Crítica
Estômago (2007) foi um filme que marcou iconicamente o Cinema Brasileiro, lançando um diretor de suma relevância, o paranaense Marcos Jorge, e consagrando um ator que despontava promissoramente nas telas, o baiano João Miguel. O longa teve uma carreira avassaladora, ganhou 39 prêmios, 16 deles internacionais. Era um filme que desconcertava as pessoas, grotesco e sublime, e não foi um cult imediato.
“Entrou no cinema nacional pela cozinha, a parte mais quente da casa. Tinha como eixo temático principal a relação entre culinária e poder.” Tendo sido o primeiro filme brasileiro ‘culinário’ a ganhar a merecida projeção na cena nacional.
Todos esses méritos levaram o filme a ganhar agora uma “sequência”, capitaneada pela mesma produtora, a Zencrane Filmes, sob a batuta do mesmo diretor, Marcos Jorge.
Estômago 2 não tem uma continuidade óbvia com o primeiro filme, apesar de ter aproveitado o personagem principal, o cozinheiro Raimundo Nonato, que agora deixa de ser o protagonista da história, abrindo espaço para Roberto/Don Caroglio, chef de cozinha e pretendente a mafioso italiano. De cara fica explícita a intenção de misturar os gêneros: cinema culinário com filme de máfia.
A produtora Claudia da Natividade encontrou a possibilidade de financiamento para uma co-produção Brasil-Itália, abrangendo não apenas o aspecto econômico, mas também a cultura e a língua italiana, presentes em todo o filme. O orçamento brasileiro foi equivalente ao italiano. E todas as funções foram duplicadas. Com exceção do diretor, a equipe europeia é completamente diferente da brasileira.
O filme mantém uma estrutura narrativa semelhante ao primeiro: dois tempos históricos distintos; um acontece em um presídio brasileiro (em Português) e o outro nos bastidores da máfia (em Italiano). Eles vão sendo contados em paralelo até confluírem para um desfecho comum. Isso exigiu um minucioso trabalho de montagem, no qual a equipe foi muito bem sucedida.
O processo de finalização durou dois anos, e não à-toa. Ouso arriscar que na pós-produção está o ponto alto da película. Vários recursos de montagem e de edição foram usados, sempre com o objetivo certeiro de capturar o espectador. E conseguiram. Como o artifício da câmera-lenta para passar a ideia do paladar da comida saboreada pelos personagens. Os efeitos especiais são precisos e cumprem uma regra básica do bom cinema: não ficam aparentes. Os efeitos sonoros e a trilha sonora são outro ponto forte, com várias citações aos clássicos do cinema italiano.
Marcos Jorge é um diretor que não se furta ao meticuloso trabalho da preparação de atores. Faz ele muito bem. O elenco inteiro esbanjou talento. Nicola Siri assume com maestria as rédeas como protagonista do longa, dando conta de ambos os tempos históricos e construindo um arco plausível para o presidiário que se transmuta no mafioso Don Caroglio, com referência assumida a consagradas atuações de Robert de Niro e Marlon Brando.
A atriz e cantora italiana Violante Placido desponta como Valentina, filha e herdeira do patriarca da máfia, que rompe padrões ao assumir um lugar de poder ocupado historicamente por personagens masculinos. Paulo Miklos também brilha como o presidiário Etcétera, que inclusive tem sua cabeça raspada durante o filme. João Miguel, como Raimundo Nonato/Alecrim/Osmarino, é fiel ao viés cômico e puro do personagem, dentro do que lhe ofereceu o roteiro que, polemicamente, deslocou o protagonismo para o personagem Roberto/Don Caroglio.
‘Estômago 2: O Poderoso Chef’ chega às telas brasileiras carregando o desafio de fazer jus à trajetória bem sucedida de seu antecessor. Assumidamente o diretor Marcos Jorge busca o desconcerto, a polêmica, a ousadia. Afinal, “na vida, para comer bem, a gente precisa ser cruel”. Se acertou ou se errou, só o tempo irá dizer.
DARIO PONTES: Crítico. Especialista em Cinema pela Fundação Getúlio Vargas. Médico psiquiatra e psicanalista no Rio de Janeiro. Paraibano de Campina Grande radicado há 36 anos no Rio. Crítico da Rede Sina no 52° Festival de Cinema de Gramado.