Na história da música pop o que sempre sobressaiu, tornou-se lenda (não uso mais a palavra mito por conta da vala onde o termo foi jogado) são os excessos, as brigas, as puxadas de tapete e traições entre todos os que cercam um artista ou banda.
São contados nos dedos aqueles cujas trajetórias são imbuídas de uma aura a respeito da amizade. Incluo aí, num fluxo rápido de memória, o pessoal do Clube da Esquina, a Legião Urbana, o Rush, Grateful Dead…enfim, os relatos são mais de bandas cujos integrantes se odiavam ou mal se suportavam. Vide Deep Purple, Oasis, Smiths, Ira! e muitos etc.
Mas nada se compara, nesse quesito, ao que circunda os Beatles. Sobre eles paira a ideia de um grupo de jovens oriundos de classes baixas da sociedade, condenados a uma mediocridade de vida, que se unem, criam juntos, formam um elo de camaradagem e cumplicidade, crescem e depois de adultos se separam. Sobre essa banda há uma entidade mística encaixada na palavra ‘amizade’. No fundo ninguém quer saber se os integrantes do Pink Floyd, do Led Zeppelin, do Black Sabbath eram ou não amigos.
Nos Beatles isso é matéria recorrente.
E é essa, entre outras, a atração que o documentário Get Back, montado agora por Peter Jackson, carrega em quem, minimamente, tem alguma gota de paixão pela música e pela entidade Beatle.
É isso que torna fascinante a maratona de mais de sete horas de documentário- e o pior, é que nos sentimos meio vazios depois querendo um pouco mais ou começar tudo de novo.
Há muitas leituras a se fazer sobre o que as imagens nos mostram. E nem vou perder meu tempo tentando explicar o filme, resumi-lo, contar do que se trata. Enfim, nada técnico, pois não foi isso que me capturou na longa obra.
Claro, há a emoção de estar presenciando, extasiado, as primeiras construções do que viriam a ser canções como Something, Get Back, Let it Be, I’ve got a feeling, Dig a Pony. Nesses momentos, os olhos umedecem. Sim, os Beatles carregam esse poder.
Mas é nas sutilezas da troca de olhares cúmplices, nos sorrisos, na interação musical, que percebemos estar diante de uma rara combinação de talentos que se desafiavam a crescer e crescer, mas tendo esse elemento, resumível a ‘nos conhecemos tanto, sabemos quem somos’. É lindo isso.
Usar a palavra ‘lindo’ soa piegas. É. Será. Mas é adequada aqui. Presenciamos os momentos em que a faísca acende e a banda mostra porque é tudo o que se diz dela. E isso se resume totalmente na fugaz apresentação no terraço do prédio. Quando tudo está pronto e vem aquele um, dois e…a mágica acontece. Quando eles se olham e sorriem. Quando Lennon erra a letra de Don’t let me Down e olha de soslaio para Paul e o rosto de ambos se iluminam cúmplices.
É sobre essa cumplicidade, sobre esse ritual de amizade, que gera atritos, competição de criatividade, desentendimentos, mas muito afeto, que somos levados a pensar. A sentir.
É comovente ver Paul e Ringo, sentados no estúdio, esperando a chegada de John, na incerteza da volta de George à banda. Paul diz que a banda provavelmente acabou. Os olhos dele tornam-se translúcidos de lágrimas que estão ali à beira de escorrer, enquanto ele mira um vazio e permanece segundos em silêncio.
É belo ver o retorno de George e ele, sendo ouvido, empolga-se a dar sugestões ao arranjo de Get Back. É curioso notar que, mesmo tendo as maiores desavenças com Paul, é a ele que George recorre para sanar dúvidas e ouvir sugestões na composição de Something.
E é empolgante ver a alegria genuína de Billy Preston, o pianista que chega e ilumina as sessões, a ponto de os outros cogitarem inseri-lo como um quinto beatle. E é bom ver que muitas das narrativas sobre clima tenso com a presença de Yoko não se sustentarem muito em todo o documentário.
Certa vez, a jornalista Ana Maria Bahiana escreveu sobre os Beatles, numa revista sobre as dez maiores bandas de todos os tempos. No texto sobre os Beatles ela dizia algo – não há como reproduzir fielmente- sobre o fato de se ainda hoje adolescentes do mundo inteiro se trancarem em um quarto ou uma garagem para fazer música, isso se devia a quatro jovens que tinham tudo para ser perdedores na vida, mas que se conheceram, tornaram-se amigos e uniram forças para enfrentar juntos o mundo.
Em Get Back o que vemos é um pedaço do fim dessa jornada. Cada um ali se sente forte o suficiente para enfrentar esse mundo sem a ajuda dos antigos amigos. Cada um tem sua própria força agora. Mas lá no fundo, é como se eles soubessem que, mesmo assim, nunca serão tão fortes quanto foram e tem a consciência de que crescer e amadurecer, é perder uma inocência jamais reconquistada, criar novas cascas e peles e deixar para trás o que um dia foi sua própria essência.
O passado se torna uma foto amarelada, em muitos casos. No deles, um punhado de canções.
Essas, ao contrário de tudo, permanecerão sempre nossas amigas.
Get Back nos lembra isso.
ISMAEL MACHADO
Vive rodeado por dois gatos e duas gatas e muitos livros na estante. Ainda quer testemunhar a volta por cima do Vasco da Gama, enquanto planeja o fim dos tempos sombrios que nos esmagam. Resistir é a palavra, transposta em algumas obras que chegaram a telas grandes e pequenas. Muitos acreditam que deus salva, ele não. Mas que o rock alivia, ah, disso ele não tem dúvida. Sopa quente em dia frio é a melhor pedida e veria quantos shows de Pearl Jam e REM pudesse na vida, se possível com um livro de Caio Fernando Abreu à espera