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ESTANTE DA ALICE | Olhos D’Água, a necessária escrevivência de Conceição Evaristo

por Maria Alice Bragança

Lançada em 2014 pela Pallas Editora, em coedição com a Fundação Biblioteca Nacional, Olhos D’Água é uma coletânea de contos da escritora Conceição Evaristo que aborda temas relacionados à vida cotidiana, centrados principalmente nas vivências e experiências de pessoas negras, especialmente as mulheres.

Destacado em terceiro lugar no Prêmio Jabuti 2015 e constituído de quinze contos, muitos deles publicados nos Cadernos Negros, o livro é um mosaico de personagens e situações baseadas no cotidiano da comunidade negra/afrobrasileira urbana. É o que a própria escritora denomina “escrevivência”, conceito-atitude que pode ser identificado em escritores como Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e João Antônio.

Em entrevista para o site do Itaú Cultural, Conceição Evaristo afirmou que a função de sua escrita “É incomodar”.

“É jogar no rosto da casa-grande o que é que nos foi feito e, inclusive, marcar esse presente que ainda tem essa marca do passado, se você pensa na condição em que se encontra a grande maioria da coletividade negra brasileira, e não só a brasileira como a diaspórica. Basta a gente olhar o que acontece com o negro nos Estados Unidos para ter certeza que não é só no Brasil. Tem aí uma escrita ou uma proposta de escrita –   eu torno a afirmar que não é só no campo literário –, uma proposta em que tanto a memória como o cotidiano, como o que acontece aqui e agora, se transformam em escrita. Essa história silenciada, aquilo que não podia ser dito, aquilo que não podia ser escrito, são aquelas histórias que incomodam, desde o nível da questão pessoal, quanto da questão coletiva. A escrevivência quer justamente provocar essa fala, provocar essa escrita e provocar essa denúncia. E no campo da literatura é essa provocação que vai ser feita da maneira mais poética possível. Você brinca com as palavras para dar um soco no estômago ou no rosto de quem não gostaria de ver determinadas temáticas ou de ver determinadas realidades transformadas em ficções.”

Recentemente, em outubro passado, a tradução francesa de Olhos d’Água, publicada pela Editions des Femmes, foi homenageada na França com o Prêmio de Obra Poética da Academia Claudine de Tencin. Os contos reunidos no livro evidenciam a violência urbana que atinge as pessoas negras. Nas histórias, a autora expõe o cotidiano de mulheres que sofrem com a miséria e a exclusão social. A desigualdade social é um tema comum na literatura brasileira, mas, na maioria das vezes, o assunto é retratado sob a ótica de homens, principalmente brancos.

A sensibilidade da água, assim como a sua fúria, é quase como que – literalmente – um rio permeando as histórias contadas, quase como que narradas de uma notícia de jornal, por Conceição Evaristo. O fato de transitar tanto pela prosa como pela poesia, como podemos admirar em seu livro Poemas da recordação e outros movimentos, contribui para a carga poética mesmo quando suas narrativas tratam de temáticas tão contundentes.

A realidade não é mais branda na escrita de Conceição Evaristo, muito pelo contrário. A escritora faz questão de demonstrar, sem cortes ou fantasias, como é a realidade de uma pessoa negra e marginalizada no Brasil.

“A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água”

O conto que dá o título ao livro relata o sofrimento de uma mãe negra e pobre, que fazia sacrifícios para cuidar dos filhos. Narrado por uma das sete filhas dessa mulher, o texto cria uma empatia entre o leitor e as personagens. Relembrando as histórias da infância da própria mãe, a personagem admite que as lembranças se confundem com suas próprias vivências.

Ao tentar lembrar da cor dos olhos de sua mãe, mergulha em sua própria história e deixa de ser apenas agente/filha para também ser agente/mãe, protetora e conhecedora de sua origem.

Conceição Evaristo reforça que a desigualdade social é um problema latente no país e que acaba sendo herdado pelas gerações futuras.

“Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. […]  Às vezes as histórias da infância de minha mãe se confundiam com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando minha mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento.”

Em “Maria”, é contada a história de uma empregada doméstica que, ao entrar em um ônibus na volta do trabalho, depara-se com assaltantes e se assusta ao ver que um deles é o ex-marido, pai de seu filho mais velho. A narrativa mescla pensamentos, sentimentos e diálogos entre a personagem e o homem. No meio da ação dos bandidos, eles conversam sobre o filho, a vida que dividiam no passado e ela demonstra que sente saudade do amor daquele ex-companheiro.

“Quanto tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem sentou-se a seu lado. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. […] Por que não podia ser de outra forma? Por que não podiam ser felizes?”

Maria é a única que não é roubada pelo grupo. Por isso, quando os bandidos fogem, os passageiros desconfiam dela. Eles a agridem e a acusam de criminosa, mesmo sem provas de que a mulher teria algum tipo de relação com o ato criminoso. A história da empregada doméstica nada mais é do que um paralelo com a nossa sociedade atual, que marginaliza e pré-julga as pessoas que não se encaixam nos padrões financeiros, estéticos e culturais.

“Lumbiá”, um outro conto que se destaca na coletânea, é relata a história de uma criança pobre que se encanta com a imagem do Menino Jesus em uma loja. O menino se identifica com a aparência de Jesus. Por não ter condições de comprar o objeto, ele o rouba da loja. Mas depois tem um fim trágico.

Uma das fontes utilizadas para a denominação de personagens são as culturas Banto e Iorubá. E não são utilizadas apenas para esse fim, pois as referências às narrativas míticas africanas se apresentam ora como poderosas metáforas, ora como alegorias que podem se referir, direta e/ou indiretamente, à diáspora africana no passado brasileiro e seus desdobramentos em nosso “presente-cotidiano”.

Mulheres/mães, mulheres/filhas, mulheres/amantes, mulheres/amadas, mulheres como são e como se sentem. Ao criar personagens e narrativas, Conceição Evaristo nos conta um pouco de si, um pouco de sua própria história de luta e superação ajudada por outras mulheres e homens, tentando sobreviver nessas sociedades desiguais.

Ao mesclar pensamentos com diálogos, Conceição Evaristo nos mostra a complexidade da existência. Toda personagem é, em si mesma, uma narradora da própria narrativa, com sonhos, paixões, medos, raivas, amores, desamores e prazeres.

De reconhecido valor literário, Olhos d’água foi censurado em novembro no Colégio Vitória Régia, em Salvador, e a professora que propôs sua leitura afastada da escola, em um ato de discriminação e descaso com a literatura de autores negros do Brasil. As críticas feitas por alguns pais ao livro evidenciam o racismo estrutural existente no país. Os pais encaminharam à direção da escola questionamentos relacionados ao vocabulário adotado no livro e à temática em evidência, a violência contra as mulheres negras, para questionar a indicação.

A censura a Olhos d’água mostra como essa escrevivência de Conceição Evaristo, esse soco no estômago, com o incômodo que provoca, é cada vez mais uma leitura necessária e precisa ser divulgada e fazer parte das bibliografias escolares e de um número cada vez maior de estantes.

Escritora homenageada pelo Prêmio Jabuti em 2019, Conceição Evaristo (Maria Conceição Evaristo de Brito) nasceu em 29 de novembro de 1946 uma favela de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e foi criada em um ambiente pobre com sua mãe e nove irmãos. Por um tempo, ela precisou conciliar os estudos enquanto trabalhava como empregada doméstica. Aos 25 anos, Conceição se mudou para o Rio de Janeiro e estudou Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A autora estreou na literatura em 1990, com textos publicados na série Cadernos Negros. Mestra em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Conceição Evaristo é militante do movimento negro e participa de atividades da militância política-social.

Suas obras abordam temas sobre discriminação racial, de gênero e classe. Os livros da escritora são fundamentais para dar mais visibilidade às mulheres negras, que sofrem violência e preconceitos diariamente na sociedade.

Como obras individuais, publicou: Ponciá Vicêncio (2003/2006/2017); Becos da memória (2006/2017); Ponciá Vicêncio (2008), tradução para a língua inglesa, Host Publications, Texas, EUA; Poemas da recordação e outros movimentos (2008/2017); Insubmissas lágrimas de mulheres (2011/2016); Olhos d’água (2014); Histórias de leves enganos e parecenças (2016). E, na França, Ponciá Vicêncio (2015) e Becos da memória (2016), tradução francesa pela Editora Anacaona.

 

Maria Alice Bragança nasceu em Porto Alegre, RS, Brasil. Poeta e jornalista. Atualmente, publica a coluna Estante da Alice, na Rede Sina. A jornalista, é diplomada em jornalismo pela FABICO/UFRGS, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio e de jornais, foi também professora de comunicação social e artes visuais na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, RS. Foi diretora de comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES), gestão 2019/2020. A poeta, começou a escrever na adolescência. Publicou poemas em jornais, em antologias nacionais e em Portugal, além dos livros de individuais de poesia: Quarto em quadro (Shogun Arte), Cartas que não escrevi (Casa Verde) e Misterioso pássaro: haicais (Bestiário). Tem poemas traduzidos para o espanhol e o inglês, publicados em revistas literárias no Brasil, Portugal e Espanha. Em 2021, participou do Festival Internacional de Poesía – FIP Parque Chas Luis Luchi 100 Años (Buenos Aires, Argentina). Mantém, sem periodicidade, o blog “Alice & Labirintos” (alicelabirintos.blogspot.com) e integra, desde a fundação em 2017, o coletivo feminista Mulherio das Letras (RS, Portugal e Europa).

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