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Na coluna Estante de Alice: Nojo, Divanize Carbonieri

ESTANTE DA ALICE | NOJO, UM LIVRO PARA DESASSOSSEGAR

Um livro para incomodar e desacomodar suas leitoras e leitores, “Nojo”, de Divanize Carbonieri, provoca indagações múltiplas desde o gênero em que se pretende classificá-lo.

Embora a autora o tenha definido como um livro de contos, ele já foi classificado em diversas resenhas como novela, romance e até monólogo (mais próximo de um texto teatral).

O fato de se posicionar entre gêneros, sem classificação fácil, é apenas uma das transgressões com as quais nos provoca a autora. Sem pontuação, divisão em capítulos ou parágrafos, o texto nos chega como um jorro, incômodo, de preconceitos de todo o tipo, pela voz de mães, filhas, gordas, anoréxicas, lésbicas, trans, jovens e velhas.

A escrita que imita a linguagem coloquial contribui para o incômodo, pela identificação dessas falas com tantas outras ouvidas por nós cotidianamente, ou mesmo repetidas (ou pensadas, pelos preconceitos e temores que resistem em nós mesmas).

É através da reunião de múltiplas vozes que o livro faz refletir sobre o que considero seu tema principal, a pressão estética exercida sobre o corpo, principalmente o das mulheres, internalizada e tantas vezes reproduzida, seja pela mídia, pela publicidade, ou em conversas familiares ou de vizinhas, de amigas, de conhecidas. É o reconhecimento dessa impregnação no cotidiano que desassossega, podendo desacomodar e gerar uma crítica e uma mudança.

“Nojo” traz, de forma crua, a falta de afeto que pode existir nas relações entre mãe e filha, e que, sem sutilezas, irrompe nas críticas ao corpo.

A forma como os preconceitos, estruturais e estruturantes da sociedade em que vivemos, atingem nossa autoimagem é evidenciada em trechos como:

“…se eu não tinjo o cabelo de loiro fica muito evidente a cara de índia com o cabelo tingido fica menos já percebi que as pessoas fica na dúvida será que ela é branca ou será que ela é pardacenta fica assim indefinido sabe porque cabelo loiro é uma coisa que ilumina a cara aliás cabelo loiro é uma coisa que ilumina até a vida mulher rica por exemplo tudo tem cabelo loiro só uma ou outra que é morena não vê na televisão as apresentadora é quase tudo loira cabelo escuro dá uma aparência mais suja pra mulher fica mais com cara de pobre agora uma mulher de cabelo loiro e cheia de joia é sempre bem aceita mesmo que a pele em si seja meio encardidinha como a minha…” (p. 51-52).

A visibilidade e o acúmulo das diversas vozes que se sobrepõem em “Nojo” denuncia e faz refletir sobre o racismo estrutural da sociedade brasileira e de como ele impregna e afeta a todos nós. E ele pode vir em falas “carregadas de boas intenções” (Será que você nunca ouviu alguém dar esse tipo de conselho?).

“…vou te dizer acho que você tinha que alisar esse cabelo cabelo grande e armado assim pra cima as pessoa olha e acha que a pessoa não é séria ou pior elas pensa que não é limpa daí pra conseguir emprego é difícil e como você tá indo atrás de trampo é melhor você se adaptar veja não sou eu que tô falando isso é a sociedade é preconceito é preconceito é racismo é racismo mas o mundo é assim e você está precisando trabalhar por que vai ficar dando murro em ponta de faca que adianta você honrar a tua raiz como você fala se não tiver dinheiro pra comprar um pão pra pagar uma passagem de ônibus então eu aposto com você que se você alisasse o cabelo certamente passaria nas entrevista você tem um currículo bom tem experiência…” (p. 69-70).

As experimentações formais e as reflexões que provoca fazem de “Nojo” o livro de Divanize Carbonieri que escolhi para recomendar hoje, entre os de minha Estante. Espero que ele estimule o interesse também por outros livros da autora, todos eles oferecem uma leitura instigante e compensadora.

Divanize Carbonieri é doutora em letras pela USP e professora de literaturas de língua inglesa na UFMT. É autora dos livros de poesia “Entraves” (Carlini & Caniato, 2017), “Grande depósito de bugigangas” (Carlini & Caniato, 2018), “A ossatura do rinoceronte” (Patuá, 2020) e “Furagem” (Carlini & Caniato, 2020), além da coletânea de contos “Passagem estreita” (Carlini & Caniato, 2019), finalista do Prêmio Jabuti. Juntam-se a essas obras, os recentemente lançados “Carga de cavalaria: haicais encavalados” (Carlini & Caniato, 2021) e o infantojuvenil “O insight dos insetos” (Tanta Tinta, 2021). É editora-adjunta da Revista Ser MulherArte e uma das editoras do site Ruído Manifesto, além de integrar o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras-MT.

 

MARIA ALICE BRAGANÇA
Nasceu em Porto Alegre, RS. Poeta e jornalista. Diplomada em jornalismo pela FABICO/UFRGS, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio e de jornais, como Correio do Povo e Zero Hora, foi também professora de comunicação social e artes visuais na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, RS. Foi diretora de comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES), gestão 2019/2020. Publicou poemas em jornais, em antologias nacionais e em Portugal, além dos livros de poesia: “Quarto em quadro” e “Cartas que não escrevi”. Mantém, sem periodicidade, o blog “Alice & Labirintos” (alicelabirintos.blogspot.com) e participa do coletivo feminista Mulherio das Letras (RS, Portugal e Europa). Tem poemas publicados nas revistas literárias Gente de Palavra, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Germina e InComunidade (Portugal) e participou, neste ano, do Festival Internacional de Poesía – FIP Parque Chas Luis Luchi 100 Años (Buenos Aires, Argentina).

 

A coluna Estante da Alice é quinzenal, publicada todo dia 15 e 30 de cada mês.

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