, mas não era nenhum fanático até passar por este período tão terrível. A partir daí ele passou a rezar muito, a frequentar a igreja assiduamente, a ler e estudar a bíblia. Com nada mais que o prendesse em Indiana, Gary comprou uma passagem a Jerusalém, buscando inspiração e direção na terra santa. Chegando na cidade Gary se hospedou em um hostel, pegou um folheto turístico e começou a recorrer os lugares sagrados.

 A visita a Jerusalém foi tudo o que Gary sonhava. Ele se sentia fascinado pela cidade, suas imagens, seus sons, seus cheiros, suas cores. Sentindo-se mais energizado do que jamais fora em sua vida, Gary passou a caminhar por horas a fio, sem descanso nem vontade de descansar, sem fome, sem sono, somente com o desejo de seguir esta trilha que claramente era o seu destino. Aos poucos, uma ideia periférica na sua consciência foi crescendo e tomando conta de toda a sua pessoa com uma força irresistível. Gary se deu conta que ele era o messias! Ele era o profeta que tinha sido enviado para salvar a humanidade. Ele era o único e legítimo filho de Deus. Ele, na verdade, era Deus encarnado, Gary era deus!

Nos dias que seguiram, Gary acampou no lobby do hostel e passou a gritar e xingar todos os hóspedes e pessoas que passavam, às vezes ameaçando-as com o fogo do inferno, outras horas oferecendo a salvação que somente ele podia trazer. O dono do hostel não achava que Gary era uma ameaça para os outros hóspedes ou para ele mesmo, mas ele estava afugentando os clientes e não tinha tomado banho desde que chegara. Ele discou de memória o número do maior hospital psiquiátrico em Israel, e pediu pelo diretor clínico pelo primeiro nome. Quando este atendeu, ele disse: “Isaac, tenho outro aqui pra ti!”

O doutor Isaac Partzold tinha informalmente nomeado a doença Síndrome de Jerusalém. Pelo menos duas vezes por mês seu hospital recebia um messias ou um deus novo, muitos mais nas épocas de pico de turismo. Eles eram invariavelmente cristãos – aparentemente a síndrome poupa a judeus e muçulmanos -, vinham de vários países e nacionalidades, e quase todos tinham antecedentes de episódios psiquiátricos que requereram internação.

Estar na terra santa os descompensava, e o calor e a desidratação pioravam as coisas. O protocolo de tratamento era o mesmo dos episódios de mania: medicamentos antipsicóticos, tranquilizantes quando necessário e terapia de apoio. Geralmente em duas semanas eles podiam viajar de volta para suas casas. A cada tanto, o doutor Partzhold tentava tratamentos novos, tentando sempre minimizar a intervenção medicamentosa e usar a terapia como a principal ferramenta, já que ele estava no epicentro da doença e se sentia na obrigação de buscar uma cura. Uma das suas tentativas foi a de colocar dois messias juntos na mesma sala, supervisionados por ele e vários enfermeiros bem grandinhos. A ideia era a de que, talvez, cada um vendo o quanto o outro estava convencido da sua ilusão, pensasse um pouco mais nas suas circunstâncias e visse a luz, ou melhor, deixasse de ver a luz. Não funcionou. Os messias começaram a xingar um ao outro, cada um se proclamando o verdadeiro, dizendo que o outro era uma fraude, e os dois se ameaçando mutuamente com o fogo do inferno.

Seguindo a tradição de soluções acidentais em tecnologia, um pesquisador americano leu esta mesma historia e pensou no seguinte: e se em vez de dois messias na mesma sala, eu coloco duas redes neurais na mesma sala? A partir daí ele inventou um jogo. Uma rede neural tinha a tarefa de inventar uma foto de uma pessoa. Essa foto era apresentada à segunda rede neural, junto com quatro fotos de pessoas reais, e a tarefa da segunda rede era identificar qual das cinco fotos era a “inventada”. Quando a segunda rede identificava corretamente a foto inventada, ela recebia o feedback positivo e ajustava as “notas” do seu caminho entre os menus, e a rede que gerou a foto inventada recebia o feedback negativo de “não funcionou assim” e também ajustava as suas notas. Depois de várias tentativas e ajustes, ele chegou em um modelo que funcionou: as duas redes neurais aprendem juntas e as fotos de pessoas reais direciona o aprendizado. Finalmente a rede que inventou a foto fica tão boa, que a outra rede não consegue mais diferenciar a foto inventada de fotos reais. Nem a rede neural, nem nós, e o resultado do treinamento é o que este site thispersondoesnotexist.com está demonstrando.

Outra contribuição de Alan Turing foi o chamado Turing Test, que é um teste para responder à pergunta “este computador é inteligente?”, ou “isto é realmente uma inteligência artificial?” Na sua formulação mais simples, o teste é uma pessoa falando com uma “entidade” que pode ser uma pessoa ou um computador, por meio de um teclado e uma tela. Se depois de determinado tempo, a pessoa não souber dizer com certeza se o que está do outro lado é uma pessoa ou um computador, a “entidade” é inteligente. A medida da inteligência é a capacidade de imitar ser um computador e uma pessoa. Uma pessoa com um pouco de conhecimento consegue imitar ser um computador, mas um computador ainda não consegue fingir ser uma pessoa. Oficialmente nenhum computador, por enquanto, passou neste teste, mas estas fotos inventadas são, pelo menos, a metade do caminho.

A expectativa tanto dos pesquisadores como dos governos e empresas que os patrocinam é que se vai desenvolver uma inteligência artificial. Talvez o modelo a seguir seja este, mas em vez de duas redes neurais em conflito com fotos, sejam mil redes diferentes em conflito sobre dezenas de coisas simultaneamente. Ou milhões de coisas simultaneamente, porque a vantagem do circuito eletrônico sobre o nosso cérebro químico é que sempre é possível fazer uma coisa maior. Um fato importante é que uma vez que este aprendizado começa, ele rapidamente ultrapassa a capacidade humana e, de fato, eu não conheço ninguém capaz de “inventar” fotos assim.

 Indo mais longe, e quase no terreno da ficção científica, mas na verdade ainda ficando na ciência, se nós podemos inventar uma máquina mais inteligente do que nós, esta máquina pode inventar uma máquina mais inteligente que ela e assim em diante? Isto é o que se refere como a Singularidade Tecnológica. Singularidade é um termo emprestado da física, como a singularidade do Big Bang, a grande explosão que deu origem ao universo. Não é possível ver o que existia antes do Big Bang, e os próprios conceitos de “existir” e da temporalidade do dele não se aplicam. A singularidade tecnologia seria o oposto. É impossível ver o que viria depois.

Tudo isto pode ser um excesso de otimismo ou até meio fantasioso. Uma distinção que surgiu depois de Alan Turing foi entre “inteligência artificial”, que claramente existe nas redes neurais treinadas, e “inteligência artificial genérica”, ainda que “não específica” talvez seja uma tradução melhor.

Se a tarefa de uma rede neural específica é criar uma foto depois de ser treinada para isto, a tarefa de uma rede não especifica é, sem nunca ninguém ter ensinado como, entrar em uma cozinha e fazer café. Isto requer curiosidade para abrir os armários, imaginação para criar uma teoria de como se usa uma máquina de café, entender o que é um café sem que ninguém especifique a proporção de café e água ou se leva açúcar e leite ou não, e acertar tudo isto com muito poucas tentativas em vez de milhões. As redes neurais mais avançadas estão longe disto como um grão de areia em um planeta inteiro.

Uma das razões chave de tudo isto é que além do circuito eletrônico ser muito mais tosco do que as mensagens químicas do cérebro, a arquitetura do cérebro é muito mais sofisticada e eficiente do que uma rede neural. Enquanto uma rede neural funciona “de cima para baixo” com os seus menus, no cérebro a informação sobe desce, vai para frente e para trás, para os lados, e salta de região a região.

Uma descoberta surpreendente deste entendimento, e bem documentada cientificamente, é que no cérebro o cachorro sacode o rabo mas o rabo também sacode o cachorro. Quando nós nos sentimos contentes ou tristes, nossos músculos faciais se contraem em expressões de sorriso ou tristeza, que são iguais em todas as culturas. A descoberta foi que isto também funciona no outro sentido, forçar nossos músculos faciais a uma expressão de sorriso ou de tristeza nos faz sentir contentes ou tristes, com uma eficácia clínica comparável ao efeito clínico de antidepressivos.

Mesmo assim, é um erro subestimar o progresso tecnológico. Nosso cérebro evolui durante milhões de de anos, em um progresso linear, aumentando sua capacidade na mesma quantidade a cada dezena de milênios. O nosso progresso tecnológico está sendo exponencial, os saltos são cada vez maiores, e os progressos que parecem que vão acontecer em um futuro muito distante, de repente, estão aqui.

Entre a ficção e a realidade,  os medos

Os dois enredos mais “manjados” de ficção-científica são a terra sendo invadida por alienígenas e a inteligência artificial que fica muito poderosa e decide matar todo mundo. Estas histórias se repetem porque falam de medos básicos do ser humano, e que existem por boas razões.

Ser invadido e destruído por uma força militar superior foi um medo muito realista durante grande parte da história humana. A história mais arrepiante de invasão alienígena foi a dos exércitos mongóis liderados por Gengis Khan. Eles tiveram um salto exponencial na sua tecnologia militar  o que os deixou tão  superiores ao resto do mundo. Eles literalmente conquistaram e destruíram tudo o que havia desde a China até o leste europeu, incluindo as sociedades mais avançadas daquela época, as do oriente médio. A hegemonia da cultura europeia no mundo de hoje só existe, porque quando a invasão dos mongóis já estava chegando perto da França e  eles haviam trucidado o último grande exército europeu, Kublai Khan (neto de Gengis) morreu. Os mongóis fizeram uma pausa na invasão para se reunirem na Mongólia e escolher outro líder, e terminaram se matando entre eles. A Europa naquela época tinha regredido terrivelmente desde a queda do império romano, mas comparado com as ruínas que os mongóis deixaram no resto do mundo, eles tinham a vantagem tecnológica.

O enredo da inteligência artificial que fica muito forte e decide matar todo mundo é uma combinação de dois outros medos. Um é o medo do grande monstro poderoso. É comum que esqueletos da idade da pedra tenham marcas que correspondem exatamente às presas dos agora extintos tigres dente de sabre. Para os nossos ancestrais o monstro era muito real e muito poderoso. O outro medo nesta história é o medo das coisas novas, que sempre foi parte da cultura humana.

A matemática do medo às coisas novas funciona bem para uma sociedade. Se 97% das pessoas são avessas a elas e 3% tem mente aberta, os 97% mantém o Status Quo, e os 3% se arriscam a inventar coisas novas ou viajar a lugares novos. Se dá certo, as novas tecnologias ou horizontes se incorporam ao Status Quo e toda a sociedade sai ganhando. Se dá errado, 3% da população é uma perda perfeitamente administrável, como demonstrado pela fogueira para Galileu ou a cura gay para Turing. O que há de novo na sociedade de hoje é que o progresso desencadeado por Galileu e acelerado por Turing levou a um Status Quo tāo vasto que somente aprender o básico do conhecimento da sociedade, hoje em dia, requer um investimento em educação entre 20 e 25 anos, enquanto nossos antepassados aos 7 ou 8 anos já tinham toda a base de conhecimento necessária para contribuir com a ela.

O medo às coisas novas é muito grande. Todas as inovações tecnológicas, desde o fogo e a roda, geraram resistência e medo. Este medo sempre foi exagerado. Mesmo a energia nuclear que gerou o arsenal nuclear –  a gente esquece, às vezes, que ele segue existindo -, nos deu a fonte de energia mais segura, limpa e de menor impacto ambiental que existe. Sim, morreram centenas de pessoas nos acidentes nucleares de Chernobyl e Fukushima, mas se comparamos ao número de pessoas que morrem na exploração de petróleo todos os anos, ou mais corretamente, o número de mortes por milhões de quilowatts de energia gerados, a energia nuclear é mais de cinco mil vezes mais segura que o petróleo, e isto sem contar o impacto ambiental.

Eu sou otimista em relação à tecnologia. Ela sempre nos levou para diante, por mais assustadora que pareça ser. Talvez não cheguemos à uma inteligência artificial capaz de fazer café sozinha, mas vendo esta capacidade de criar fotos de pessoas que não existem, não é difícil imaginar uma rede com a missão de “escreve uma sinfonia do Mozart”,ou “escreve um livro do Machado de Assis”. (segue)

 

Paulo Trindade é Gerente Geral da Sure Good Foods USA, e vive em Atlanta nos Estados Unidos. Formado em Administração pela UFSM, tem mestrado em Administração pela Emory University, e tem exercido funções de liderança em empresas de alimentos e Comércio Exterior em vários países,  vivendo na Argentina, Ásia e México.

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