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Fascismo como Fenômeno Histórico-Mundial das Crise do Capitalismo, Não Só um Caso Italiano – DIORGE KONRAD

Fuga dos Integralistas, expulsos da Praça da Sé - SP pelos antifascistas. Fonte: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/analise/53547/a-batalha-da-praca-da-se-ou-quando-o-povo-pos-os-fascistas-para-correr-em-sao-paulo. Acesso em 16 jun. 2020.

Artigo escrito especialmente para Rede Sina

 

Diorge Alceno Konrad

(Professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP. Correio Eletrônico: gdkonrad@uol.com.br)

(opção de leitura -revista digital)

 

Passagem desbotada da memória

Das nossas novas gerações

(Francis Hime e Chico Buarque, Vai passar)

 

Leandro Konder, em Introdução ao fascismo, indicou que este era um dos “fenômenos mais significativos do nosso século” (3 ed., 1977, p. 3). Mesmo que o saudoso filósofo tenha escrito no século passado, esta assertiva continua atual, pois ali ele já indicava que o tema fazia parte de uma “importante batalha teórica” que vinha sendo “travada há várias décadas no interior da literatura sobre o fascismo” que ela, provavelmente, continuaria “ainda por muitos anos” (idem, p. 4).

Konder estava certo. Ela sobreviveu no século XXI. Tanto no senso comum de esquerda como de alguns setores liberal-democráticos, mesmo que tão negada pelos que ainda professam sua ideologia.

Explico-me: desde a primeira experiência histórica que conhecemos de fascismo, na Itália dos anos 1920, assumida como tal pelos próprios protagonistas, Benito Mussolini e seus seguidores, poucos Mundo afora se diziam, de fato, fascistas. Portugal, logo em seguida, com seu Estado Novo, seria salazarista, enquanto a Espanha, pós-Guerra Civil da década de 1930, seria franquista. Desde já, adianto a centralidade do argumento: entender o fascismo fora dos argumentos que o restringem à Itália liderada por Mussolini, mesmo que dele tenha sido a designação na década de 1910 sobre o termo, ao relacionar os feixes (fascios) da Roma Antiga dos césares e os símbolos dos martelos entrelaçados com varas amarradas ao seu cabo, representando o poder estatal e a unidade do povo em torno de seus líderes. Estes símbolos, assim como a suástica do nazismo, foram relidos e reconfigurados ao longo da História e mostram apenas a aparência do fenômeno fascista contemporâneo!

Integralismo, um Tipo de Fascismo Brasileiro

É muito cedo para sair cantando vitória:
O ventre que gerou a coisa imunda continua fértil!

                                                         (Bertolt Brecht)

No Brasil, como movimento criado em 1932, Plínio Salgado e suas milícias passaram a chamarem-se integralistas, sempre negando que repetiam as diretrizes da experiência em curso entre os italianos. Sim, lembremos que depois da Marcha Sobre Roma, em 1922, o fascismo acendera ao governo italiano, conciliando num primeiro momento e, entre 1925-1926, implantando a Ditadura. Assim, quando aqui foi criada a Ação Integralista Brasileira (AIB), em outubro de 1932, a Itália já tinha consolidado seu novo regime político.

Como já foi defendido em dissertação de mestrado, ao se abordar a Aliança Nacional Libertadora (ANL), criada no Brasil em 1935, como uma frente anti-imperialista, antilatifundiária e ANTIFASCISTA, o integralismo entusiasmava setores conservadores da pequena burguesia em nosso País (1994, p. 68) e, desde a sua criação, tranquilizava a burguesia brasileira (CARONE, 1977, p. 215), ao menos até o putsch que tentou derrubar Getúlio em maio de 1938. Assim como no fascismo europeu, esta pequena burguesia, subsumida por uma contradição intrínseca na qual de um lado, se colocam “com a condição de proprietários, pois detêm o controle dos recursos produtivos do qual depende seu negócio (seja ele uma loja, restaurante, serralheria, oficina ou uma pequena propriedade rural)”, mas, de outro, “ao contrário da grande burguesia e assim como os trabalhadores, tiram a sobrevivência do seu próprio trabalho (e na maior parte dos casos, também do trabalho de sua família)”.

Esta contradição fundamental de classe intermediária da pequena burguesia, de acordo com Calil, a impossibilita de construir “um projeto de sociedade próprio e autônomo”, situação que determina a sua ação política, a qual “se dá necessariamente atrelada a uma das classes fundamentais – burguesia e trabalhadores”. Para a pequena burguesia, assim, “o fascismo é relevante precisamente porque permite historicamente colocá-la a serviço da grande burguesia, e mais ainda, por conformar tropas de choque em defesa de seus interesses” (CALIL, 2018a).

Penso que esta pequena digressão sobre o integralismo brasileiro na década de 1930, também ajuda a compreender um pouco mais o fascismo brasileiro na atualidade. Sim, o integralismo, como apontou mais recentemente Odilon Caldeira Neto, seguindo a tradição de Hélgio Trindade (2 ed., 1979), mesmo que “não tenha sido o primeiro movimento de cunho fascista surgido no Brasil, foi o que obteve maior apoio e adesão popular” (2014, p. 15).

Desde a criação da ANL, mesmo que negada pelos integralistas, os aliancistas também os definiam como um fenômeno que fazia parte do “fascismo internacional’, “sectários do imperialismo” (assim chamados em um telegrama do Diretório Estadual Provisório – DEP -, em solidariedade à Direção Nacional Provisória – DNP -, depois de um atentado que assassinou o operário aliancista Leonardo Candú, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Cf. Diário de Notícias, Porto Alegre, edição de 12 de junho de 1935, p. 3).

Por exemplo, já na primeira manifestação da ANL no Rio Grande do Sul, em 10 de junho de 1935, em um ofício assinado por Apparício Córa de Almeida, então secretário geral do DEP, ao esclarecer alguns pontos de orientação política e de organização dos aliancistas, defendeu que o Integralismo era “a forma brasileira do fascismo” (Correio do Povo, Porto Alegre, edição de 11 de junho de 1935, p. 16).

O historiador Edgard Carone chegou a afirmar que, no Rio Grande do Sul, onde o integralismo cresceu muito nas zonas de imigração colonial, “o objetivo maior da ANL” era o “de luta contra o integralismo” (1991, p. 190). Foi justamente naquele contexto que, em 24 de julho, os Diários Associados remeteram telegrama a Flores, pedindo sua opinião sobre o integralismo diante da liberal democracia. Imediatamente o Governador do Estado respondeu com outro telegrama, afirmando ter “opinião conhecida sobre o extremismo da direita e da esquerda”, mas que “muito mais grave” era “a ação da ANL”, que não conseguia “esconder propósitos nitidamente subversivos”. Mas, quanto a ele, declarou que, se “visse forçado a optar por uma dessas correntes de pensamento social e político”, se “inclinaria em favor do integralismo”, por ele pregar e defender “as ideias culminantes de Família, Pátria e Religião” (Diário de Notícias, Porto Alegre, edição de 25 de julho de 1935, p. 1).

A resposta de Flores da Cunha é um demonstrativo de como o Governo via a ANL e a AIB. As simpatias pelos integralistas, se ele fosse necessário são evidentes (KONRAD, 1994, p. 271). Por sua vez, no Rio Grande do Sul da década de 1930, mesmo que muitos católicos tivessem aderido ao integralismo, Dom João Becker, arcebispo metropolitano. que elogiava Mussolini desde os anos 1920, depois de incentivar a criação dos Círculos Operários, organizados para afastar o operariado do marxismo, em 18 de julho de 1935, criou a Ação Social Brasileira (ASB), ao ponto de Edgard Carone afirmar que a ASB, de D. João Becker, foi “o último movimento de origem fascista que surge durante o apogeu do integralismo, almejando iniciar uma ação violenta contra o comunismo e a democracia” (1976, p. 203). Assim, apesar da tentativa de negar uma vinculação com o “extremismo” de direita (integralista), a ASB também se centrava, além do combate ao comunismo, na defesa de três pilares básicos da sociedade cristã: Pátria, Família e Religião, as mesmas defendidas pelos integralistas, com poucas diferenças em seus ideais programáticos. Tanto que, no Manifesto da ASB, divulgado nos principais jornais de Porto Alegre, em 21 de julho de 1935, ao afirmar que a questão social não era “uma simples ‘questão de estômago’, como afirmaram Marx e Engels” e que diante “do conflito milenar de duas filosofias da vida: o espiritualismo e o materialismo”, a “neutralidade, em face dos dois sistemas sociais acima apontados seria criminosa (…)” (Correio do Povo, Porto Alegre, edição de 21 de julho de 1935, p. 17; Jornal da Manhã, Porto Alegre, edição de 21 de julho de 1935, p. 5; A Federação, Porto Alegre, edição de 22 de julho de 1935, p. 3 e; Diário de Notícias, Porto Alegre, edição de 21 de julho de 1935, p. 20). No programa, a ASB defendia que a solução dos problemas sociais e econômicos, de acordo com os “postulados da sociologia cristã”, era o combate a toda atuação direta ou velada do comunismo, bem como a “infiltração do imperialismo soviético na vida nacional” e a “remoção dos males criados pelo conflito entre capital e trabalho e explorado pela propaganda comunista” (Idem).

No Brasil de 1935, a simpatia de integrantes do Governo Vargas pelo nazismo e pelo fascismo era evidente (várias das ideias aqui apresentadas a seguir estão em KONRAD, 1994, p. 292-305). A AIB crescia cada vez mais, chegando em torno de duzentos mil inscritos. No entanto, o Ministro de Guerra, Goés Monteiro, afirmava que o “esforço de expansão” devia “ser respeitado”. Marly Vianna considera que se deve muito ao integralismo a grotesca campanha anticomunista que ganhou corpo no Brasil de 1934 em diante, e que foi encampada pelo governo (1992, p. 107-8). Em decorrência, não foram poucos os conflitos de rua entre aliancistas e integralistas, como em Santa Maria, muito deles acontecidos na frente do Ex-Cine Glória, na Rua Ângelo Uglione, quando se enfrentavam depois de comícios de ambos no interior do cinema. Eram nestes momentos que, se os primeiros pediam “Pão, terra e liberdade”, enquanto os outros evocavam a “Morte à democracia liberal“ (VIANA, In. TAVARES: 1985, p. 29).

No caso brasileiro, o integralismo, que recebeu o nome de “fascismo caboclo” no clássico de Hélgio Trindade, Integralismo, o fascismo brasileiro na década de 30, teve seu crescimento facilitado diante da divisão das frações da classe dominante e pela disponibilidade ideológica das camadas médias. Com o II Congresso Nacional da AIB, em Petrópolis, em março de 1935, os integralistas optaram pela conquista do poder através da via institucional, estabelecendo uma maior aproximação com a burguesia e com os setores latifundiários, bem como com o catolicismo conservador. Por sua vez, como já definiu Marcos Del Roio, a dificuldade do proletariado que aderiu ao marxismo, em compreender a natureza do integralismo e a forma de enfrentá-lo, na época, facilitou a sua expansão no Brasil (1990, p. 230 a 232).

No caso brasileiro, uma característica fundamental do fascismo integralista foi o seu crescimento apoiado na Igreja, em especial na Igreja Católica. Porém, essa situação não se restringia exclusivamente ao Brasil. Eric Hobsbawm defendeu que, na verdade, “na América Latina, a direita tradicional (especialmente onde se apoiava na Igreja) simpatizava facilmente com a direita europeia, cada vez mais levada a aliar-se com o fascismo”, sendo que “aqui e ali nasceram também movimentos de extrema direita baseados no modelo fascista, como … os integralistas de Plínio Salgado no Brasil (…)” (1987, p. 267).

No entanto, no Brasil, se houve a defesa pelo integralismo da Família, de Deus, da Pátria e do corporativismo sindical, além do ataque ao semitismo, idêntico ao da Europa, o maior destaque dava-se ao anticomunismo e à luta ideológica contra o socialismo. Hélgio Trindade aponta três maneiras com se dava este processo na realidade brasileira: a mais comum, na qual socialismo e liberalismo eram considerados expressões de uma mesma concepção filosófica: o materialismo; na segunda, na qual o socialismo era uma concepção ligada às doutrinas “fragmentárias” do século XIX e que foram superadas pela experiência fascista “integral” e; a terceira, através de um anticomunismo primário, deveria provocar o medo ao comunismo entre os militantes integralistas (1979, p. 239).

O primeiro item foi bastante utilizado pelos doutrinários integralistas, tentando confundir o operariado e os setores médios, ao colocar num mesmo plano tanto os comunistas como os liberais, tanto os capitalistas quanto os comunistas. Plínio Salgado dizia que o materialismo histórico era “o código pacato da burguesia capitalista” (1933, p. 12). Gustavo Barroso se referia ao liberalismo e ao comunismo como “doutrinas de traição nacional e de decomposição social, destinadas a destruir a religião, o princípio de autoridade e a ideia de pátria” ([s./d.], p. 41). No manifesto de Outubro de 1932, o documento afirma que o integralismo buscava “livrar o operário e a pequena burguesia da indiferença criminosa dos governos liberais. Salvá-los da escravidão do comunismo” (Ver a integra do Manifesto, em edição reeditada por integralistas redivivos, em 1982, em comemoração alusiva ao cinquentenário do Movimento).

Centrado no anticomunismo, no Rio Grande do Sul, apesar da AIB ter surgido mais tarde do que no centro do País, já nas eleições de 1934 obteve votação expressiva em 44 dos 83 municípios que existiam no estado, tendo boa aceitação em Novo Hamburgo, Cachoeira, Boa Vista do Erechim, Caxias e Montenegro (TRINDADE, 1980, p. 217-218). A expansão do integralismo na zona colonial, justamente onde a ANL não conseguia penetrar, com exceção de São Leopoldo, fazia com que o Governo de Flores da Cunha transigisse como o Movimento, a exemplo do Governo Vargas, deixando as sedes da AIB abertas e com atividades acontecendo normalmente, com a liberdade de agir “dentro da ordem”, realizando passeatas, comícios e encontros.

Diante dos acontecimentos em Petrópolis, que resultaram na morte de Leonardo Candú, em 18 de junho, a AIB rio-grandense lançou um “A pedidos” contra a Aliança, intitulado “A ANL é uma máscara do comunismo”, afirmando que o integralismo era “a única tábua de salvação que as famílias brasileiras” encontravam para “se livrarem do comunismo” e que, por isso, os chefes de família e os que amavam a Deus e à Pátria deviam “decidir-se pelo integralismo” (Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 6).

No mesmo dia, na edição do Correio do Povo (p. 9) outro “A pedidos” da AIB foi publicado, sob o título “Falsos Nacionalismos – a Internacional Comunista ordenou que em todas as pátrias o movimento comunista afivelasse a máscara do nacionalismo”. O manifesto era enfático contra ANL, afirmando que a Internacional Comunista determinara aos seus adeptos que adotassem, por tática, a “propaganda nacionalista e de combate ao ‘imperialismo’”. Diante da tática aliancista, que disfarçava o comunismo, segundo os integralistas, entre a AIB e a ANL não podia haver neutralidade, pois ou se admitia “as ideias de Deus, Pátria e Família” ou se fazia o jogo dos comunistas.

O dualismo do documento procurava dividir a sociedade rio-grandense em defensores do comunismo ou aliados do integralismo, mesmo assim as frações da classe dominante daqui buscavam na AIB os mesmos argumentos para combater a ANL. Por outro lado, numa atitude de reciprocidade a AIB continuava a publicar livremente seus manifestos contra a Aliança.

Em 23 de junho, mais um “A pedidos”, denominado “Pão, Terra e Liberdade” é publicado pela AIB do Rio Grande do Sul. Utilizando-se da palavra de ordem da ANL, os integralistas usaram o anticomunismo para afirmar que na Rússia um operário precisa trabalhar 17 horas para obter o alimento que um operário norte-americano obtinha em 4 horas; que na União Soviética (sempre chamada por eles de Rússia), a terra era do camponês, mas a colheita pertencia ao Governo e, que lá a liberdade não existia na porque acabava de ser decretada a pena de morte para crianças acima de 12 anos. Assim, com fake news extemporâneas, conclamava os operários a abrirem os olhos diante da ANL, a qual conclamava: Operários! Vosso lugar é com os vossos companheiros que AOS MILHARES já estão no INTEGRALISMO. Só o INTEGRALISMO dará PÃO, TERRA e LIBERDADE. Sem DEUS não há justiça, logo não há pão. Sem PÁTRIA não há direitos para os nacionais, logo não há terra. Sem FAMÍLIA não há dignidade humana, logo não há LIBERDADE. SÓ O INTEGRALISMO DARÁ PÃO, TERRA E LIBERDADE, EM NOME DA JUSTIÇA DE DEUS, DA HONRA DA PÁTRIA E DOS DIREITOS DA FAMÍLIA! (Correio do Povo, Porto Alegre, p. 10).

Assim, o anticomunismo dos integralistas era primário e mitificado, uma tática recorrente dos fascistas ao longo da História, mas assustava diferentes segmentos sociais, pois trabalhava em cima do atraso político e do sentimento religioso, sempre insistindo com o argumento de ser um movimento original brasileiro. Tanto que, na conjuntura do fechamento nacional da Aliança (o decreto viria em 11 de julho de 1935, assinado por Getúlio Vargas, seis dias após Luiz Carlos Prestes ter defendido “Todo o Poder a ANL!”), em 16 de julho, o Correio do Povo (p. 7) divulgou um artigo de Plínio Salgado, “Nós e os escravos de Stalin”, mandado publicar pela AIB, afirmando: “o comunismo é uma cópia servil. O integralismo é uma doutrina original (…) comunismo precisa ocultar-se sob a máscara do ‘nacionalismo’. O integralismo não usa máscara: fala claramente o que quer”.

A estratégia com que a AIB conseguia falsear o caráter antifascista da Aliança, ocultando o seu próprio fascismo, com discurso paralelo das classes dominantes brasileiras, auxiliava na repressão ao movimento aliancista de frente ampla (lembramos que a ANL era composta, além de socialistas, reformistas, anarquistas e comunistas, de liberais radicais) e no afastamento das massas do quadro aliancista, sobretudo quando a Lei de Segurança Nacional (LSN), editada em abril de 1935, enquadrou a entidade como praticante subversiva de crimes políticos e sociais, estabelecendo a sua ilegalidade. Em contraposição, o combate integralista à ANL fazia com que a AIB se fortalecesse, como no seu Primeiro Congresso Provincial do Rio Grande do Sul, acontecido nos dias 20 e 21 de outubro de 1935 em Porto Alegre, com ampla liberdade de atuação e anuência do governo de Flores da Cunha aos integralistas.

Dali em diante, enquanto os aliancistas seriam cada vez mais perseguidos, o integralismo vai se tornando um aliado constante da ampliação da repressão, por exemplo, dando todo o apoio (ajudando até a formular) ao falsificado Plano Cohen, justificativa para o Golpe do Estado Novo, igualmente dando sustentação ao mesmo, a tal ponto que, depois do 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas convidou Plínio Salgado para ser seu ministro da Educação e Saúde, o que era pouco para as pretensões do “Chefe”. Mesmo assim, com a ilegalidade da AIB, decretada ainda antes do putsch, o movimento seguiu organizado na Associação Brasileira de Cultura (ABC).

Por sua vez, como já demonstrou a historiadora Glaucia Vieira Ramos Konrad, o próprio Estado Novo no Brasil, copiando o nome do modelo salazarista português, “surgiu num período em que o fascismo estava em ascensão no cenário internacional”, uma situação que “favoreceu sua implantação” (1994, p. 61). Diga-se de passagem, boa parte dos cânones ideológicos do Estado Novo tiveram inspiração integralista, mesmo que a AIB tivesse sido extinta e os seus militantes fossem perseguidos após a tentativa de derrubar Getúlio, em 1938, bem como seu ordenamento jurídico-político, sustentado por uma Constituição “corporativa e centralizadora” que “colocou em prática várias medidas inspiradas nos fascismos italiano, português e polonês e no nazismo alemão”, mesmo que seus principais ideólogos como Alberto Torres, Azevedo Amaral e Francisco Campos negassem este caráter e o nomeassem como “autoritário” (idem, p. 62). Anticomunismo, abolição de partidos políticos, abolição do Parlamento, terrorismo de Estado praticado pela polícia política, glorificação do líder através de intensa propaganda ideológica e censura aos meios de comunicação e às expressões artístico-culturais e estrutura sindical corporativa são todas características levantadas por Glaucia Konrad para denominar o Estado Novo de Estado Autoritário de características fascistas (idem, p. 63-4 e 67).

E é este integralismo que voltará a cena histórica como organização política através do Partido de Representação Popular (PRP), novamente liderado por Plínio Salgado (CALIL, 2001), até 1965, quando o Ato Institucional impõe o bipartidarismo, quando Salgado passa a atuar na Aliança Renovadora Nacional (ARENA), até a sua morte (1975), intermediando, por exemplo, o apoio ao Golpe de 1964, mas com ideologia continuada até os dias atuais, através da Ação Integralista Brasileira, liderada por Anésio Lara, bem como a Frente Integralista Brasileira (FIB), o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro (MIL-B) e a Ação Integralista Revolucionária (AIR), como bem demonstrou o estudo de Odilon Caldeira Neto, Sob o signo do sigma (2014).

 

O Fascismo Como Conceito

O fascismo não é um desastre natural que pode ser entendido simplesmente em termos de “natureza humana”. Mas mesmo quando estamos lidando com catástrofes naturais, há maneiras de retratá-las que são dignas dos seres humanos porque elas apelam ao espírito de luta humano.

(Bertolt Brecht, em “O fascismo é a verdadeira face do capitalismo”)

Dito isso, especialmente por vermos no passado o teor anticomunista do fascismo brasileiro, importa desenvolver a conceituação do mesmo, a fim de expressar o significado do termo. Na obra já citada, Leandro Konder afirmou que a palavra “fascista” tem sido usada regularmente como “arma na luta política” e isto é normal para efeito de “agitação” e que a “esquerda se sirva dela como epíteto injurioso contra a direita”, mas que isto pode impedir, em determinadas situações, “de utilizar o conceito com o rigor científico e de extrair do seu emprego, então, todas as vantagens políticas de uma análise realista e diferenciada dos movimentos das forças que lhe são adversas” (Grifos do autor, 1977, p. 4).

Konder demonstra que nem todo movimento reacionário é fascista e que nem toda repressão exercida em nome de privilégios de casta ou de classe é fascista, nem que o conceito de fascismo se reduz aos de ditadura ou autoritarismo (idem, p. 4). Outro aparte do autor, por sua vez, ajuda a ir cercando mais  o tema. Konder diz que “aqueles que negam validade à contraposição clássica de direita e esquerda nunca são homens de esquerda” (Grifos do autor, idem, p. 5). Contudo, afirma o filósofo político, “o conceito de direita é imprescindível a uma correta compreensão do conceito de fascismo, embora seja mais amplo que este”, pois “a direita é o gênero de que o fascismo é uma espécie” (Grifos meus. Idem, p. 5). Se a direita, por sua vez, argumenta Konder, apresenta ideólogos que competem entre si, expressando “o conglomerado insuficientemente coeso das classes conservadoras”, que objetivam manter determinado status quo, o fascismo, na História Contemporânea, traduziu “uma enérgica tentativa no sentido de superar a situação altamente insatisfatória” das tensões entre os diferentes campos, para, através de um “pragmatismo radical”, servir-se “de uma teoria que legitima a emasculação da teoria em geral”, sobretudo diante de uma direita “apavorada com a revolução proletária” (Grifos do autor, idem, p. 6 a 8).

Foi assim com Mussolini na Itália do pós-Revolução Soviética, não seria diferente no Brasil da década de 1930, sobretudo depois da formação da ANL. Diante disso, e no restante do livro Leandro Konder vai fazer a digressão sobre este fenômeno, o fascismo cria, de forma pragmática, mitos, especialmente sobre a nação, ocultando a fase imperialista em que o capitalismo adentrara. Isto, em uma nova fase de desenvolvimento deste modo de produção, em que o capital bancário unificou-se com o capital industrial, formando o capital financeiro, exigindo aos países que aprofundassem a exportação sistemática de capitais e se acentuasse a disputa em torno da exploração colonialista (ver KONDER, p. 12).

Com esta nova fase, iniciada essencialmente no último quartel do século XIX e primeiro do século XX (Ver sobre isto, em todas as suas dimensões, político-culturais e socioeconômicas: HOBSBAWM, 2006), como indicou Lênin, em seu magistral e atual Imperialismo, fase superior do capitalismo (escrito entre janeiro e junho de 1916), ocorre “a substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas”. Assim, em época de crise do mesmo modo de produção, a saída econômica para a sua própria crise, que não seja a revolução proletária, tem de ser, necessariamente a solução imperialista, ou seja: “1) a concentração da produção e do capital monopolista levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada neste ‘capital financeiro’, da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o mundo entre si, e; 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes” (LÊNIN, 1986, p. 641-2). Isto de Lênin foi necessário dizer, como já alertou Poulantzas, que “quem não quiser falar de imperialismo é que deverá também calar-se no tocante ao fascismo”, pois, o fascismo “situa-se no estágio imperialista do capitalismo”, tendo como caracteres gerais as crises econômicas particulares desde que se veja o imperialismo, também, como um fenômeno político, haja vista o papel decisivo do Estado na transição para esta fase da dominância do capitalismo monopolista (Grifos do autor, 1978, p. 17-8 e 21).

Apesar de Lênin ainda estar vivo no início da ascensão fascista, e de ter presente subliminarmente em sua obra a relação econômica e política do fenômeno imperialista, devido à censura quando publicou a obra, somada a sua situação de saúde (ele morreria dois anos depois de quando ocorreu a Marcha Sobre Roma), entretanto, e a sua morte prematura, o impediram de ver a saída política para o imperialismo e suas diversas fases de transição diante da crise de desenvolvimento capitalista, especificada pelo fascismo italiano e seus congêneres históricos, o salazarismo, o nazismo, o franquismo e os que vieram depois. Dito isto, a posição aqui fica mais clara, ou seja, o fascismo é a solução política, quando necessária, para o imperialismo resolver a sua crise de desenvolvimento capitalista. Não se resume a uma especificidade italiana e com recorte histórico preciso (1922-1945) do exemplo italiano, apesar de ter ali desenvolvido parte fundamental de suas bases.

Se Lênin não presenciou a consolidação deste fenômeno em sua primeira fase, não sem fundamento consolidado entre as duas guerras mundiais, sobretudo envolvendo mais a Europa na Primeira, mas generalizando-se mundialmente, no caso da Segunda, sendo entremeadas pela crise geral do capitalismo, aprofundada a partir do crack da bolsa de Nova York, em 1929, e seu novo país símbolo, os Estados Unidos, restou a Antônio Gramsci, enquanto viveu, até a sua morte, em abril de 1937, decifrar outras de suas principais características, sendo o primeiro teórico marxista a tentar definir o fascismo através da sua “natureza de classe e suas características particulares” (LEONETTI apud COUTINHO, 1992, p. 27).

Gramsci, além disso, como apontou Poulantzas, “determina no interior do quadro geral da crise política, um caso específico de crise política, o da crise hegemônica ou crise de equilíbrio catastrófico”, o que “conduz ao fenômeno do cesarismo”. Para o pensador e político italiano, criando uma autonomia relativa e muito particular do Estado em relação às classes dominantes, ocorre um dos fenômenos, o fascismo (Grifos de Poulantzas, 1978, p. 66-7).

Esta elaboração inicial, como já indicou Carlos Nelson Coutinho, em Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político, se deu nos dois anos subsequentes à formação do Partido Comunista Italiano (PCI), em meio a ampliação dos movimentos fascistas e na conjuntura da Marcha Sobre Roma (1992, p. 27). Coutinho cita o artigo “O povo dos macacos”, escrito por Gramsci em 2 de janeiro de 1921, , no segundo número do L’ordine Nuovo, quando este afirma que a reação fascista tratava-se de um movimento reacionário com base de massas, apoiado pela pequena burguesia para recuperar os espaços perdidos devido às transformações monopolista que o capitalismo italiano atravessava (idem, p 27-8). Após, em artigos de junho e agosto, respectivamente “Subversivismo reacionário” e “os dois fascismos”, Gramsci elaborará sobre o que veio chamar de “dupla alma” do movimento fascista em sua gênese italiana: o movimento pequeno burguês urbano de orientação antioperária e as tropas de choque dos grandes latifundiários contra os camponeses (idem, p. 28). Como explica Gilberto Calil, mesmo “meses antes da chegada de Mussolini ao poder, Gramsci já via no fascismo a expressão orgânica da burguesia, compreendendo que o processo de ajustamento entre o movimento e a classe dominante já estava concretizado” (2018b).

Porém, esclarece Coutinho, ainda faltava a Gramsci o amadurecimento sobre uma ampliação ao significado restrito de movimento reacionário, o que viria se concretizar em 1926, conceituando o fascismo como, também, “um eventual regime reacionário de tipo igualmente novo. Ou seja: uma ditadura do capital financeiro, que se apoia sobre uma ampla rede de organizações de massa, sobre o consenso organizado da maioria da população” e que era “radicalmente diverso das velhas ditaduras conservadoras de tipo semiparlamentar ou militar”. Esta posição foi consolidada no Congresso do PCI, realizado em Lyon, em França, quando Gramsci apontou sobre as “diversas estratificações de classe” no interior do fascismo (Grifos do autor, idem, p, 28).

Palmiro Togliatti, histórico dirigente do PCI, seguindo a linha da III Internacional Comunista, conceituou o fascismo, em 1935, como “uma ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários (…), mais imperialistas, do capital financeiro”, sendo fundamental, sob o ponto de vista teórico, para entender o mesmo, “a ditadura da burguesia e o movimento das massas pequeno burguesas” (edição de 1978, p. 1-2), sob o risco, se ficar num ou noutro, ou de perdermos o seu conteúdo de classe ou não entendermos a sua base de apoio no seio da “sociedade civil”. Togliatti foi um nome importante, por se tratar de um italiano, a se opor à tese de que o fascismo foi uma experiência datada de seu país. Além disso, alertava para os tipos de movimentos e de ditaduras que não eram os mesmos em todos os países, ao mesmo tempo em que, “em tempos diferentes, num mesmo país, o fascismo assume aspectos diferentes” (idem, p. 2). Togliatti também alerta sobre os erros das concepções social democratas sobre o fascismo, ao afirmarem que ele “toma o poder da grande burguesia e o passa a pequena burguesia, que em seguida o utiliza também contra a primeira”, tendo como desdobramento político que “a luta contra o fascismo seria obra de todas as camadas sociais”, eludindo a “função que cabe ao proletariado na luta contra o fascismo” (Idem, p. 3), eu diria a favor de sua extinção. Como já apontou José Luiz Del Roio, esta posição socialdemocrata, que via o fascismo como uma “ditadura da pequena burguesia e de elementos da burocracia de estado, somados a velhos setores da aristocracia, que oprimiam tanto a grande burguesia como ao proletariado” foi bastante disseminada a partir das concepções de Otto Bauer (1987, p. 23).

Outro erro, segundo Togliatti é ver no fascismo uma espécie de bonapartismo, como fazem interpretações trotskistas. Por este tipo de concepção, “não é a burguesia que dirige”, mas, no exemplo dado, Mussolini e generais. Em contraposição, Togliatti recupera Lênin para se entender o fascismo, ou seja, para entender o fascismo é preciso conhecer o imperialismo e sua necessidade de garantir seus lucros, o que, na relação de classes, exige da burguesia “formas para exercer uma forte pressão sobre os trabalhadores”. Para este intento, do capitalismo monopolista, ou seja, as forças dirigentes, “as antigas formas de governo tornam-se obstáculo ao seu desenvolvimento”. Aqui está a razão fundamental para que a burguesia se torne reacionária e recorra ao fascismo, de acordo com Togliatti, ou seja, “o fascismo se desenvolve porque as contradições internas chegaram a tal ponto que a burguesia é obrigada a liquidar as formas de democracia” (1978, p. 3-4 e 7).

Contudo, como já disse o próprio político italiano, de uma afirmação falsa, deriva uma falsa orientação política. Se não, todo Estado burguês em crise se desenvolveria para um Estado burguês fascista. Deste tipo de interpretação, estaria descartada aqui a luta de classes e, como disse Togliatti, “as probabilidades de instauração de uma ditadura fascista estão ligadas ao grau de combatividade da classe operária e a sua capacidade de defender as instituições democráticas” (idem, p. 4), mesmo nos limites de uma democracia burguesa. E como está indicado em Lições sobre o fascismo, e “essa luta pela defesa das instituições democráticas se amplia e se transforma em luta pelo poder”, o que leva a outro desafio político: na ascensão fascista do capitalismo em crise, é necessário entender “as profundas causas sociais” que o determinam, bem como “entravar a conquista das massas pequeno burguesas descontentes pela grande burguesia”, compreendendo que “conquistar uma parte desta massa” é contribuir para “neutralizar a outra parte”, a fim de impedir que se torne “uma massa de manobra da burguesia”. (idem, p. 5).

Na esteira de Gramsci e Togliatti, mesmo que com críticas a influência da III Internacional Comunista em suas considerações sobre o fascismo, a obra de Nicos Poulantzas veio contribuir ainda mais sobre o fenômeno. Em Fascismo e ditadura, confessado, no prefácio à edição em língua portuguesa, em sentido estrito, como um texto historiográfico, o filósofo grego indicou o fascismo “como forma particular de regime da forma capitalista de exceção” e de sua crise política (1978, p. 11 e 383), ou seja, não se resume ao exemplo italiano, mesmo com as especificidades deste, nem ao fascismo alemão, mesmo que nesta obra confesse que tenha deixado de lado da análise “o bonapartismo e as diversas formas de ditadura militar”, o que tornava o fascismo uma questão atual (idem, p. 383-4). Poulantzas indicou, por sua vez, no que concernia ao conjunto geral de crise no período entre guerras, o fascismo já se mostrou como um fenômeno decorrente de uma “acumulação, desigualmente desenvolvida, do conjunto das contradições – econômicas, políticas e ideológicas -, no interior da qual se manifestam, antes, várias ‘crises econômicas’, que são o seu efeito” (Grifos do autor, idem, p. 58).

Quanto ao fascismo como fenômeno político, Poulantzas indica que o fascismo pressupõe “a existência, no seio dos aparelhos ideológicos de Estado, de um partido de massas como caracteres particulares”, sendo que este Estado “é caracterizado pela mobilização permanente das massas populares”, mesmo que em sua origem, seja “essencialmente ‘exógeno’ a este aparelho”, sendo “um aparelho exterior ao aparelho repressivo de Estado invadido ‘de fora’”. Neste processo, cria-se uma situação prolongada “em todo o tempo em que o fascismo está no poder”, sem que haja “fusão entre o partido fascista e o aparelho de Estado” na primeira fase, ou seja, “o partido fascista assume sempre um papel próprio”. Já na segunda fase, a do fascismo estabilizado, “é o aparelho de Estado que, devidamente transformado [o autor fala do exército, da administração, da polícia e da magistratura], domina o partido fascista, que lhe fica assim subordinado”, através de um ramo particular do aparelho repressivo de Estado, a polícia política (Grifos do autor, idem, p. 355-6). Segundo Poulantzas, esta situação “não é simplesmente para indicar a importância da repressão política, mas para assinalar o papel ideológico capital que cabe ao ramo policial do aparelho de Estado fascista” (Grifos meus, idem, p. 356). Quanto a ideologia fascista, o autor indica que no partido fascista – como correia de subordinação estrita dos aparelhos ideológicos ao aparelho repressivo e de elo de coesão centralizada dos aparelhos ideológicos que domina -, na família – uma das peças centrais dos aparelhos ideológicos de Estado – e no aparelho de informação e de propaganda política é que estarão as formas que assume a ideologia fascista e são o “tríptico dominante dos aparelhos ideológicos de Estado”, enquanto há uma “regressão significativa” de outros aparelhos, como o escolar e o religioso (Idem, p. 357). Por fim, segundo Poulantzas, “do ponto de vista formal, o fascismo sobre ao poder de modo perfeitamente constitucional”, como Mussolini e Adolf Hitler, que respeitaram “as formas de estado ‘democrático-parlamentar”, dentro das “normas jurídicas que todo o Estado burguês prevê para os casos críticos de luta de classes”, chegando ao poder “ajudado por uma conivência característica do aparelho de Estado”, especialmente com a “ajuda decisiva do aparelho repressivo de Estado na luta travada com as massas populares” (Idem, p. 358), as quais prefiro chamar aqui de movimentos sociais populares entrecruzados pelo proletariado classista e seus recortes de gênero, etnia, raça e nacionalidade.

Para identificar outro elemento importante de consolidação do fascismo, é importante voltar a Leandro Konder. Segundo ele, no processo de contradições que o imperialismo gerava no desenvolvimento do capitalismo, a expansão deste modo de produção exige que não se controle apenas a produção, mas também o consumo, com investimentos cada vez maiores na propaganda dos produtos. Assim, “o fascismo percebeu, agilmente, que esse crescente investimento” abria, igualmente, “novas possibilidades para a ação política, e tratou de aproveitá-las”, o que “disfarçava o conteúdo social conservador do fascismo”, fixando a atenção para o “estilo novo” do movimento fascista (1977, p. 17-8).

Com estas considerações de Leandro Konder, bem como as anteriores, o autor chega a uma definição bem ampla do fascismo que importa referendar na íntegra: “o fascismo é uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que procura se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de Estado, exprimindo-se a partir de uma política favorável à crescente concentração do capital; é um movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara ‘modernizadora’, guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento em um país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhe a influência junto às massas); e pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro” (1978, p. 21).

Em parte, isto explica o Brasil e as saídas históricas republicanas, como o Estado Novo, mais ainda o Golpe de 1964 e a consequente Ditadura, bem como a saída da Ditadura em ofensiva neoliberal. Mesmo o “interregno” lulista, quando em nenhum momento se rompeu com a macro política econômica herdada dos tempos de FHC, tendo no consumo o eixo da microeconomia, mesmo que se avançasse em políticas sociais, na valorização da renda dos trabalhadores e em certo aumento de seu poder de compras. Mas, quando a crise geral do capitalismo atingiu o País, mesmo um pouco tardiamente do que nos centros do capitalismo, em 2008, o caráter estrutural de dependência e o predomínio do capital financeiro exigiram a mudança de rumo político pressionado pelas classes dominantes e seus aliados externos. Isto explica em boa parte o Golpe que derrubou Dilma, em 2016, bem como a reação conservadora que isolou neoliberais tradicionais e sociais democratas reformistas, possibilitando, via eleitoral, a solução bolsonarista.

 

O Bolsonarismo Como um Tipo de Fascismo Redivivo

Os círculos imperialistas estão tentando transferir o fardo da crise para os ombros do povo trabalhador. É por isso que eles precisam do fascismo

(Georgy Dimitrov)

Esta ascensão de Jair Bolsonaro, pois sua “candidatura à Presidência da República é filha dileta da crise – não apenas a econômica, mas também a correlata crise política que se abate sobre o Brasil, de forma intermitente, desde 2013”. E, como nos Estados Unidos de Donald Trump, Bolsonaro “projeta-se explorando uma situação descrita como falência da democracia, resultado do esgarçamento das instituições políticas tradicionais, capturadas pelo poder econômico, distanciadas dos anseios da população, afundadas na corrupção e na burocracia”. Assim, “num quadro de crise e esvaziamento da política, o representante brasileiro do neoconservadorismo desdenha das mediações partidárias, como se vê desde logo em sua aliança eleitoral” e opta pelas “mediações de cunho midiático – mais diretas –, facilitadas pelas novas possibilidades de conexão abertas com as redes sociais”, consolidando “em força eleitoral o próprio descrédito para com os partidos e a política” (PALÁCIO, 2018), Fábio Palácio, por sua vez, alerta corretamente que não se pode fazer uma simples transposição das condições históricas que geraram o fascismo no século XX como se fossem as mesmas das atuais formas de fascismo, isto porque “o fascismo contemporâneo tornou-se mais abrangente, sistêmico e integrado”, exibindo “as credenciais de um movimento global em sentido pleno – da mesma forma que a persistente crise econômica que o impulsiona” (Idem).

É necessário complementar que, por sua vez, no caso brasileiro, o modelo de características fascistas do bolsonarismo encontra no seu governo um diferencial importante em relação às experiências históricas do fascismo da primeira metade do século XX, especialmente no que tange ao papel do Estado na economia. O ministro Paulo Guedes, formatado na Escola de Chicago e defensor do modelo pinochetista da economia chilena dos anos 1970-80, não tem desconforto ao defender teses ultraliberais para a economia e ser conivente sobre a defesa de aumento da escala repressiva e de fechamento da democracia defendida por Jair Bolsonaro. Contudo, não está sendo a primeira vez na História que setores do liberalismo econômico não tergiversam diante da alternativa fascista para a solução política para uma crise econômica.

O exemplo de como Bolsonaro, desde o início, tratou o problema da pandemia do COVID-19, e de como a sua base mais radicalizada veio o defendendo, é um exemplo de como a retomada fascista reaplica princípios de eugenia social. Como no século XX, quando os franquistas bradavam “viva la muerte” e as carreatas fúnebres usavam o Totenkopf (caveira) dos uniformes nazistas (SECCO, 2020), o fascismo nunca foi a favor da VIDA dos outros, principalmente daqueles considerados inimigos políticos ou ideológicos, bem como com limites de saúde, fossem físicas ou mentais, por isto a eugenia estava contida em seus pressupostos. O bolsonarismo é a expressão atualizada deste princípio, reforçado na pandemia com a desvalorização da vida e a relativização da morte, com afirmações do próprio Bolsonaro, através de expressões do tipo “vão morrer muitos, e daí?” ou defendendo que a economia é mais importante que a vida. Mas é isto mesmo, como também apontou Lincoln Secco, “se uma pandemia não cede, em algum momento é preciso sacrificar corpos trabalhadores para que as roletas do cassino financeiro global continuem a girar” (Idem).

Outra característica rediviva do nazi-fascismo no fascismo de tipo bolsonarista é o negacionismo irracionalista do conhecimento e da ciência, tornando seus militantes serviçais radicalizados do capitalismo mais reacionário. Segue apaixonadamente um suposto filósofo, Olavo de Carvalho, relativizando ou negando o formato esférico da terra (afirmam que a “terra é plana”), o aquecimento global (como seu seguidor, o chanceler Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro) ou sobre a eficácia das vacinas, como o próprio Carvalho o fez, em 2006, entre outras. Nesse sentido, como já indicou Manuel Loff (2019b), “o bolsonarismo é a versão mais completa e mais despudorada da extrema direita –, que é o do discurso da ditadura cultural marxista”, sendo “mais Steve Bannon que o próprio Trump”. Aqui, os alvos são as escolas e universidades públicas, pois, segundo o historiador, “a partir da tese de que há uma ditadura cultural marxista da esquerda, a extrema direita, numa escala internacional” defende que este ensino somente forma militantes de esquerda, mas no fundo “eles atacam todas as ciências sociais, tudo quanto dizem a sociologia, a antropologia e a História”, sendo que no Brasil levaram esta posição “muito mais longe politicamente, e com mais eficácia, com o movimento Escola Sem Partido”, movimento que afirma que esta suposta ditadura cultural procura “minar os fundamentos da natureza, da comunidade, da ordem social: a família, a pátria, a nação, etc. (idem). Já para Gilberto Calil (2020a), neste aspecto o bolsonarismo guarda semelhanças com o Integralismo, “um movimento profundamente marcado pelo irracionalismo, por mitos, como o mito do interior contra a capital contaminada pelo cosmopolitismo, pelo mito das três raças, uma série de preconceitos e a propagação de um anticomunismo primário, tosco”.

Ao mesmo tempo reconfiguram símbolos e práticas nazifascistas Como na frase “O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil”, usada pela Secretaria de Comunicação do Governo, com muita verossimilhança ao lema do nazismo no portão de Aschwitz “Arbeit macht frei” – “O trabalho liberta”], citando apenas com mudanças formais, frases clássicas de Mussolini, quando retuitou mensagem com a assertiva “Melhor viver um dia como leão do que cem anos como cordeiro” (Meglio vivere un giorno da leone che cento anni da pecora”), provavelmente utilizada pelo Duce pela primeira vez um discurso de 1922.

Ou alguém acha que o desprendimento nazifascista do ex-secretário de cultura de Bolsonaro, no início de 2020, e o apoio inicial do seu chefe, tenha sido uma “infeliz coincidência” com o que de fato pensa o mandatário da República, quando Ricardo Alvim pronunciou em seu discurso a frase “arte brasileira da próxima década será heroica” e “imperativa”, à semelhança de Goebbels, apenas trocando a palavra “alemã” por “brasileira”? A música de Wagner ao fundo, o cabelo e o conteúdo do pronunciamento a “la Joseph Goebbels”, o cenário milimetricamente preparado para anunciar uma arte “nacionalista” seria uma “infeliz coincidência”!? Serão frases isoladas aquelas professadas pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, escancarando ódio à diversidade da formação da formação social dos brasileiros, na Reunião Ministerial de 22 de abril de 2020, atacando os povos originários (“Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um”), assim como a postagem de 4 de abril do mesmo ano, debochando sobre o linguajar de imigrantes chineses para o Brasil (“Geopolíticamente, quem podeLá saiL foLtalecido, em teLmos Lelativos, dessa cLise mundial? PodeLia seL o Cebolinha? Quem são os aliados no BLasil do plano infalível do Cebolinha paLa dominaL o mundo? SeLia o Cascão ou há mais amiguinhos?”) ou igualmente perseguindo a educação e os educadores públicos? Ou o “cristofascismo” de Jair Bolsonaro e sua ministra Damares Alves, sempre negados, não são expressão reacionária de um cristianismo conservador, homofóbico, racista e xenófobo, em consequência genocida, como fora a conivência religiosa com o nazi-fascismo da década de 1930? Evidente, que expressam o pensamento radicalizado de extrema direita que “nunca abandonou uma descrição do Ocidente branco e cristão que colonizou o resto do mundo – hoje, visto como um Ocidente judaico-cristão herdeiro das duas religiões monoteístas do Livro Sagrado”. E aqui, entra o seu principal alvo, segundo o pesquisador português, as mulheres. Sim, porque aqui entra “a tese de que todo feminismo é radical, todo feminismo é uma invenção da ditadura cultural da esquerda e o único que pretende é legitimar uma ‘ofensiva contra Deus’”, existindo “uma evidente falocracia e um neopatriarcalismo em tudo isto” (LOFF, 2019b).

Por sua vez, uma simples análise dos princípios do nazista Joseph Goebbels, sobre a propaganda, indica como o bolsonarismo (e mais recentemente o que passou a ser chamado de “gabinete do ódio”) aplica parte daquelas diretrizes.
Mesmo que não haja provas históricas de que o braço direito de Hitler tenha dito a famosa frase “repete, repete a mentira, que ela vira a verdade” (até porque nenhum governo se mantém somente com propaganda e repressão), pois a diretriz goebbeliana era trabalhar a meia verdade – a verossimilhança – e direcioná-la aos interesses do poder, vejamos o decálogo de Goebbels sobre a propaganda e a comparemos com as práticas do bolsonarismo:

1) Principio da simplificação – é fundamental individualizar o adversário em um único inimigo. Isto significa, por exemplo, afirmar que “quem não está comigo, é comunista, é terrorista, etc.”;

2) Principio da transposição – é necessário atribuir ao adversário os próprios erros ou defeitos, ou se não podes negar as más notícias, inventa outras que as distraiam. No caso da pandemia do coronavírus de 2020, afirmar constantemente que foram os governadores que não conseguiram baixar a curva da pandemia no Brasil e, no extremos, no avanço da pandemia, afirmar que a organização Mundial da Saúde (OMS) estava incentivando a masturbação e a homossexualidade das crianças;

3) Principio do exagero e desfiguração – deve-se converter qualquer anedota em ameaça grave. Aqui temos os exemplos da madeira de “piroca” e das cartilhas do “kit gay” nas escolas, ainda na campanha eleitoral;

4) Principio da vulgarização – a propaganda deve ser popular, adotando seu nível ao menos inteligente dos indivíduos. Aqui, as marcas do bolsonarismo e seu líder são as falas vulgares cotidianas, cheias de palavrões e preconceitos, mas que são reproduzidas no senso comum da população e justificadas como um “mas ele é assim mesmo”;

5) Principio da orquestração – a propaganda deve limitar-se a um número pequeno de ideias e repeti-las incansavelmente”. Foi o que foi feito na campanha eleitoral e já no governo, a partir do disparo diuturno das fake news, facilitadas pelo uso massivo das redes sociais, especialmente do whatsapp;

6) Principio da renovação – a emissão constante de informações e argumentos novos a um ritmo tal que, quando o adversário responda, o público está já interessado em outra coisa, bem como as respostas do adversário nunca devem poder contrariar o nível crescente de acusações. Aqui, os factoides cotidianos o atestam;

7) Principio da verossimilhança – a construção de argumentos através dos chamados balões de ensaios ou de informações fragmentadas. Mesmo que a mídia tradicional e empresarial seja useira e vezeira desta tática, ela ganha uma dimensão intensa e também diuturna;

8) Principio do silêncio – é imperioso calar sobre as questões das quais não se tem argumentos e encobrir as noticias que favorecem o adversário. Assim, mandar jornalistas calarem a boca ou dizer que é eles que produzem as fakes, enquanto as redes atacam os “adversários”, até os de última hora, como foi o caso dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro;

9) Principio da transfusão – a propaganda opera sempre a partir de uma mitologia nacional ou um complexo de ódios e prejuízos tradicionais Aqui, a própria reprodução cotidiana de que seu líder é um “mito” ou de que só os bolsonaristas são os “patriotas”, escondendo que defendem políticas econômicas de abertura ao capital estrangeiro e de desestatização de setores estratégicos da economia e;

10) Principio da unanimidade – o convencimento de muitos, criando impressão de unanimidade. Neste caso, ganha força o discurso de que representam a “maioria da população”, mesmo que não tenham a maioria dos votos ou as pesquisas de opinião indicam que menos de 50% lhes são favoráveis..

Não, este tipo de fascismo latente e ascendente, como rediviva solução para a crise dos capitalistas, com quase nenhuma reação da “maioria silenciosa” e de um judiciário conivente ou omisso que nada fizera no pronunciamento da Câmara de Deputados, quando Jair Bolsonaro elogiou o maior torturador e assassino da Ditadura Pós-1964, Carlos Brilhante Ustra, não são meros acasos históricos. Vale o mesmo quando o Bolsonaro disse que ia metralhar e acabar com a esquerda após a vitória eleitoral, demonstrando que o sinal amarelo já havia sido ultrapassado. Soma-se a isto uma realidade que tem contornos semelhantes aos da década de 1920, sobretudo na Europa, semelhanças que para o historiador Gilberto Calil (2020a) aproximam “o contexto original de emergência do fascismo e de hoje”, particularmente “a conjunção de crise econômica, crise de acumulação capitalista e com uma situação de crise política, de os velhos partidos e as organizações tradicionais da classe dominante de garantirem, de forma tranquila, as condições da dominação”, haja vista que. “os movimentos fascistas têm uma necessidade intrínseca de se apresentarem como se fossem contra a ordem, o status quo, a velha política”.

A História já ensinou que o fascismo “come a sopa pelas bordas” e o episódio em torno de Ricardo Alvim demonstrava que este prato vinha sendo servido havia algum tempo, especialmente depois do Golpe de 2016 e, particularmente, depois da vitória eleitoral de Bolsonaro, em 2018. Assim, mesmo que muitas vezes pareça patético e vulgar, seria um grande erro subestimar o bolsonarismo e o seu apoio entre frações das classes dominantes, bem como dos próprios trabalhadores, pois, assim, como em outros momentos, o tipo de fascismo bolsonarista se alimenta da crise, seja ela econômica, seja ela sanitária, e só por esta razão, não se pode subestimá-lo.

O historiador português Manuel Loff, em recente entrevista (2019a), afirmou que o governo Bolsonaro, a exemplo da Hungria, da Polônia e de outros países nos quais “a extrema direita tem um peso particular”, bem como o que vem acontecendo nos Estados Unidos, expressam a “degradação daquilo de que chamamos de sistema liberal democrático”, sendo “eles próprios produtos e protagonistas de uma transição autoritária”. Para Loff, este processo se caracterizou “pela perda da qualidade democrática, do funcionamento dos sistemas constitucionais, como o brasileiro, o que é muito visível no processo do Impeachment da presidenta Dilma e da forma como foi feita a gestão por parte do presidente Temer, abrindo caminho à eleição de Bolsonaro, ao mesmo tempo em que o principal candidato, o ex-presidente Lula, é preso e detido nas condições em que foi”, assim como, após Temer assumir o governo, através da “mobilização da força do Estado e das bases sociais de apoio ao bolsonarismo, contra os partidos da oposição e, sobretudo, contra os movimentos sociais, individualmente contra ativistas e todos aqueles que possam organizar resistência contra essa nova solução política”. Para o historiador português, “isso é comum ao que aconteceu, justamente, na primeira fase de transição aos regimes autoritários e fascistas na Europa dos anos 20 e 30” com o. Estado exercendo “violência sobre os ativistas, os movimentos sociais, os partidos políticos da oposição”, estabelecendo uma “nova solução política” com “outras formas de exercício da violência, a coação, a ameaça, através de grupos ou mercenários que operam a uma escala aparentemente inorgânica, mas que podem ter conexão com essa nova solução política”. Por fim, esta solução, para o professor da Universidade do Porto, tem “uma natureza neofascista pelo fato de suscitar em ameaça permanente de suspensão das liberdades constitucionais, da natureza democrática do regime brasileiro (…) como as tiradas públicas, quer de Bolsonaro, ou de seus filhos, de vários dos membros do governo, insinuando que a única forma de implementar, efetivamente reformar, seria superando a forma liberal democrática do regime brasileiro e encontrar uma nova ordem política abertamente autoritária”

Apesar do neologismo sobre o neofascismo (vale o mesmo para o neoliberalismo), pois pode pressupor um fascismo ou um liberalismo clássico-ideal e não em mudanças na no próprio curso da História, Loff também contribui com outros elementos, em outra entrevista de julho de 2019(b), ao ser perguntado sobre possíveis características fascistas do governo Bolsonaro. Para ele “Bolsonaro é socialmente tão reacionário e, na sua tentativa de fundir os interesses das direitas políticas e econômicas do Brasil, tão ambicioso que deverá avaliar da necessidade de usar uma violência institucional, para legal, que está fora do alcance de qualquer governo democrático”, pois se “não hesitar em usá-la, a prática será muito próxima da abordagem fascista”., porém, já no “discurso que tem sobre os movimentos sociais e políticos que se lhe opõem, sobre as mulheres, as minorias étnicas, a família, a nação, o Ocidente configura um neofascismo adaptado ao Brasil do século 21”.

Já para o historiador Daniel Aarão Reis Filho, o bolsonarismo, em seus aspectos não é um fenômeno apenas brasileiro, pois “insere-se em um contexto internacional de reação a mutações percebidas como ameaças mortais a tradições, valores e costumes” que são marcados pela chamada “revolução digital ou informática” (2020, p. 1), através de um processo em que nos aspectos econômicos se consolida “a hegemonia do grande capital financeiro e suas propostas de desregulamentação dos mercados e privatização das atividades econômicas; a expansão e a consolidação dos chamados paraísos financeiros, onde se hospedam vultosos capitais, livres de fiscalização e tributação; o enfraquecimento da capacidade de decisão e de intervenção dos Estados Nacionais face ao livre fluxo de capitais, a instâncias internacionais”, enquanto no aspecto político- institucional destacam-se: “a autonomização/aristocratização das instituições associadas à democracia representativa (políticas e jurídicas), conduzindo a um progressivo descrédito dos partidos políticos e sindicatos, sobretudo entre a juventude e as classes populares; a curva ascendente do desinteresse, do absenteísmo e de uma cultura política “cínica” baseada na desmoralização da mal chamada “classe política”; o uso persuasivo das mídias sociais no contexto das lutas e embates políticos, seja para propagandear as próprias propostas, seja para desmoralizar as dos adversários (fake news)”, entre outros, acentuadas desde a crise de 2008. (idem, p. 2).

Para Daniel Aarão Filho, este processo mais global, teve efeito sobre o Brasil no qual “a crise econômica de 2008 bateu forte”, fazendo despencar “os preços das commodities que haviam sido a locomotiva da prosperidade latino-americana nos primeiros anos do novo século”. Com isto, diminuíram “as margens econômicas para políticas redistributivas”, enquanto “os governos nacional-estatistas, emparedados por suas opções e políticas conciliatórias, não ousaram (não é sua tradição) recorrer à mobilização e à organização popular que fossem capazes de apoiar e sustentar políticas alternativas”. Como resultado político, “as gentes desarmaram-se para compreender e enfrentar os fenômenos que estavam acontecendo ou viriam a acontecer” (idem, p. 4) e, somando-se a desdobramentos de longa, média e curta duração, “Bolsonaro soube tecer importantes alianças com o capital financeiro (Paulo Guedes), apareceu como campeão da moralidade e da segurança (Moro), teceu e consolidou laços com as igrejas evangélicas (reação à pauta identitária dos costumes) e com outras forças conservadoras – as bancadas da “bala” (aparelhos de segurança e oficiais militares) e do boi (agronegócio de exportação)”, aliança que “ia muito além das fronteiras estreitas da extrema-direita, da qual Bolsonaro sempre foi expressiva liderança”. Somou-se a isto a “auto apresentação vitimizada, sempre simpática e sedutora, e – mais importante – legitimando a ausência nos debates políticos”, depois do enigmático episódio da facada (idem, p. 8).

E como se pode resistir a este novo tipo de fascismo? Primeiro, não repetindo os erros da III Internacional Comunista (IC) em sua primeira fase, generalizando todos os não revolucionários como aliados do fascismo ou “social-fascistas”, este um termo dos anos 1920, consolidado no V Congresso da IC e no VI Congresso, ocorrido em Moscou, respectivamente, em 1924 e entre dezembro de 1928 e janeiro de 1929, quando, neste, se definiu pela tática de “classe contra classe” e a formação das frentes únicas contra o fascismo. Especialmente porque, no caso do bolsonarismo, tal como em outras situações históricas, “quando combate o proletariado, dirige também a sua ação contra as bases da democracia burguesa”, estimulando a criação de frentes mais amplas contra o inimigo principal (DEL ROIO, 1987, p. 25).

É preciso compreender, também, como na Europa da década de 1920, que, como alertou Fábio Palácio recentemente, os fracassos das correntes políticas liberais e sociais democratas (agora, de certo, pelas suas práticas neoliberais) geraram desencanto e, “em muitos países, essa situação vem sendo capitalizada pela extrema-direita” (2018). Isto não impede a construção de frentes amplas antifascistas de limite tático, pois as conquistas históricas das trabalhadoras e trabalhadores piores ficarão se a luta de resistência for apenas das frações mais conscientes e revolucionárias do proletariado.

Conclusão

Poulantzas já profetizava na obra original, publicada pela primeira vez em França, em 1970, que o fascismo era um fenômeno cujo ressurgimento permanecia possível, mesmo que o processo tem que ser necessariamente ser idêntico às experiências do passado, lembrando o que Marx e Engels disseram em A ideologia alemã, escrita ainda no século XIX, de que a história apresenta-se uma vez como tragédia, depois como farsa. De qualquer forma, para Poulantzas, mesmo que muitos militantes sinceros possam ver “o espectro aparecer a cada passo”, a “questão do fascismo é atual”, e que se a História traz alguma lição para o presente. Assim, “o fascismo, como de resto, os outros regimes de exceção, não são ‘doenças’ ou ‘acidentes’, não é só aos outros que acontecem” (1978, p. 384). Se fossem doenças, na Itália, desde quando Mussolini foi expulso do Partido Socialista, ainda na conjuntura da Primeira Guerra Mundial, por defender que a Itália e seus trabalhadores deveriam ir para os campos de batalha, ele e suas novas uniões não teriam tido o financiamento da Édison, da Unione Zuccheri, da FIAT, da Ansaldo e outros; na Alemanha, Hitler não teria o apoio financeiro da Lufthansa, da Bayer, da Volkswagen, da Krupp e até a conivência da estadunidense IBM; bem como no Brasil, a Havan, a Madero, a Polishop, a Coco Bambu, a Centauro, a Riachuelo, a Smart Fit e tantas outras, com desejos de expansão imperialista, não seriam base de apoio econômico, crescendo com ele, o bolsonarismo.

Antônio Gramsci, em Maquiavel. notas sobre o Estado e a política, afirmou
que “quanto mais a vida econômica imediata de uma nação se subordina às relações internacionais, tanto mais um determinado partido representa está situação e a explora para impedir o predomínio dos partidos adversários”. Dessa forma, continua, “pode-se chegar à conclusão de que, com frequência, o chamado ‘partido
do estrangeiro’ não é propriamente aquele que é habitualmente apontado como tal, mas precisamente o partido mais nacionalista, que, na realidade, mais do que representar as forças vitais do próprio país, representa sua subordinação e servidão econômica às nações ou a um grupo de nações hegemônicas” (2007, p. 20). O bolsonarismo, e mesmo a sua frágil organização partidária, representado pelo inchado e conjuntural Partido Social Liberal (PSL), expressa este claramente “nacionalismo” do governo que assumiu o Brasil desde 2019, mostrando a face mais subordinada ao imperialismo, particularmente ao imperialismo estadunidense, em fase de crise de acumulação e crescimento.

Isto explica porque setores importantes das classes dominantes brasileiras, associadas e dependentes, optaram por Bolsonaro, golpeando a frágil democracia brasileira, abandonando o neoliberalismo “diplomático” do consórcio PSDB-DEM, que governou o Brasil na Era FHC (1995-2002), bem como a conciliação de classes do lulismo, iniciada em 2013 e decapitada em 2016. Para levar adiante o projeto de reestruturação produtiva do capital, no Brasil, alicerçado no projeto neoliberal, a fim de enfrentar mais uma crise cíclica, era necessário um governo cada vez mais autoritário, senão de corte fascista. O Bolsonarismo é resultado deste processo, muito mais do que os erros cometidos pela estratégia reformista do lulismo. As bravatas reacionárias do bolsonarismo e sua liderança no Planalto, com sua reação radical no campo dos costumes, mesmo que importantes, são a aparência de um fenômeno mais profundo, ultraliberal e de enlace com as práticas de tipo fascistas deste início de século XXI, visam, sobretudo, o desmonte fatal da soberania nacional, o entreguismo das riquezas para o capital rentista e o desmonte dos direitos sociais e trabalhistas, Para realizar seu intento, é necessária a criminalização dos movimentos sociais de luta e resistência de esquerda, fustigar a a luta de classes e ampliar o anticomunismo. E fazem isto com naturalidade, instrumentalizando o aparelho repressivo de Estado, a exemplo da Alemanha nazista, da Itália fascista, repetindo os dogmas e discursos da salazarismo português, do franquismo espanhol e do fascismo ucraniano (como se percebe nos recentes usos da bandeira rubro-negra do grupo de extrema-direita ucraniano “Pravyi Sektor (Setor Direito)” e o treinamento naquele país da blogueira Sara Winter, líder do autoproclamado “Grupo dos 330”, criado no Brasil em 2020), além do integralismo brasileiro, entrem outros

Por isto, o fascismo pode ser comparado a um iceberg. Na ponta, fora da água, aparecem seus líderes, mas são empresas e o capital financeiro, em fases de crises de acumulação capitalista, o grande bloco de gelo que não aparece tanto, mas que o sustenta. E como nunca, as crises recentes, como as representadas pela crise das .COM, ainda nos anos 1990, pela crise imobiliária, de 2008, reforçadas agora pela crise do coronavírus, pavimentam a solução fascista para o capital financeiro e seus rebento, descolado da produção, o capital rentista, mantenham suas taxas de lucros em detrimento dos ainda restritos, mas importantes direitos sociais, trabalhistas e previdenciários conquistados ao longo da História, bem como dos ganhos econômicos das trabalhadoras e dos trabalhadores, cada vez mais precarizados pela ordem do capital.

Dito tudo isto, o que aprendemos com o discorrido acima? Talvez, voltando com Togliatti, em suas Lições sobre o fascismo: os adversários não são “as massas que estão inscritas nas organizações fascistas”, mas sim as “organizações fascistas”, pois estas massas são “massas de trabalhadores que devemos fazer todos os esforços para conquistar” (Grifos do autor. 1978, p. 1). Mas, mais ainda, os adversários, inimigos mesmo de classe, são os que sustentam estas organizações, levando consigo, para o seu campo político, trabalhadores pobres, ideologizados pela ética da prosperidade religiosa, que só favorece os pastores e não o rebanho, “excluídos” que têm como meta apenas inserir-se no sistema para consumirem e serem mercadorias, entidades e identidades imersas na alienação do individualismo e da meritocrática “ascensão social”, para que se tornem algozes de suas irmãs e seus irmãos, de suas companheiras e seus companheiros, dos diferentes povos!

Além disso, é preciso ressaltar, como se procurou demonstrar que, entre o liberalismo de Benedetto Crocce, sobre o fascismo ser um “fenômeno exclusivamente italiano” (DEL ROIO, 1987, p. 23), e a “Filosofia da Práxis” de Antônio Gramsci, fica-se com o segundo. Entre o liberalismo que vê os aspectos formais do modelo italiano e tenta encaixá-lo em outras experiências históricas e, se não couber, “não é fascismo”, ainda a dedução abstrata a partir de exemplos concretos do materialismo histórico, que vê, essencialmente, o fascismo a partir do seu caráter de classe dominante e como a solução ditatorial do capitalismo imperialista para superar suas crises de acumulação, este é o porto mais seguro para se entender este fenômeno em diferentes processos históricos, sem esquematismos, pois há especificidades fenomênicas entre eles, como em todos os exemplos da História, assim como seu conceito está sempre em movimento, por ser um conceito histórico, como a própria democracia e a liberdade. Aliás, isto é o que têm feito historiadores, ao reutilizar conceitos e ver neles atualidades, como o de autoritarismo, mesmo que seja um termo discutível, mas passível de ser revisto, como recentemente fizeram Gabriela Grecco e Odilon Caldeira Neto, os quais defenderam “as potencialidades de utilização desta categoria”, a fim de se realizar uma “contribuição ao debate sobre autoritarismo (e suas diversas facetas, como o próprio fascismo)” (2019, p. 12).

E foi esta mesmo História que ensinou a lição maior sobre o combate à tragédia e suas farsas filo, proto, para ou neofascistas, com a “necessária virada” definida ainda no VII Congresso da IC, acontecido em Moscou, entre julho e agosto de 1935: a formação de frentes amplas e populares para o enfrentamento e a derrota do fascismo (FELICE, 1984, p. 7). E esta deverá ter tática de amplitude radicalizada, com eixo de defesa da soberania, da democracia e contra o fascismo, ou seja, se só se radicalizar é isolamento certo, se só ampliam, fica-se no limite da disputa eleitoral, sem base social para um necessário projeto nacional, administrando o Estado Burguês para resolver a crise do capital e fortalecer os mecanismos de retomada apenas da ampliação das taxas de lucro e da extração da mais-valia da classe trabalhadora.

Mas esta tática antifascista trouxe outra lição: o movimento antifascista não deve ser apenas conjuntural, mas necessita de partigianis estruturais, pois, assim como o seu progenitor, o capitalismo imperialista, enquanto existir luta de classes e Estado, o combate ao fascismo será permanente. Com outras palavras, lá nos idos de 1935, o grande poeta alemão Bertolt Brecht já tinha dado esta linha: “o fascismo é uma fase histórica do capitalismo; neste sentido, é algo novo e ao mesmo tempo antigo. Nos países fascistas, o capitalismo continua a existir, mas apenas na forma de fascismo; e o fascismo apenas pode ser combatido como capitalismo, como a forma de capitalismo mais nua, sem vergonha, mais opressiva e mais traiçoeira”.

 

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Santa Maria, junho de 2020, em meio à quarentena do coronavírus.

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