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“GIRL”: BELO E COMOVENTE DRAMA BELGA DISPONÍVEL NA NETFLIX por Daniela Nascimento

O cinema independente europeu costuma dividir opiniões. Há aqueles que não o apreciam justamente por conta de sua rigidez narrativa e por seu distanciamento das fórmulas hollywoodianas, tão presentes em tempos que filmes de super-herói dominam as bilheterias mundiais.

Entretanto, para outros, é essa obstinação em transpor para as telas o lado mais duro da trajetória de suas personagens o que cativa. Em “Girl”, o diretor estreante Lukas Dhont é eficaz em mostrar de forma delicada e inflexível, quando necessário, a jornada de Lara (Victor Polster), uma adolescente transexual de quinze anos, que se muda com seu pai Mathias (Arieh Worthalter) e irmão mais novo (Oliver Bodart) para uma nova cidade. Lá ela começa a estudar em uma das mais famosas escolas de dança da Bélgica. No entanto, a menina encontra dificuldades para adaptar-se aos movimentos executados nas aulas por conta de sua estrutura óssea e muscular, pois nasceu no corpo de um menino.

Uma das características que, particularmente, chama atenção nos dramas europeus é sua capacidade de traduzir o que é a vida. Nem sempre algo acontece, nem sempre quando achamos que o final chega, ele vem acompanhado de coisas boas e positivas. E este é um dos trunfos do trabalho de Lukas Dhont, que também assina o roteiro. O cineasta belga se aproxima muito da linguagem documental para contar a história de Lara. Na verdade, é o seu olhar que se apropria do documental para dar a obra um teor íntimo, já que ele oscila entre a sensibilidade e a crueldade.

A sensação que a construção fotográfica do filme nos passa é de que estamos invadindo o espaço de Lara e acompanhando descaradamente seus momentos pessoais, aqueles em que a personagem se esconde dentro do casulo à espera do instante certo para desabrochar. Talvez, esta metáfora seja a que melhor descreve a condição da protagonista de “Girl”: ela se esconde do mundo enquanto aguarda e se prepara para se tornar aparentemente quem realmente é.

Desse modo, o olhar de Lukas Dhont torna o público uma testemunha das dores físicas e emocionais da adolescente.  Aos poucos, vamos adentrando pelas brechas da porta de seu quarto e observamos consternados às reações silenciosas e violentas ao desprezo gerado pela constatação de fisicamente não se sentir apta.

Lukas Dhont aproveita essa atmosfera de aproximação e intimidade para transformar o ato de contemplar a vivência da personagem em uma agressão. O incômodo de Lara consegue quebrar a quarta parede e se instalar do outro lado da tela. Fotografia, iluminação e trilha sonora são importantes para a ambientação e angústia constante em seguir a rotina de Lara.

Os planos fechados nela, as cores a identificar seu estado de espírito e o som conduzem o espectador a quase tocar o seu sofrimento. Não é preciso palavras ou diálogos para compreender o quão dolorosa é a situação que a personagem se encontra e as escolhas que faz para sair de sua condição. E a dor que se estende a nós é semelhante a que cerca o pequeno núcleo familiar de “Girl”.

Esse norteamento que torna o filme uma referência na temática. As decisões narrativas dão um tom sensível à obra e sem a necessidade de maniqueísmo. Os dilemas internos de Lara se expandem para discussões maiores e com maior abrangência: eles expõem o fator humano. Lara é uma menina como outra qualquer e “Girl” se preocupa em apresentá-la desta forma e a transformar em um indivíduo que está a procura de sua identidade.

Outro ponto importante do roteiro é colocar Lara em diversas situações do cotidiano, como ir a festas ou parques, exterminando o preconceito sobre pessoas trans, normalizando algo que não deveria ser motivo para repulsa social. Ademais, a narrativa não precisa apelar para uma questão violenta ou que aborde a intolerância, muito pelo contrário. Seu foco é a obsessão de Lara pela cirurgia e pela dança, colocando esses dilemas frente a questões pertinentes a todos adolescentes, como se apaixonar por alguém. Basicamente, o filme se trata de um amadurecimento com a questão da transexualidade, oferecendo um prisma tridimensional sobre o tema cirúrgico por conta da fixação de Lara.

A jornada de Lara é ainda mais deslumbrante devido ao empenho de Victor Polster. O ator e bailarino belga conquistou o prêmio de interpretação da seleção “Un Certain Regard” no Festival de Cannes em 2018 pelo trabalho. Ele dá a personagem uma carga dúbia. Sua fisionomia nunca está plena, parece sempre a espera da próxima dor, mesmo que esteja pronto a aceitá-la.  Sua entrega para cenas emocionalmente difíceis como o ato final e a descoberta do que faz com seu corpo para dançar na companhia de balé é digna de aplausos.

Merecedora de destaque também é a interpretação de Arieh Worthalter que se doa e transpõe veracidade na troca de embates e carinho entre o pai e a filha. Apenas confirmando um dos fundamentos da magnitude da estréia do cineasta belga.

Muitos realizadores que procuram retratar a temática escolhida por Lukas Dhont deveriam se inspirar em “Girl”. O filme é sensível e afetivo, mas não deixa de ser tangível e cruel. Uma produção de profunda beleza e apuro estético. “Girl” está disponível no catálogo da Netflix e é, sem dúvida, um filme que precisa ser visto e sentido.

 

 

Daniela Grieco Nascimento e Silva

Doutora em Educação (Linha de Pesquisa: Educação e Artes – PPGE/UFSM). Licenciada em Pedagogia – Mestre em Educação. Diretora da ONG Royale Escola de Dança e Integração Social. Integrante do GEEDAC (Grupo de Estudos em Educação, Dança e Cultura).
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