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Eu, meu nono e as telenovelas

Em memória de meu nono Gomercindo Stival.

Minha mãe sempre dizia (e ainda diz e muito e constantemente e em um sem fim de vezes) que a fruta não cai longe do pé. Sei muito bem que sou a fruta e que meu nono é o pé. Sinto isso no olhar de minha mãe e no modo como a sua boca se movimenta quando ela usa esse ditado popular. Meu nono Gomercindo era afeito a falar com as mãos da mesma maneira que a minha mãe fala e que eu falo. Mãos bailarinas no significante e no significado da existência.

Temos, eu e meu nono, o mesmo jeito fraquejante nos olhos. Fraquejante porque nos despimos por inteiro para toda e qualquer pessoa (e isso, vezenquando, não é tão bom assim). Tenho a sensação de que meu nono nunca conseguiu ser um vacilante, assim como eu não o sou. Entretanto, ambos conseguimos chegar ao fundo do poço com uma maestria. E, nesses últimos dias frios e nublados e de um sol envergonhado, tenho encarceirado-me no meu eu de tal maneira que só consigo pensar que sou o fruto que não caiu longe do pé.

Vejo-me naquele senhorzinho de cabelos grisalhos e de barba sempre bem feita, sentado, em sua cadeira de balanço, lendo o jornal, na varanda de casa e que, de repente, mais do que de repente, aninhava-se em si mesmo e entrava casa adentro para recolher-se às histórias das telenovelas (eu sabia, exatamente, que esse ato indicava certo dilúvio no seu pensar sobre si; como se os enredos das telenovelas driblassem um pouco a angústia do viver).

Também eu caramujo-me diante da televisão a espreitar respostas das historietas de amor incondicional. Mas as esperanças são rápidas como o zap do controle remoto. Minhas melhores lembranças da infância e da adolescência são as das telenovelas, pois eram nelas que eu encontrava um refúgio para as agruras dos traumas, para as não doçuras a que eu era submetido e, sobremaneira, para as intempéries da baixa autoestima.

Reconhecia-me, nas personagens, nos conflitos, nos desfechos. Por certo, tornei-me, também, um leitor afoito através do afetamento das telenovelas. O facão que José Inocêncio finca aos pés de um jequitibá, em Renascer, eu também o fiz, em uma árvore, na frente da minha casa, com uma pequena faquinha de serra que peguei em alguma gaveta da cozinha. Pegar um punhado de terra e dizer “Terra é sempre terra…” quando da novela A indomada, também o fiz por mais de uma vez. Dançar, na sala de casa, assim como a cigana Dara de Explode coração. Catarina e Petruchio. Aninha e o meninão na fábrica de chocolates. O Múltipla escolha, o Gigabyte…Laura Pausini cantando na abertura de Esperança. O tão esperado beijo (que foi gravado e que não foi levado ao ar) entre Júnior e Zeca em América. Bia Falcão. A fascinação por Iemanjá em Porto dos milagres. Foram tantas telenovelas, inúmeras cenas, diversas trilhas sonoras. A memória me é curta, apesar de precisa.

Matutinamente, sentia-me uma farsa, pois preferia ser leitor de mim por meio das telenovelas a partir das 17 horas. À noite, projeta-me nelas. Sentia-me um ser participante do mundo. Sem contar, nos tantos cantores que conheci por conta das telenovelas: Gal, Chico Buarque, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Fagner, Tom Jobim, Belchior, etc., etc., etc. As telenovelas fomentavam a minha fabulação e para uma criança e um adolescente de uma cidade interiorana com acesso restrito a filmes, a músicas, a livros, etc., ELAS FORAM A MINHA SALVAÇÃO. Acredito que, também, o foram para o meu nono. Que saudade de assistir telenovela ao lado dele naquele sofá marrom já espuído pelo tempo. Quanta saudade…

Bebo um vinho e lembro do meu nono. Fumo um cigarro e lembro do meu nono. Ambos bebemos e fumamos e por isso minha mãe também nos acha pé e fruto/fruto e pé. Eu e uma amiga minha, durante alguns anos, escrevemos textos em que associávamos certos elementos à solidão. Solidão, hoje, é estar, neste quarto gelado, usando um casaco semelhante ao do meu nono, esperando que o telefone toque, esperando que a campainha soe, esperando pelo acaso de algo ou de alguém que me tire desse tempo de revelação antiga de fotografias e que me coloque na roda gigante do mundo outra vez. Se não acontecer, farei como o meu pé: abrigar-me-ei, no discurso das telenovelas, as quais me farão crer, por alguns minutos, que ainda existem finais felizes, que ainda há tempo para redescobrir (se). Lâmpada acesa, no quarto de madrugada, também é solidão.

 

Felipe Freitag é licenciado em Letras Português pela Universidade Federal de Santa Maria e mestre em Estudos Linguísticos pela mesma instituição. Em 2007, aos 19 anos, recebeu menção honrosa pelo poema Bolachas de ardem, no Prêmio Lila Ripoll de Poesia, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, gerando publicação de seu poema em coletânea com os demais autores premiados. Em 2009, aos 21 anos, foi um dos onze vencedores do Prêmio Valdeck Almeida de Jesus de contos LGBTs, com o conto O templo das mãos, o qual foi publicado em coletânea na Bienal do livro de São Paulo no mesmo ano. Tem contos, crônicas e poemas publicados, em revistas, em jornais e em sites e blogs especializados em autoria literária. Dedica-se à arte literária como percepção obsessiva do cotidiano, em seus desmembramentos das expressões humanas. O caos do contraste é a essência de seus textos, nos quais passado e presente emulam-se para a conquista de um movimento de grito em busca e apropriação de certa paz interior. Seu ofício é, antes de tudo, um desvendar das banalidades da vida, um recortar de imagens do humano.

 

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