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HOMEM SE SUICIDA APÓS MATAR SEU CAVALO. por ROGER BAIGORRA MACHADO.

Uma crônica de Roger Baigorra Machado.

Foi essa a manchete retumbante na capa do jornal: “Homem se suicida após matar seu cavalo!”. Na banca de revistas, o jornal estava servido bem na frente, ao alcance das mãos curiosas e do olhar preguiçoso das crianças. A Praça do Barão, bem no centro da cidade, com seus bancos e suas sombras, seguiria indiferente ao olhar da Catedral, coisa que sempre fez, a indiferença diante de um cotidiano triste: Mais um suicídio em Uruguaiana. Desta vez, quem se matou foi o seu Florêncio.

E o texto do jornal, como uma moldura, adornaria a cena congelada em seus tons de cinza, o retrato de um homem velho, de olhos abertos, caído sobre o cadáver de seu cavalo, os dois numa mistura indecifrável. Onde começa quem? E o sangue de ambos, descaracterizado de toda vida, seria apenas um borrão cinza na foto em preto e branco. Onde é o sangue de quem?

A notícia da morte de Florêncio Guerra e de seu cavalo não estampou os jornais de nenhuma banca de revistas, também não comoveu ninguém, e nem deveria, a triste história sobre a morte de um homem e seu cavalo é a letra de uma canção. “Florêncio Guerra” venceu a Califórnia em 1991 e é uma daquelas obras de arte que sempre que ouço eu me perco, como se olhasse realmente para um quadro.

A pintura de uma vida que se termina sem alardes, silenciosa em cada sinal, em cada pequeno pedido de ajuda e que se desfaz em contraste com a nossa própria insensibilidade.

Esse texto que você está lendo, eu escrevi há algum tempo, foi num dia logo após ouvir “Florêncio Guerra”, no rádio do carro, voltando para casa depois do trabalho. E, curiosamente, isso aconteceu justamente no dia mundial da prevenção ao suicídio. Uma canção sobre um velho que se suicida em pleno Setembro Amarelo. Um velho gaúcho que se mata no mês Farroupilha. Nada mais tristemente simbólico.

A música de Mauro Ferreira e Luiz Carlos Borges é de fato uma coisa arrebatadora. Florêncio Guerra é um homem de mais idade, possui a história escrita nas suas mãos calejadas da lida, sua vida de sobrevivência são marcas no corpo franzino e baleado, nas cicatrizes riscadas na pele das guerras por onde andou.

Florêncio é um homem que já sofreu de quase tudo em sua existência e que, ao final dela, está sozinho no mundo dos humanos. Totalmente só. Sem filhos para tomar um mate, sem um pedaço de terra para criar uma rês, sem uma companheira para se aninhar num abraço, Florêncio não tem nada. A sua única posse é o seu cavalo, um laço entre o presente e o passado, apertado num nó que ainda mantêm em Florêncio algum sentido de vida: “Um barco em tarde serena”.

Tente imaginar a vida de uma pessoa tão profundamente ligada à vida de um outro ser, por anos e anos, que os laços que se formaram entre ambos são mais do que confiança. A vida de Florêncio Guerra se confunde com a vida do seu cavalo.

A solidão dos mates na beira do fogo de chão só é amenizada pela presença do seu companheiro. Fiel amigo. Entre homens, ao velho, um cavalo foi o que lhe restou de humanidade.

Florêncio bem que podia ser um gaúcho dos dias de hoje, destes tantos que estão por aí, nas grotas, nos fundos de campo, nas taperas esquecidas, nos galpões gelados, cativos no arado das chácaras e das lavouras, solitários e sentados na beira de um fogo, quietos e certeiros na fumaça do fumo queimando, névoa que sobe na mesma cor das barbas brancas de geada. Homens velhos e sozinhos, excluídos em vida das cadeias produtivas do campo.

“Florêncio Guerra das guerras”, quando jovem, era um homem de luta. Atravessou campos de estrelas madrugadoras, campereando animais perdidos, bois que não eram seus. Florêncio viveu quase que sempre morrendo, lutando guerras que não eram suas. Galopou em seu cavalo de arma em punho, defendendo terras que eram de outros. O cavalo, para um gaúcho como Florêncio, era um pedaço da sua vida, a sua sobrevivência e trabalho, seu “parceiro pelas lonjuras, na calma das campereadas”.

A ligação de Florêncio e seu cavalo é de uma força que sintetiza a história do gaúcho fronteiriço. Sem o cavalo, o gaúcho não seria esse híbrido de índio e europeu, rebento de tantos estupros e assassinatos. Um tipo que a contrapelo se ergueu, num esforço adaptativo e contínuo, contrariando a lógica da dominação imposta pelo colonialismo. O gaúcho deveria estar morto, não fosse o cavalo.

A força que o gaúcho tinha estava justamente em não ter nada. Sem lei. Sem pátria. Sem rei. Sua fraqueza, talvez a única: o cavalo. Na canção, a vida do cavalo representa todos os outros cavalos da vida de Florêncio.

Luiz Carlos Borges e Mauro Ferreira, logo na primeira estrofe, começam nos apresentando uma contradição que destrói a imagem inaugural do símbolo nativista:

“Florêncio afiou a faca para sangrar seu cavalo”.

Como assim? Florêncio vai matar o seu melhor amigo? Um gaúcho sacrificando o próprio cavalo?

É que Florêncio, sobretudo, era um peão de estância, e ao que tudo indica, velho e “sem serventia” para as lidas do campo. Certamente, deveria de viver de favor nas terras de algum caudilho, em troca, algum pequeno serviço ao redor das casas, uns causos, algum tipo de agradecimento herdado em troca da vida do passado.

Romanticamente – e não há nada de errado com isso – o tradicionalismo nos faz crer que a relação entre o gaúcho – o peão – e o estancieiro – o caudilho – é baseado sempre numa relação afetiva. Acontece que não é sempre assim. Trata-se, basicamente, de uma relação de produção. Uma relação de classe. Uma relação de desproporção que se dá, tendo de um lado o dono das terras, e de outro, o dono da força de trabalho. Ora esta relação se mantinha pela mão de obra barata, que trabalha por teto e comida, ora como força paramilitar, armado em defesa dos interesses do patrão. E por fim, como uma relação de favor, ora como algo descartável, pois se tornou inservível.

Florêncio jamais poderia se “aposentar”, chegar na velhice e ter um lugar para ficar não fazia parte de nenhum planejamento. A indenização pelos anos de dedicação era um pelego no galpão. Tanto na canção como na vida real, muitas vezes, assim é que muitos velhos são tratados em nossa sociedade. Pessoas que precisam viver a base de favores, num canto, num quarto.

Em tempos onde o suicídio é uma doença que ainda assola Uruguaiana e que precisa ser encarada como uma questão de saúde pública, a história de um velho que se mata diante de um mundo que não gosta dos velhos é de um assombro aterrador.

Na canção, a voz de Luiz Carlos Borges nos leva até o dia em que o patrão de Florêncio chama o velho e faz um pedido absurdo. Ele diz para que Florêncio que dê “fim no matungo”. E não é um pedido, é uma ordem: “Quem já não serve para nada, não merece andar no mundo”, sentencia o caudilho.

A frase do patrão afundou no peito do velho Florêncio, se o mundo é apenas para os que possuem alguma serventia, o que ele fazia ali? E em silêncio ele ouve a ordem do patrão, levanta-se e vai afiar uma faca “como quem pega uma estrada”. E que estrada…

Imagino o velho Florêncio, caminhando do galpão até sua faca, guardada na bainha do lado do mocho, o tempo lento, o vento quente, o bem-te-vi dando rasante enquanto o pilincho, no alto do angico, faz a sinfonia do seu canto o tom do cortejo, era só a vida passando com um velho de faca na mão. Depois, vejo Florêncio agachado diante de uma pedra, passando a lâmina da sua faca, indo e vindo, sempre em silêncio. Afiando a faca e pensando no que teria acontecido? Quando foi que tudo mudou? Ele e seu cavalo, antes tão importantes, agora sem serventia no pequeno mundo do dono da estância. E por algumas horas, ninguém mais viu o velho Florêncio. Quem sabe, pensaram que deveria de estar no galpão, deitado, dormindo.

A canção é de um força única, descreve o momento de desesperança de um homem diante de um mundo que ignora completamente tudo o que ele fez. E ela termina com estes versos:

“Acharam Florêncio morto por cima do seu cavalo.

Alguém que andava no campo viu um centauro sangrado.

Caídos no mesmo barro. Voltando para a mesma terra

que deve tanto ao cavalo e tanto ao Florêncio Guerra”.

Florêncio Guerra me surgiu como uma poderosa alegoria para pensarmos a forma como tratamos os nossos velhos e, principalmente, todos aqueles que não se sentem “úteis” diante de um mundo produtivista e consumista.

Precisamos ver com alteridade e olhar com mais paciência, com maior cuidado. Olhar nos olhos daqueles que se sentem como estrangeiros dentro de suas famílias, desterrados em suas próprias casas, excluídos nos seus empregos, marginalizados nas próprias escolas.

É necessário atenção para percebermos os detalhes, os tons de tristeza, os sons dos pedidos de ajuda. Existem tantos Florêncios por aí, afiando facas, vagando sozinhos, sentindo que não são úteis, sofrendo devido as suas sexualidades, suas cores de pele, suas idades, seus ritos religiosos, seus cabelos, homens e mulheres que são submetidos ao silencioso signo das violências diárias do caudilhismo moral. Recebendo ordens absurdas.

Devemos ouvir mais, dar espaço para que o peso da vida se reparta na toada de uma boa conversa. Falar não é fácil, mas é preciso e o errado é a gente não perguntar. Acaba que este texto não é sobre o Florêncio ou sobre um cavalo, ele é sobre todas as pessoas que tiraram a própria vida nos últimos anos aqui em Uruguaiana. E foram muitas. Este é um texto sobre quando uma música é capaz de nos fazer pensar além, vagar noutras coisas, e eu me peguei  pensando numa notícia, destas de grupos de Whats, que dava conta de que mais uma pessoa havia desistido. E sem querer, lembrei-me deste texto sobre Florêncio Guerra.

E acreditem, existem muitos “Florêncios” por aí, afiando suas facas, caminhando estradas, parados diante dos seus cavalos, pensando em desistir, depois de tanto ouvirem só estupidez e ódio.

Florêncio Guerra, no fim, não se matou, eu acho que ele foi morto pela insensibilidade. Nada de muito diferente de hoje em dia.

Conversar ajuda: Centro de Valorização da Vida – Disque 188.

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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